Bento Domingues - Triplo II: O blog do TriploV - Revista TriploV de Artes, Religiões e Ciências
 
 
 

         1. Nietzsche, o filósofo da “morte de Deus”, desejava encontrá-lo vivo no rosto dos cristãos, com pouca Sexta Feira Santa e muita Ressurreição. Aliás, “se a boa nova da vossa Bíblia estivesse escrita também no rosto, não teríeis necessidade de insistir, de modo tão obstinado, para que se creia na autoridade deste livro: as vossas acções deveriam tornar quase supérflua a Bíblia, porque vós deveríeis ser a própria Bíblia”.

BENTO DOMINGUES, op

Bento Domingues . Frade da Ordem dos Dominicanos, teólogo, professor, escritor

Não nos peçam para estar sempre alegres

 

       As boas receitas, mesmo de quem as não experimenta, merecem agradecimento. Na perplexidade actual, porém, a modéstia do bíblico Coélet, um investigador e pregador pouco enfatuado, nem céptico nem convencido, parece mais adequada.

        Para ele, sábio é aquele que “tem olhos na cabeça” e não corre atrás do vento; tenta compreender a sabedoria e o conhecimento, mas não ignora a loucura e a tolice; encontrou no vazio de tudo, tempo de chorar e tempo de rir; tempo de gemer e tempo de dançar; tempo de amar e tempo de odiar; tempo de guerra e tempo de paz.

       Nesta figura poética não há solução nem para a vida nem para a morte; mais perto do animal do que do anjo, não entende nem Deus nem os seres humanos, mas é a Deus, de quem o recebeu, que regressa o sopro da vida e não à terra escura da morte (Eclesiastes, sec.III a.C.).

       

       2. Essa sabedoria não está à espera de nada decisivo que possa mudar o rumo do mundo. S. Paulo, um rabino judeu e o primeiro escritor cristão, pensa que, com Jesus Cristo, se entrou numa nova era da humanidade. Nenhuma sabedoria humana, filosófica ou religiosa, estava à altura dessa revolução que não olha só para a frente ou para trás – uma ideologia do progresso ou da restauração de um passado mítico - mas que fixa o olhar da inteligência e do coração no mundo dos atirados para a margem da vida. Paulo julga que se não andassem cegos não teriam crucificado a própria encarnação da sabedoria de Deus (1Cor.1-2).

        Uma civilização arrastada pelos jogos insaciáveis da especulação financeira não pode ter olhos para o mundo daqueles que crucifica e abandona.

        No Novo Testamento, escrito a partir da experiência da fé na presença do Ressuscitado, surgem narrativas que procuram encontrar as razões que impediram - tanto os dirigentes romanos como as autoridades religiosas - de verem em Jesus, aquele que Espinosa classificou como “o maior dos filósofos” e, certamente, um dos maiores mestres de vida orientada pela sabedoria da inteligência e do coração.

O que me espanta e alegra na Missa, quando abro o Livro, é o convite insistente a proclamar o Evangelho de Jesus Cristo, seja qual for a passagem que se apresente e seja ela atribuída a autores tão diversos com S. Marcos, S. Mateus, S. Lucas ou S. João. “Evangelho” significa boa notícia, não simplesmente uma boa notícia, mas a de Jesus Cristo. A proclamação não se dirige aos contemporâneos dos escritores dessas espantosas narrativas de há 2000, mas às pessoas com quem estou a celebrar. O importante é tornar-me hermeneuta do sentido do texto para a presente situação espiritual, no contexto económico, social e político, sem resvalar nem para o comício, nem para o moralismo, nem para a conversa de chá de tília. Descobrir e celebrar o sentido, a beleza, o impulso de graça e a responsabilidade que Jesus imprime hoje na vida de todos os dias, é um processo de passagem do abatimento para a alegria e a coragem.

 

3. Dizer a alguém que acaba de perder o emprego ou que tem um cancro, alegra-te, sabe, necessariamente, a insulto. Mas compreendo a intimação de S. Paulo: Alegrai-vos sempre no Senhor. Novamente vos digo: Alegrai-vos. Por causa dessa ordem, na semana passada, surgiu o Domingo da Alegria.

Não me parece grande ideia fazer dele o Domingo da excepção e os outros, talvez sim ou talvez não. A insistência de S. Paulo desautoriza a transformação do cristianismo numa religião que só está bem de joelhos e cabisbaixa. Aliás, desistir da luta pela alegria é desistir do próprio Evangelho, pois é para que ela seja completa que Jesus Cristo veio a este mundo e não o pode abandonar (Jo 16, 20-24; 1Jo 1,1-4).

S. Lucas conta que Jesus enviou os discípulos a pregar. Regressaram entusiasmados com os resultados espectaculares que conseguiram. Jesus confirmou que era verdade, mas não deixou que isso se transformasse numa vaidade: «Não vos alegreis porque os espíritos se vos submetam; alegrai-vos, antes, porque os vossos nomes estão inscritos nos céus», isto é, no coração de Deus.

O espantoso do texto vem logo a seguir: «Naquele momento, Ele estremeceu de alegria, sob a acção do Espírito Santo e disse: Eu te louvo, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque ocultaste estas coisas aos sábios e entendidos, e as revelaste aos pequeninos (…) Voltando-se para os discípulos disse-lhes, a sós: Felizes os olhos que vêm o que vós vedes! Pois Eu vos digo que muitos profetas e reis quiseram ver o que vós vedes, mas não viram; ouvir o que vós ouvis, mas não ouviram. (Lc 10, 17-24)».

Se Jesus não tivesse dito mais nada, confesso que isto me bastava. Saber que nos dias bons e nos dias maus, aconteça o que acontecer, temos casa e mesa postas no coração de Deus, não é tudo, mas sabe bem.

 

Público, 18 de novembro de 2011

 

 

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