FÁBRICA DE DESEJOS

 

1. Em Dezembro de 2006, Hugo Chávez foi reeleito presidente da Venezuela com 63 por cento dos votos. Em Janeiro deste ano declarou perante o Parlamento: "Juro diante de Cristo, o maior socialista da História, que não deixarei repousar nem os meus braços nem a minha alma, consagrando os meus dias e as minhas noites à construção do socialismo venezuelano". Concluiu parafraseando Che Guevara: "Mãe Pátria! O socialismo ou a morte. Juro".

BENTO DOMINGUES, O.P. ...............................Público, Lisboa,11.3.2007

Não estava a fazer humor. Passados alguns dias, entre outras medidas, resolveu não renovar a licença da empresa privada, Radio Caracas Televisão (RCTV), uma das vozes que mais o criticava. Hugo Chávez também não gostou de ver a hierarquia católica a discordar da sua cristologia socialista: "a Igreja expôs-se a ser condenada por Cristo" e encarregou o Ministro do Interior de enviar, à Conferência Episcopal, alguns livros "para que os bispos estudem, sobretudo a Bíblia". O presidente da Conferência Episcopal acabou por desejar que o socialismo que se está a instaurar no país seja plenamente democrático e que não se pareça com os socialismos do século passado que tanta dor, morte e miséria produziram nos países da Europa de Leste.

Esta mistura histriónica da religião com a política é mais do que uma vingança da castigada "teologia da libertação" dos anos 80. Para Jorge Castañeda, um analista arguto e bem informado, o que está agora em causa, naquela região, é a grande batalha pela América Latina entre os países apoiantes de H. Chávez e os alinhados com a política de George W. Bush obrigado a uma viagem acompanhada de alguns dólares e uns dedos de conversa ecológica para refazer a imagem degradada dos EUA e calar as vozes da revolução que dispõem actualmente de recursos como nunca tive- ram no passado.

2. Foi também em Janeiro que se reuniram, em Nairobi, o VII Fórum Social Mundial e o II Fórum Mundial de Teologia.

Nas primeiras reuniões do Fórum Social Mundial, os fenómenos religiosos e as religiões não tinham sido muito valorizados como factores de transformação social. O clima mudou. O Fórum Mundial de Teologia nasceu para preencher essa lacuna. A teologia tem práticas, tendências, movimentos, causas, rostos e nomes muito diversos em todos os continentes. O seu confronto pode servir para globalizar a esperança. Foi realizado em África, não apenas por ser um continente esquecido, mas por estar integrado no mundo capitalista como periferia explorada. O rendimento médio por habitante é hoje dez por cento inferior ao de 1980!

Nenhum destes grandes encontros se esgotou a questionar o capitalismo, embora ambos o continuassem a documentar como um sistema obsceno e obsoleto pela sua permanente lógica de exclusão. Mas as alternativas para que a barbárie não se alargue precisam de ser mais trabalhadas. O horizonte da utopia não deve inspirar apenas ciclos de esperança fácil e de desânimo.

3. Nos gritos do populismo político-religioso contra o capitalismo, corre-se o risco de esquecer o essencial. Repete-se, desde o século XIX, que, devido às suas contradições, o capitalismo não pode sobreviver. É certo que precisou, várias vezes, da mão visível do Estado - medidas de tipo político, fiscal e legal - para responder às incapacidades da "mão invisível" do mercado. Hoje, o capitalismo está globalizado e é nele que vivem, bem ou mal, americanos e europeus, indianos e chineses, oligarcas russos e príncipes sauditas. Por uma questão de sustentabilidade - e sem contar com as extravagâncias dos super-ricos - pensa-se que o nosso planeta não aguentaria 6 500 milhões de pessoas a viver, como é desejável e como já vivem hoje os consumidores da classe média do rico hemisfério norte.

O ser humano, movido pelo desejo do Ilimitado perde-se no labirinto dos desejos desgarrados e distorcidos, tornados mediaticamente inadiáveis como uma droga. A genialidade do capitalismo contemporâneo consiste precisamente em ser uma fábrica, em contínua produção, de novos desejos. A publicidade vive de nos tornar infelizes se os não satisfizermos.

O Budismo dispõe de uma resposta clara e radical: a supressão do desejo através de um caminho de auto-iluminação marcado por verdades e práticas bem estabelecidas e numeradas. Os paralelismos entre Buda e Jesus, entre o cristianismo e o budismo têm sido muito estudados. Mas também podem ser apontadas profundas diferenças. O percurso cristão não segue a via da auto-iluminação nem procura a supressão, mas a conversão do desejo como puro dom da graça divina, enquanto iluminante e transformante da condição humana. Mas a graça da conversão do desejo não suprime, reorienta as energias e paixões humanas. Pode e deve acolher sabedorias, regras de vida e métodos de espiritualidade de todas as proveniências para hierarquizar necessidades materiais e espirituais num mundo dominado pela fábrica de novos e insaciáveis desejos que nos devoram e alimentam ódios e violência. Paz com a Terra e o Céu, paz dentro de nós próprios, paz e a justiça com os que precisam da nossa solidariedade.