FREI BENTO DOMINGUES, OP

 

Conversão

e hierarquização dos desejos
 

 

 

Jornal PÚBLICO, Lisboa, 3 de Julho de 2011

1. O Conselho Permanente da Conferência Episcopal Portuguesa publicou, já depois das eleições, um brevíssimo comunicado, pedindo realismo e generosidade perante a crise. Gostaria que o esforço de equilíbrio financeiro não prejudicasse a economia e que não fosse relativizada a importância da saúde, da cultura e da educação. Destaca a prioridade do bem comum de toda a sociedade sobre interesses individuais e grupais. Os próximos tempos vão exigir partilha de bens, mas não é a mesma coisa partilhar generosamente, por amor à pessoa humana, e ser obrigado a distribuir. Na nossa sociedade, ainda existem muitas expressões de egoísmo que vão desde a corrupção ao enriquecimento ilícito, a uma visão egocêntrica do lucro, etc. Uma ética da generosidade, da honestidade e da verdade tem de fazer parte da cultura a valorizar. Este momento de crise pode levar-nos, a todos, a lançar os dinamismos para a construção de uma sociedade mais fraterna e solidária.

Destaquei, do breve comentário episcopal, as suas generosas exortações, embora pouco analíticas. Não deixam, no entanto, de ter importância sobretudo quando, hoje, já conhecemos o programa ultra liberal do Governo.

Um documento do Episcopado Francês, bastante abrangente sobre a situação presente (1), coloca o começo da crise nos EUA, na década 90 do século passado, depois da queda do Muro de Berlim (1989) que significava o fim da época comunista e o fracasso de um sistema de economia dirigida. A partir daí, o caminho da economia de mercado apresentava-se como o único possível sem precisar de bússola. Se a riqueza global do mundo talvez tenha aumentado, também a distância entre pobres e ricos, não só aumentou, como fez surgir novas pobrezas. O delírio da dominação da finança sobre a economia real acabou por mostrar a que ponto é ilusória a pretendida auto-regulação dos mercados. O que está em causa não é, apenas, um sistema bancário perverso nem o nível absurdo das remunerações dos quadros superiores, mas uma maneira de conceber a vida e o papel do trabalho, do dinheiro, do consumo e da partilha das riquezas. A economia liberal desregulada mostrou, não só os seus limites, mas também as suas perversidades. Aliás, o liberalismo económico acomoda-se a uma visão muito utilitarista das relações humanas que, por seu lado, encoraja o individualismo e o “cada um por si”, ferindo a coesão social.

2. Na base de qualquer reflexão sobre uma sociedade justa e uma vida de qualidade, está implícita uma concepção do ser humano. Hoje, confrontam-se, pelo menos, duas perspectivas: uma visão utilitarista que encara o ser humano como um ser solitário que só procura o seu interesse e o seu prazer individual e vê a sociedade como uma justaposição de indivíduos; uma outra vê o ser humano como um ser social, a sua felicidade é construída com os outros e não à custa deles e em seu prejuízo. Estas duas maneiras de ver, que coabitam na sociedade, comandam a nossa abordagem dos problemas que a afectam. Para viver em conjunto, é preciso encontrar a melhor articulação possível entre o individual e o colectivo. Isso implica um reequilíbrio constante entre interesses, muitas vezes, contraditórios. Este reequilíbrio não será feito da mesma maneira, se é privilegiada a visão utilitarista ou a visão relacional (2).

Daí, a importância de redefinir, em cada época e em cada circunstância, o que é o bem comum e o que ele implica. A Gaudium et Spes apresentou-o como “o conjunto de condições da vida social que permitem, tanto aos grupos, como a cada um dos seus membros, atingir mais plena e facilmente a própria perfeição, (…) tendo, cada vez mais, como horizonte, toda a família humana”.

3. Esta reflexão nasce dentro de preocupações cristãs pela vida em sociedade, sem a pretenderem dominar e procurando os caminhos para melhor a servirem. Seria descabida se o mundo fosse feito só de autênticos monges budistas: a forma mais radical de resolver todos os problemas e conflitos consiste na supressão do desejo. Hans Küng mostrou alguns paralelos notáveis entre Jesus e Buda (Gautama). Procurou, também, semelhanças entre monges budistas e monges cristãos (3).

Esquece-se uma diferença fundamental entre os dois caminhos. O movimento desencadeado por Jesus não procura nem implica a extinção do desejo, intrínseco à condição humana na busca da sua perfeição e do seu bem. É preciso mesmo inflamá-lo, mas isso só tem sentido no processo da sua conversão. Falamos muito de consumismo como um vício que o é, mas esquecemos que a sociedade está dominada pela publicidade, cuja técnica consiste em tornar infelizes quem não tem aquilo que exacerba os seus apetites. Parece-me que a grande mensagem do Evangelho, para os tempos actuais, consiste, precisamente, na conversão dos desejos, desde a infância até à velhice.

A conversão do desejo não significa nada enquanto não estabelecer um critério e uma hierarquia daquilo que realiza a pessoa em sociedade e aquilo que a degrada.

Se as situações difíceis servirem para uma revisão profunda de critérios de vida, a nível individual e social, não andaremos a alimentar ficções para “depois da crise”. A crise é global e civilizacional. Os países prósperos só andam mais enganados do que os outros.
 

 

(1) Grandir dans la Crise, Cerf, 2011

(2) Ver, a este respeito, o interessantíssimo livro de Frei Fernando Ventura/Joaquim Franco, Do eu solitário ao nós solidário, Verso de kapa, Lisboa, 2011

(3) Religiões do mundo. Em busca dos pontos comuns, Multinova, Lisboa, 2005

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