O EVANGELHO
DOS AUDAZES

 

 

BENTO DOMINGUES, O.P. ..............................Público, Lisboa, 27.11.2005

1. A Comissão dos Episcopados da Comunidade Europeia publicou um texto sobre "O futuro da União Europeia e a responsabilidade dos católicos". É um convite à reflexão sobre a evolução da União Europeia, no contexto dos anos 2004/2005, que assistiram ao alargamento da União para os 25 Estados-membros. Dirige-se em primeiro lugar aos cidadãos que se reconhecem como católicos, mas poderá também servir como base para um diálogo com os cristãos da União no seu conjunto. Constitui para todos um convite à avaliação da sua responsabilidade no processo de desenvolvimento da União Europeia. Mas é também proposto a qualquer pessoa que esteja desejosa de saber aquilo que os católicos podem pensar da sua responsabilidade na evolução da
integração europeia. A sua leitura está portanto aberta a todos.

Segundo a advertência ao leitor, que antecede este documento, trata-se de um texto com ambições pedagógicas, que exige um trabalho de grupo ou equipa, no seio de uma paróquia, de um movimento ou de uma universidade. Para os leitores, a questão não será aprová-lo ou criticá-lo na sua forma actual. Deverão antes utilizá-lo como um ponto de partida, como um estímulo ou uma ajuda para o seu próprio trabalho, para chegar a uma reflexão pessoal sobre o seu empenho ao serviço da Europa em evolução.

O documento reproduz, em anexo, o texto integral da proposta, lançada por Robert Schuman, ministro francês dos Negócios Estrangeiros, e considerado o acto de nascimento da União Europeia. É a Declaração de 9 de Maio de 1950. A tradução portuguesa que, segundo me consta, já foi apresentada na Universidade Católica, não indica onde pode ser adquirida. Deixo, no entanto, as referências que figuram nesse opúsculo:

Tel. +32 (0)2 235 0510 - Fax +32 (0)2 230 3334 - www.comece.org

2. Num livro extraordinário, assinado por dois académicos espanhóis de grande prestígio, Gustavo Villapalos e Enrique San Miguel (1), é reproduzido um fragmento de uma carta enviada, em 1951, por Adenauer a Robert Schuman e que testemunha, de forma muito adequada, o sentimento de comunidade de valores, quase de predestinação, que animava o chanceler alemão perante a magnitude da tarefa que os desafiava: "Creio que é um sinal sumamente favorável, para não dizer providencial, o facto de que todo o peso das obras que se hão-de realizar gravite sobre os ombros de homens como o senhor, nosso comum amigo o presidente De Gasperi e eu próprio, persuadidos da vontade de desenvolver e de realizar o novo edifício da Europa sobre pilares cristãos. Creio que, ao longo da história europeia, poucas conjunturas tinham oferecido perspectivas tão favoráveis para levar a bom termo esta obra como as actuais."

O clima dos nossos dias está longe desta fé e desta confiança para enfrentar os novos problemas. Que os bispos insistam nas responsabilidades dos leigos católicos na vida política é normal. Mais interessante, porém, é verificar as iniciativas políticas que os leigos assumiram na história do século XX. A obra O Evangelho dos Audazes selecciona dez governantes que exerceram o poder, de forma exemplar, e na fidelidade às suas crenças: Konrad Adenauer, Balduíno I, Georges Bidault, Álcide de Gasperi, Ángel Herrera Oria, Robert Kennedy, Giorgio La Pira, Aldo Moro, Robert Schuman, Enrique Shaw.

Destaco a figura de Robert Kennedy (1925-1968), um católico muito convicto e muito praticante. Foi senador por Nova Iorque e assassinado (como o seu irmão John Kennedy) na campanha presidencial. A 18 de Março de 1966, convocou a nação atormentada com a guerra do Vietname, através de um discurso, na Universidade de Alabama, para uma nova concepção das relações internacionais:

"Os nossos problemas vão para além dos confins nacionais. O resto do mundo está mudando rapidamente, tanto como a nossa sociedade. Desde que terminei a escola superior, tomámos parte em duas guerras e neste momento estamos envolvidos num terceiro conflito. Assistimos ao desenvolvimento das armas nucleares e ao facto de que cinco países se tornaram potências atómicas, ao derrube dos impérios europeus e ao nascimento de mais de 70 nações, ao surgimento do novo império soviético e agora da China...

"No Outono passado estive na América Latina. No Nordeste do Brasil, vi homens a cortar cana debaixo de um sol abrasador desde as seis da manhã até às seis da tarde a troco de um salário semanal de um dólar e meio. Vi nas aldeias peruanas mães que perdiam a metade dos seus filhos antes de chegarem ao seu primeiro ano de vida. Na América Latina, assim como na Ásia e na África, vi crianças sem escola e sem assistência médica...

"Toca-nos a nós encontrar respostas novas, respostas que devem ser elaboradas não só a partir da tranquila contemplação dos estudos, mas no meio do pó e do suor, no meio do fragor e da excitação da luta. E estas respostas devem ser, sobretudo, justas..."

Ao sair das minas de cobre do Chile, desabafou: "Se trabalhasse aqui, seria comunista."

No seu último livro, Para Um Mundo Novo, recusa os caminhos fáceis da ambição pessoal e do êxito económico, "porque não foi esse o caminho que a história nos traçou":

"Gostemos ou não, vivemos em tempos interessantes. São tempos de perigo e de incerteza, mas também mais abertos à energia criadora do homem do que qualquer outro período da história. E, no fim, todos nós seremos julgados acerca do esforço que fizemos para a construção de uma nova sociedade."

Neste espaço, é impossível continuar com Robert Kennedy e apresentar as outras figuras audazes deste Evangelho vivido na política. Quando muitos se deleitam a denegri-la, o conhecimento destas personalidades exemplares pode fazer-nos sonhar com o advento de pessoas que olham para a construção da Europa como meio de superar o fosso crescente entre ricos e pobres, no interior de cada país, e entre povos e continentes. É um livro a traduzir.

 
(1) Gustavo Villapalos e Enrique San Miguel, El Evangelio de los Audazes. Políticos Católicos, Madrid, Libroslibres, 2004.