FREI BENTO DOMINGUES, OP

 

Não há teologias definitivas

 

1. Realizaram-se, nos dias 19 e 20 deste mês, as I Jornadas da Cultura sobre Religião, Igreja e Sociedade em colaboração com a Pastoral Universitária e a Vigararia Episcopal da Cultura e Diálogo da Arquidiocese de Braga. D. Jorge Ortiga abriu os trabalhos, situando-as no contexto europeu da urgência de diálogo permanente entre razão e fé, recorrendo ao célebre aforismo interactivo de Santo Agostinho: Crede ut intelligas, intellige ut credas”. Em tradução livre, é o mesmo que dizer: crê para que possas entender, entende para que possas crer.

Jornal PÚBLICO, Lisboa, 28 de Novembro de 2010

Está consciente de que “o espaço da Arquidiocese está dotado dum conjunto de Instituições Universitárias cujo potencial pode e deve ser aproveitado para desenvolver a inteligência do pensamento, suscitar o encontro e o debate cultural entre as diversas ciências humanas. A Universidade deve estar atenta ao meio cultural que a rodeia para exercer aí a sua missão inteligente de serviço à causa pública. A Igreja, por seu lado, também tem marcado a cultura com a originalidade do seu pensamento nas mais diversificadas manifestações artísticas. Tal como a Universidade, o mundo eclesial precisa sempre de extravasar o âmbito dos espaços sagrados e entrar na vida dos homens, propondo de forma clara e inequívoca a sua concepção acerca do sentido da vida humana”.

Em Braga, também haverá um “pátio dos gentios”, um espaço multidisciplinar, aberto a crentes e não crentes, com a principal preocupação de um diálogo franco e aberto sobre as várias dimensões da vida humana. Para não ficar em desejos platónicos, importa, como disse o Arcebispo, preparar conferências, tertúlias e exposições sobre as grandes questões que afectam o ser humano, a sociedade, a ciência e a economia, de modo a renovar mentalidades e dar lugar a novas relações entre fé e razão.

Há muita generosidade e bons propósitos nestas declarações. Convém não esquecer, porém, que é muito difícil, à intelectualidade do mundo laico e do mundo religioso, admitir que não tem conceitos nem sabe o caminho para entender o que, realmente, nos está a acontecer. Fórmulas encantatórias ou apocalípticas não podem substituir uma religião e uma sabedoria reflexivas, atentas ao que receberam e ao que lhes falta.

2. Os meios de comunicação preferem o grande espectáculo a esses exercícios de pensamento. O que encheu jornais e telejornais foi a resposta de Bento XVI à seguinte pergunta: Quer isso dizer que, em princípio, a Igreja Católica não é contra a utilização de preservativos? “É evidente que ela não a considera uma solução verdadeira e moral. Num ou noutro caso, embora seja utilizado para diminuir o risco de contágio, o preservativo pode ser um primeiro passo na direcção de uma sexualidade vivida de outro modo, mais humana”.  

Já vários Bispos e Cardeais tinham dito isso e muito mais como, por exemplo, o Cardeal Martini: “devo confessar que a encíclica Humanae Vitae engendrou, infelizmente, uma evolução negativa. Muitas pessoas afastaram-se da Igreja e a Igreja afastou-se delas. Causou muitos estragos. Um período de 40 anos, como aquele que acabamos de viver – tão longo como a travessia do deserto por Israel – poderia permitir-nos um olhar novo sobre estas questões”. Não se referia só ao preservativo. Perguntar-se-á: porquê, agora e só agora – tendo Ratzinger responsabilidades nesse deserto –, Bento XVI decidiu falar?

Têm sido dadas várias explicações. A última é cronológica. A declaração sobre o preservativo, na sua viagem a África, provocou muita indignação. A pedofilia dos eclesiásticos deixou o pontificado deste Papa numa aflição martelada, durante anos, pelos grandes meios de comunicação. O Vaticano estava prisioneiro dos seus próprios erros. Esta declaração, para já, fez de Bento XVI o Papa da coragem.

Seja como for, este acontecimento revelou-se uma grande operação de markting e talvez dê, por algum tempo, sossego a um homem muito cansado. Dará, também, que pensar? Como foi possível, durante tanto tempo, eclipsar a investigação teológica sobre a Humanae Vitae, de Paulo VI (1968)? Como se deixou considerar definitiva uma decisão provisória? Qual foi a liberdade de debate deste tema, nos espaços eclesiais? Deverá ser excluído da ética sexual o diálogo activo entre fé e razão?

3. Mesmo nos temas que não eram considerados dogmas de fé nem palavra infalível dos Papas – creio que desde João XXIII nunca mais se ouviu falar de nenhuma – caiu-se na armadilha de considerar muitas declarações importantes, para a orientação pastoral da Igreja, como definitivas e irreformáveis. Não se conseguiu favorecer o aprofundamento de valores permanentes, através de expressões mutáveis da sensibilidade cultural e ética de cada geração. Para não se cair no relativismo, tornou-se absoluto o provisório, uma forma degradante de idolatria.

Sem o dizer, talvez nos encontremos perante o começo de uma grande mudança. A atitude do Papa deixou entender que nem tudo é definitivo.

Vamos entrar na celebração do Advento, preparando a festa da encarnação de Deus na historicidade humana. Ao falar em Advento, dizemos que há muita coisa que ainda está para vir. O próprio Deus vai vindo.