Cinzas da Quaresma

 

1. Reunida em Assembleia extraordinária, a Conferência Episcopal Portuguesa, na sequência do último Referendo, decidiu propor algumas reflexões pastorais aos cristãos e à sociedade em geral (16/02/07). O jornalista, António Marujo, investigou os "Alçapões da doutrina oficial católica na questão do aborto" (Público, 20/02/07). A discussão vai certamente continuar e, agora, mais centrada na configuração do "aconselhamento".

BENTO DOMINGUES, O.P. ...............................Público, Lisboa, 25.02.2007

Esta Quaresma estará, por isso, marcada com as cinzas de um debate que o fogo da Páscoa poderá transfigurar. Bento XVI, na sua mensagem, encara o mundo como um grande caso de amor, de agápê e de éros, apresentado numa bela perspectiva teológica. Não esquece, porém, a tão discutida lei natural, que considera o único baluarte válido contra o arbítrio do poder ou os enganos da manipulação ideológica. No discurso dirigido ao Congresso sobre a Lei Moral Natural (17/02/07), afirma que "nenhuma lei feita pelos homens pode subverter a norma escrita pelo Criador, sem que a sociedade seja dramaticamente ferida naquilo que constitui o seu próprio fundamento basilar". Julga o Papa que "a contribuição dos homens de ciência é de importância primária. Juntamente com o progresso das nossas capacidades de domínio sobre a natureza, os cientistas devem contribuir também para nos ajudar a compreender profundamente a nossa responsabilidade pelo homem e pela natureza que lhe é confiada. Tendo isto como base, é possível desenvolver um diálogo fecundo entre crentes e não crentes; entre filósofos, juristas e homens de ciência, que podem oferecer também ao legislador um material precioso para a vida pessoal e social".

2. Importa saudar esta persistente vontade de articular as expressões da fé e da razão. Não basta, porém, o voluntarismo para a concretizar. Foi essa, aliás, a crítica de Paul Valadier à Instrução, Donum Vitae, publicada, em 1987, pela Congregação para a Doutrina da Fé: "Ao situar-se no terreno antropológico, o magistério pastoral de responsabilidade expõe-se, legitimamente, à discussão. Argumentos de razão, mesmo revestidos da aura de quem os pronuncia, continuam a ser argumentos de razão. É mesmo agradável que, ao proceder assim, a autoridade eclesiástica se sinta obrigada a desenvolver longa, minuciosa e rigorosamente, argumentos oferecidos deste modo ao debate público da razão comunicacional. Todavia, surge uma contradição quando, depois de ter assim avançado no terreno da razão, o magistério eclesiástico reivindique que este discurso de razão seja, na realidade, ouvido como um discurso de autoridade, ou quando afirma que se deve aceitar, não em primeiro lugar pelos argumentos avançados, mas em virtude da autoridade que os pronuncia. Esta pretensão a falar razão com autoridade é contraditória e mistura os domínios. Arrisca-se sobretudo a fazer perder crédito a este tipo de discurso ao deixar suspeitar de uma simulação: finge-se falar razão, mas afirma-se saber, autoritariamente, o que a razão deve dizer. O que desconhece o regime da razão" (1).

Para lá desta tradução deficiente, o jesuíta francês reage a um comunicado do Cardeal Decourtray, na altura, presidente da Conferência dos Bispos de França, que mandava calar contestações e polémicas provocadas pelo documento referido, declarando: "A autoridade doutrinal e moral desta Instrução não se tira da argumentação racional proposta, nem da enumeração das reacções que origina; deriva da responsabilidade magistral do papa que deixa e manda ensinar esta doutrina".

3. Paul Valadier termina a sua obra citada, inconformado, em parte, com a seguinte posição de Albert Camus: "Se tivesse de escrever um livro de moral, teria 100 páginas e 99 estariam em branco. Na última, escreveria: só conheço um único dever que é o de amar". E Valadier tem razão: "um amor que não tivesse conteúdo, que não considerasse o conjunto da condição humana no seio das relações que a constituem, um amor que não viesse concluir um trajecto, retomando-o como um conjunto último, ou que não fosse esse sopro que abrange toda uma vida, seria um amor vazio e vão, uma ilusão de amor, uma palavra vazia, uma projecção idealizante de si sobre outrem, justamente tudo o que a condição cristã rejeita como sendo a sua caricatura (...). Tal como todas as coisas raras e preciosas, o amor só deve ser evocado com tacto, delicadeza e, certamente, sem inflação".

Nesta Quaresma, a Comissão Nacional Justiça e Paz cumpriu algumas dessas exigências do amor. Ofereceu aos cristãos, às suas comunidades e organizações, assim como à sociedade civil, um contributo sólido para o debate de ideias, no seio de novas expressões de criatividade e de novas formas de intervenção cívica. Esta reflexão sobre o nosso mundo e a nossa sociedade interpela os actuais estilos de vida, procura alternativas e, contra o pessimismo, acolhe "sinais de ressurreição".

Sem isto, a Quaresma é pouco mais do que cinzas rituais.

 
(1) Paul Valadier, A Condição Cristã, Lisboa, Piaget, 2004, p. 211.