Frei Bento Domingues, o.p.

 

Uma inesgotável escola de espiritualidade

Público, Lisboa, 06.02. 2010

1. As edições Paulinas abriram uma colecção designada “Sabedoria Cristã”, permitindo ao cristianismo respirar a dois pulmões, como desejava João Paulo II: o da Igreja do Oriente e o da Igreja do Ocidente. Já saíram várias obras essenciais. A quarta é constituída pelos “Tratados e Sermões” de Mestre Eckhart (1260-1328), com prefácio do Prof. Paulo Borges e introdução de Fr. José Luís de Almeida Monteiro, O.P. Com outro volume de “Introdução a Mestre Eckhart”, de Michael Demkovich, procura-se recuperar, ainda que tardiamente, a voz deste grande místico ignorado em Portugal.

O grande especialista do pensamento medieval, Alain De Libera (1) – que vou seguir neste texto – sustenta que a filosofia alemã, nos séculos XIII e XIV, estava inteiramente concentrada na Ordem dos Pregadores. Alberto Magno († 1280) era alemão por nascimento e carreira. As suas ideias, porém, eram parisienses. Os filósofos alemães eram discípulos de Alberto Magno, formados por ele, em Colónia, no Studium Dominicano ou dependentes das suas teses.

O mais famoso dos discípulos foi Mestre Eckhart, filósofo, teólogo, místico e dotado de grande capacidade prática. Foi prior, provincial, vigário geral, professor na Sorbonne de Paris e em Colónia. É considerado o maior místico da Idade Média. A sua influência atravessou os séculos e as culturas, uma ponte entre o Ocidente e o Oriente. M. Heidegger aludia ao “velho mestre, de quem aprendemos a ler e a viver”. Continua a marcar a sua presença nas investigações feministas, sufistas e budistas, nos seguidores da New Age e, com redobrado fascínio, entre escritores cristãos de várias tendências.

2. Este místico é também aclamado como “pai da especulação alemã”. Foi condenado a 27 de Março de 1329 por um dos Papas de Avinhão, João XXII. Apesar de todas as censuras e reprovações, ler hoje Mestre Eckhart é continuar a beber numa fonte de água viva. É, também, uma escola, pois Eckhart teve discípulos imediatos de grande envergadura: Henrique Suso e João Tauler. Com ele, legaram ao cristianismo uma das suas mais altas e exigentes expressões, uma teologia contemplativa e prática, cujas palavras-chave são a “deificação” e o “desprendimento”, marcas da mística renana.

Durante uns sessenta anos, no século XIV, no vale do Reno, na região de Colónia e de Estrasburgo, viveu, pregou, escreveu e meditou uma extraordinária geração de homens chamados místicos renanos. Pertenciam os três – Eckhart, Suso e Tauler – à Ordem Dominicana. Eram intelectuais: Eckhart era o terceiro alemão com o título de Mestre em Teologia, pela universidade de Paris, a maior distinção intelectual que se podia imaginar naquela época. Os outros eram seus alunos e discípulos. Entre 1300 e 1360, esses três irmãos mendicantes transformaram o modo de pensar e de viver o cristianismo, inventando um tipo de intelectual que o mundo medieval não tinha conhecido até então: o de “mestre de leitura” que fosse, também, e em primeiro lugar, “mestre de vida”.

3. Na Idade Média, sempre houve espirituais e sábios. Na época das Universidades – a partir dos anos 1200 – existiam intelectuais, profissionais do pensamento, numa palavra, “clérigos”. Com Eckhart, Suso e Tauler surge outra realidade. Pela primeira vez, teólogos profissionais pregavam, ensinavam e orientavam, falando na língua dos leigos, perante auditórios de não profissionais que ignoravam tanto a filosofia como a teologia sistemática. Popularizaram, ou melhor dito, desprofissionalizaram a sabedoria cristã. Dirigiam-se ao mundo dos “simples”.

Este novo destinatário do saber e da fé em busca de inteligência não era fruto de uma iniciativa pessoal, fazia parte da sua missão de irmãos pregadores. Tratava-se, sobretudo numa época de intensa vida religiosa, de conduzir um imenso mundo de mulheres, monjas ou beguinas, pelos caminhos da verdadeira doutrina. De facto, a espiritualidade feminina era, na altura, tão florescente que inquietava o magistério. A singularidade dos três pregadores consistiu em ter cumprido a sua função, colocando-se na escola do seu auditório, aprendendo com o seu contacto e aceitando e vivendo todas as suas consequências.

Era duro e sofredor o mundo em que viveram: o papado estava em guerra ideológica com o império; a peste começava a assolar a Alemanha; queimavam-se os livros e, por vezes, os seus autores. Era uma época de censura e de condenações. No entanto, era também uma época de discussões e de pôr em causa velhos saberes. Tempo de G. Occam e do nominalismo, do florescimento da lógica e da nova física. Tempo, também, de espirituais, da contestação no seio da Igreja, da reivindicação de uma forma de vida evangélica inspirada na pobreza dos primeiros cristãos, de Cristo e dos apóstolos.

A posteridade tão diversificada, por vezes contraditória, desta escola – no campo da filosofia, da teologia, da espiritualidade e da mística – já começou a ser estudada por Alain De Libera, com muitas outras colaborações (2). Quais serão, porém, as razões da atracção que continua a exercer em novos estilos de espiritualidade e de teologia, no Oriente e no Ocidente?

(1) Alain De Libera, A Filosofia Medieval, Loyola, São Paulo, 1998, p.397.

(2) Alain De Libera, Eckhart, Suso, Tauler, ou la Divinisation de l'homme, Bayard, Paris, 1996; Id., Maître Eckhart et la Mystique rhénane, Cerf, Paris, 1999.

 
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