Ressurreição / insurreição

 

 

Vivemos, hoje, o culto do corpo. No adágio latino, mens sana in corpore sano, a mente parece sacrificada. Não é bem assim. Surgem sempre novas formas de espiritualidade. Para alguns, esse grande investimento dissolve-se na terra ou nas cinzas. Depois da morte não há mais nada.

BENTO DOMINGUES, O.P. ......................Público, Lisboa, 8 de Abril de 2007

1. As actuais discussões sobre a eutanásia exprimem os paradoxos insuperáveis da vida e da morte e a ambiguidade dos princípios morais e dos conceitos básicos da bioética que se referem à fase final da vida humana (1). Procura-se ocultar a separação irremediável: não se morre em casa, no seio da família e dos amigos, as crianças são impedidas de ter contacto com os moribundos. No entanto, as televisões transmitem a morte em directo e nas suas expressões mais violentas e horrorosas. A morte tornou-se omnipresente e obscena. Mas, no fundo, só é verdadeiramente real quando se torna um acontecimento pessoal, quando sentimos a impossibilidade de comunicar com as pessoas que mais amamos.

Vivemos, hoje, o culto do corpo. No adágio latino, mens sana in corpore sano, a mente parece sacrificada. Não é bem assim. Surgem sempre novas formas de espiritualidade. Para alguns, esse grande investimento dissolve-se na terra ou nas cinzas. Depois da morte não há mais nada. Quando morre uma personalidade célebre, faz-se o elogio da obra. A pessoa não conta. O sujeito desaparece. Só há “imortalidade”, e mesmo esta limitada, para as produções de grande valor artístico, filosófico ou científico. Não há esperança para as pessoas, apenas para o seu património.

O ser humano é, todavia, o único que tem conhecimento reflexo de que é mortal. Há um milhão de anos que existe um tratamento ritual do cadáver. Cerca de 100 mil anos atrás, os sepultamentos humanos seguiam regras rituais que expressavam a esperança de que a vida continuava. Existem, no entanto, várias formas de pensar “o depois da morte”: a sobrevivência da alma, a reencarnação, a ressurreição, etc.. Dentro de cada uma dessas formas, ainda há variantes.

2. A mim repugna-me a aniquilação do ser humano. Conheço pessoas que me dizem: não confundas desejos e medos com realidades. Para elas, tudo acaba com a morte. Não creio que sejam a maioria. Mas a geografia do além, variável de cultura para cultura, parece ser uma transferência do que vemos, experimentamos, desejamos ou tememos neste mundo. Em certas concepções orientais, a reencarnação é um castigo até chegar à iluminação final. No Ocidente, fala-se da reencarnação como uma simpática segunda oportunidade, um melhoramento de nota.

Na catequese da minha infância, estava tudo muito bem arrumado: o céu imediato para os excepcionalmente bons, alguns até estavam canonizados; outros, teriam de passar pelo purgatório para não estragarem o céu; os muito maus, os que morriam em pecado mortal, iam para o inferno, de onde nunca poderiam sair; para as criancinhas que morriam sem o baptismo, havia um lugar neutro sem alegria nem sofrimento, o limbo. O céu e o inferno eram demasiado para elas: não tinham feito pecados que merecessem o inferno nem actos virtuosos que abrissem as portas do céu.

3. Às vezes, tenho de assistir a homilias que continuam com essas aulas de geografia do além, da qual os pregadores não podem saber rigorosamente nada. Quando, porém, essa geografia imaginária é transfigurada pela arte, pode suscitar uma profunda interrogação sobre a condição humana e sobre a nossa ignorância de Deus.

A ressurreição, no judaísmo do tempo de Jesus, não era uma crença unânime. E, pelos vistos, o mesmo acontecia entre os primeiros cristãos. Daí, a argumentação de S. Paulo: «se os mortos não ressuscitam, também Cristo não ressuscitou. E, se Cristo não ressuscitou, vazia é a nossa pregação, vazia também é a vossa fé» (1Cor 15, 13-14).

Paulo afirma que, como ele, foram muitos os que testemunharam a presença de Cristo ressuscitado, mas não tem uma teoria sobre a ressurreição. Recorre às sugestões da imagem da semente que morre e se transforma numa planta. Sugere que a morte não pode ser mais forte do que o amor que Deus nos tem.

A vida humana é uma evolução contínua. Se a morte fosse a última palavra, a pessoa humana estaria a evoluir para o nada. Jesus tem outra maneira de ver esta realidade: a alegria da fé consiste em acreditar que a personalidade de cada um de nós está inscrita no coração de Deus (Lc 10, 20). A morte não poderá vencer este amor eterno.

Aqui, devemos ser modestos, dar espaço ao silêncio, rever os nossos conceitos e a nossa imaginação. A questão teológica não deve resvalar para o “como” da ressurreição, mas para os avisos da “teologia negativa”: quando se trata de Deus e de tudo o que lhe diz respeito, sabemos sobretudo como não é. Basta-me que ressurreição signifique que a personalidade de cada um de nós não se confunde com os restos mortais – que foram cremados ou enterrados – e que seja refeita pela infinita misericórdia de Deus.

Ser racional é dar-se conta dos limites da razão. A fé não tem respostas prontas para todas as questões, mas põe a nossa vida em questão. Quem se preocupa com a ressurreição dos mortos comece por se ocupar com a insurreição contra tudo o que estraga a vida e deixe o resto nas mãos de Deus.

 
(1) Emilio García Estébanez, La eutanasia activa y la muerte digna, in “Estudios Filosóficos” LV (2006), 339-380.