Frei Bento Domingues, o.p.

 

A Ressurreição da Igreja
 

Público, Lisboa, 4 de Abril de 2010

1. O século XX da Igreja católica, até à década de 50, foi extremamente fértil em movimentos de carácter social, bíblico, pastoral, missionário, litúrgico, ecuménico e teológico. Foi também uma época abundante em medidas de repressão contra esses movimentos.

Coube a João XXIII, no seu breve pontificado (1958-1963), o mérito não só de suspender essa repressão, mas de tornar a Igreja católica um espaço de liberdade aberta ao diálogo em todas as direcções. Quem viveu de forma consciente a época anterior ao Concílio e a comparar com os gestos e os documentos do Vaticano II não pode deixar de se espantar com a revolução cultural que eles significam. A crise desencadeada pelo bispo Lefebvre (1905-1991) teve uma expressão muito reduzida. Serviu sobretudo como chantagem contra as reformas mais inovadoras.

Os grandes obstáculos vieram daqueles que se diziam a favor do Concílio e das suas reformas, mas para as contrariar. Nas suas aplicações viam, apenas, erros doutrinais, anarquia no campo litúrgico, influência marxista na pastoral social e, na ética, perda do sentido do pecado.

Depressa surgiu, neste clima, um documento fatal – a Humanae Vitae (1968) – acerca da concepção ética da vida sexual de solteiros e casados. Teve grande influência no aumento dos chamados “católicos não praticantes”. Por outro lado, a recusa das críticas ao celibato obrigatório dos padres teve efeitos devastadores nos ministérios ordenados. Voltou-se a insistir em que as mulheres, por serem mulheres, escusavam de pensar na possibilidade do sacramento da Ordem. Os divorciados recasados continuaram a ser considerados católicos e a serem incentivados a ir à Missa, mas a não poderem, inexplicavelmente, participar na comunhão eucarística que devem recomendar aos próprios filhos.

A Congregação para a Doutrina da Fé – presidida durante muito tempo pelo Cardeal Ratzinger – não foi capaz de viver descontraída perante o debate doutrinal e as novas exigências pastorais. Regressou à repressão dos teólogos que não reproduzissem o seu estilo. Amontoando documentos, julgou que podia parar as vertiginosas mudanças do mundo e ocultar os sinais dos tempos.

2. Perante a carência de padres, foi lançado, com grande aparato, o Ano Sacerdotal. Esta iniciativa de promoção do chamado sacerdócio ministerial, além da sua ambiguidade, está a ser esvaziada pela incapacidade que os Bispos e o Papa manifestaram em face do fenómeno da pedofilia de sacerdotes em muitas partes da cristandade. Não vale a pena clamar contra a evidente parcialidade com que este assunto tem sido tratado nos meios de comunicação. Continuam a ignorar as muitas instituições de acolhimento de crianças vítimas de violações nas próprias famílias e nos mais diversos grupos sociais. Parece-me que o mínimo que se pode pedir a todas as instâncias, confessionais ou laicas, é muito simples: quando for detectada, em alguém, uma tendência de atracção sexual por crianças, a única solução é impedir que essa pessoa tenha qualquer contacto com elas. Não discuto a natureza dessa tendência.

3. Repetem-me que não devo ceder à campanha montada contra a Igreja na pessoa dos Padres, dos Bispos e do Papa e não cedo. Volto, porém, ao primeiro ponto deste texto, à maior redescoberta da eclesiologia do Vaticano II: a hierarquia não é a Igreja. A hierarquia é um serviço indispensável à Igreja, na Igreja de todos. Por outro lado, o Papa é o bispo de Roma, não é o bispo de todas as dioceses católicas. A responsabilidade pela vida da Igreja, vida do Espírito de Cristo, é colegial. A “papolatria” é uma doença que faz mal ao Papa, aos Bispos, aos Padres e, sobretudo, ao povo cristão. Depois do Vaticano II, isto foi muitas vezes esquecido, como já recordei no ponto dois.

O povo cristão não teve formas, mediações, de fazer sentir a sua voz. A opinião pública na Igreja não foi nem cultivada nem escutada. É, por isso, normal que ninguém peça contas aos cristãos que, na base, são o rosto verdadeiro de Cristo e se colocam ao serviço dos mais pobres, dos excluídos da mesa comum e das vítimas da pedofilia. São a Igreja serva e pobre, para usar o título de uma obra célebre de Yves Congar, traduzida para português em 1964. Obra a não esquecer quando se prepara a vinda de Bento XVI a Portugal em grandes dificuldades para diversos extractos da nossa sociedade.

Não deve ser preciso lembrar aos organizadores desta visita o que S. Bernardo (1090-1153) escreveu ao Papa Eugénio III: “(…) tudo isso e as pretensões de prestígio ou de riqueza vêm de Constantino, não de Pedro”.

Celebramos, hoje, a Ressurreição de Cristo, mas celebramo-la por causa da nossa ressurreição, da ressurreição da Igreja, salva em esperança e ameaçada de morte como, no livro do Apocalipse, é dito à igreja de Sardes: “Conheço as tuas obras; tens fama de estar vivo, mas estás morto. Sê vigilante e fortifica aquilo que está a morrer, pois não encontrei perfeitas as tuas obras, diante do meu Deus. Recorda, portanto, o que recebeste e ouviste. Guarda-o e arrepende-te” (3, 1-3). Estás sempre perante o Mestre da compaixão infinita.

 

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