Felizes
Os Oprimidos e Esquecidos

 

 

BENTO DOMINGUES, O.P. ..............................Público, Lisboa, 30.01.2005

Diz-se que no séc. XIX a sexualidade era recalcada. No séc. XX e nos começos do séc. XXI - com a mediação de Freud e das suas heranças e contestações -, a redescoberta desta dimensão omnipresente e misteriosa da vida humana tornou-se também uma obsessão comercial da publicidade.

Entretanto, os métodos contraceptivos desligaram as relações sexuais da reprodução humana. Foi uma revolução. Mas não são métodos para substituir o amor, o discernimento ético e o alcance metafísico e religioso da sexualidade.

Na estratégia do combate à difusão da sida desenharam-se três caminhos: a abstinência sexual, a fidelidade e o uso do preservativo. A hierarquia do Vaticano recomenda os dois primeiros e recusa o último. Dizem os especialistas que, em muitíssimas situações, a utilização do preservativo é a única forma realista de não colaborar na expansão da morte. Por causa da sida, a África está a ser esvaziada da sua população. As consequências económicas, ecológicas e culturais deste flagelo são mais assustadoras do que o recente maremoto que devastou certas zonas da Ásia. Os infectados, a nível mundial, rondam os 40 milhões.

2. As Conferências episcopais de alguns países têm procurado alterar a chamada "posição católica". Sem êxito. O último escândalo, com enorme repercussão mediática, ocorreu, há poucos dias, em Espanha. O bispo Juan António Martinez Camino, porta-voz e secretário da Conferência Episcopal, declarou no dia 18 que os preservativos tinham o "seu contexto numa prevenção integral e global da sida". No dia 19, por ordem de Roma, o porta-voz dessa celebrada abertura foi obrigado a fechá-la com argumentos que encerravam 48 horas de ridículo e decepção.

Este acontecimento é doloroso para a hierarquia da Igreja espanhola. Ficou mal vista no Vaticano e em Espanha, onde estava habituada a ter a última palavra sobre todos os assuntos. Vive agora numa sociedade democrática, pluralista, que está a mudar com uma espantosa rapidez. Em quatro anos, ficou em metade a percentagem de jovens católicos praticantes (de 28 por cento para 14 por cento) e apenas cinco por cento dos jovens católicos praticantes segue a doutrina da Igreja em matéria sexual.

Quando certos membros da hierarquia dizem que se opõem ao uso do preservativo para não abrir a porta ao sexo fácil, o velho teólogo jesuíta J.I. González Faus pergunta: mas em que planeta vivem eles? "Ninguém se tornaria mais libertino por eles serem mais misericordiosos."

Segundo a reportagem da "Visão" desta semana sobre a "Madre Teresa" do Intendente, as freiras "Oblatas", dedicadas a defender e apoiar as vítimas da prostituição, são bem mais realistas ao distribuir preservativos às prostitutas... Como diz uma delas, "a única norma que sigo é a de Jesus: a pessoa acima de tudo".

3. Entre os muitos textos provocados pelo incidente ocorrido em Espanha, quero destacar o do romancista peruano Mário Vargas Llosa, algo paternalista e nostálgico, mas que rompe com o estilo daqueles que aproveitaram a ocasião para combater a Igreja: "O anacronismo que representa a doutrina da Igreja católica, em matéria sexual, é tão absurdo em nossos dias que se Roma não cede e se adapta à realidade - como pedem tantos católicos convictos e confessos, e como já o fez em tantos outros campos -, corre o risco de se ver quase encurralada e marginalizada, como uma relíquia antiga, por outras igrejas. Isto é, pelas aguerridas, incansáveis e aborrecidas igrejas evangélicas, que desde há uns tempos para cá lhe estão a arrebatar a adesão nos sectores mais empobrecidos do Terceiro Mundo."

Vargas Llosa não se resigna a uma Igreja católica "reduzida a uma casca vazia, sem audiência".

Julga que a religião é importante para canalizar a angústia e o desassossego que produz nos seres humanos a sua condição mortal, a incerteza e o medo perante o além. E também para moderar aqueles instintos que, deixados à solta, poderiam retroceder às formas mais primitivas da barbárie, como escreveu George Bataile. Para ele, só uma minoria de seres humanos pode sobreviver sem religião, suplantando-a pela cultura. Além disso, para o comum dos mortais, a moral só é compreensível, admissível e praticável encarnada em preceitos da religião.

O romancista peruano deseja que a Igreja se apresente hoje como força viva e operante. Já o foi em muitos momentos do passado: quando representou um progresso intelectual, político, científico e moral sobre os cultos, as religiões da antiguidade; quando, na Idade Média, foi praticamente a única instituição capaz de aglutinar e dotar de um sentido e de uma ordem uma comunidade dominada pelo medo, a confusão e as guerras. Mas, para isso, a religião precisa de se adaptar às realidades da vida e não exigir aos seus adeptos o impossível. E pergunta: "A sobrevivência da Igreja católica não valerá um preservativo?"

Os católicos escutam hoje na Missa a proclamação das Bem-aventuranças segundo S. Mateus. Jesus fala às multidões rodeado dos discípulos. São palavras de subversão e de esperança: felizes os oprimidos e esquecidos, porque vão ter quem olha para eles, os alivie e os salve. Esta é a palavra de Cristo, a verdadeira palavra da Igreja à qual todas as outras se devem submeter.