Frei Bento Domingues, o.p.

Bons sinais

Público, Lisboa, 06.07. 09

1.Este texto pode servir para anunciar outros com rumores do passado e do futuro, a partir do nosso presente. Ainda há quem se lembre do longo conflito entre as decisões do Vaticano, dos anos oitenta do século passado, e certas correntes do pensamento social do mundo católico, de modo particular as situadas no âmbito da Teologia da Libertação. Esta era acusada de se ter deixado influenciar pelo marxismo, quer de marca soviética, castrista ou libertária e que viu a sua ruína na queda do Muro de Berlim e no desmantelamento do império comunista.

Pensava-se que a Igreja iria abandonar definitivamente a questão social e centrar-se na sacristia e seus anexos. Entretanto, os movimentos “espiritualistas” passaram a ser acusados de revelarem mais sede de poder na Igreja e na sociedade do que paixão pelo espírito de Cristo. Por seu lado, a instituição eclesiástica perdeu, pelo abandono e pela idade, muitos padres e os poucos novos, que vão chegando – dada a descontinuidade de gerações –, parece que não conseguem perceber a significação do Vaticano II, para a missão da Igreja, no mundo contemporâneo.

É preciso cuidado com todos os esquemas simplistas. Há, no entanto, apesar de todas as ambiguidades, um conjunto de sinais que mostram que algum equilíbrio de tendências se começa a esboçar.

2. O Papa já assinou uma nova encíclica, Caritas in Veritate, fazendo a ponte entre a encíclica Populorum Progressio (1967), de Paulo VI, e os desafios que temos diante de nós. As Jornadas Pastorais do nosso Episcopado acabam de desenhar, para os católicos portugueses, uma nova pedagogia social, compreendendo que são os pobres o verdadeiro “altar” de Deus. Já está publicado o documento da Comissão Teológica Internacional, resultado de uma investigação preocupada com uma ética universal e apresentada como “um novo olhar sobre a lei natural”, tendo em conta todas as contribuições do passado e do presente. Está anunciada, para Novembro, a “Carta da Compaixão”, preparada desde 2008. Destina-se a congregar todos aqueles, religiosos ou não, que não suportam a situação actual do mundo da exclusão, atentos à antiga “regra de ouro” na sua formulação negativa e positiva: não fazer aos outros o que não desejamos que nos façam a nós e fazer-lhes aquilo que gostaríamos que nos fizessem.

São bons sinais, embora a situação seja complexa. A pastoral da Igreja já compreendeu que não pode preocupar-se, apenas, com a aliança da cultura e da fé no campo da diversidade das expressões filosóficas e artísticas. As tecnociências, que estão a modificar a imagem que o ser humano tinha da sua própria natureza, da sua origem, das suas relações inter-pessoais, inter-povos e com os outros seres vivos ou não, levantam novas questões à inteligência da fé e exigem um confronto entre diversas concepções éticas. Mediante o controlo da reprodução humana, do comportamento psíquico e das doenças, as tecnociências marcam já alguns aspectos da cultura do futuro. É preciso, para isso, que haja futuro.

3. Todos estes sinais fazem apelo a exigências éticas, sabendo que o capitalismo é amoral. Como lembra o filósofo A. Comte-Sponville, o capitalismo não funciona pela virtude, pela generosidade, pelo desinteresse, mas no interesse pessoal ou familiar: funciona por egoísmo. Por isso, é ele tão forte, pois nunca falta egoísmo. O mercado é incapaz de se auto-regular de modo socialmente aceitável. E a moral não basta. Entre o poder cego da economia e a fraqueza da moral, só resta a política e o direito para fixar os limites do que não é negociável, para que os valores morais dos indivíduos controlem, em parte, a realidade amoral da economia.

Hoje, a questão situa-se entre a escala mundial dos problemas económicos e a escala nacional dos nossos meios de acção. Este desfasamento entrega a política nacional à sua impotência. Como não se pode abolir a mundialização dos problemas, para limitar os efeitos perversos do capitalismo, é necessária uma política mundial que supõe um compromisso entre Estados: “quanto mais lúcido se for acerca da força da economia e da fraqueza da moral, mais exigente se deve ser sobre o direito e a política” (1).

Jacques Attali nota que o crescimento da economia criminosa pode vir a dominar a economia real. A Somália é, hoje, uma economia de mercado sem Estado, a economia das máfias e da traficância. Tendo isto em conta, as crises até podem ser proveitosas, se provocarem a tomada de consciência dos perigos que nos espreitam em relação às gerações presentes e às gerações futuras das quais só nós podemos ser a voz. Se não se actuar depressa, a selvajaria absoluta arrebentará com tudo; mas tudo pode ser salvo se houver consciência da importância de um Estado de direito global que actue no interesse de todos.

Há quem diga que, por razões económicas (o crescimento) e por razões morais (o desenvolvimento), caminhamos para uma catástrofe ecológica. Se, porém, acolhermos o alarme desta crise, poderemos converter os nossos estilos de vida e dar bons sinais de que juntos podemos enfrentar o futuro que exige uma política global. 

   Cf. Le capitalisme en crise, in Le Monde des religions, nº 36 (2009) 78-81.

 
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