Recados
do Papa aos Bispos



 

BENTO DOMINGUES, O.P. ..............................Público, Lisboa, 18.11.2007

1. Na semana passada, para me provocarem, várias pessoas diziam com ar de troça: então o Papa deu um solene puxão de orelhas aos nossos Bispos!... Era um eco espontâneo ao tom geral dos meios de comunicação social acerca do discurso de Bento XVI ao concluir a visita ad limina dos Bispos Portugueses.

A reprimenda geral é atribuída, sobretudo, a duas passagens do sermão. A primeira reza assim: “É preciso mudar o estilo de organização da comunidade eclesial portuguesa e a mentalidade dos seus membros para se ter uma Igreja ao ritmo do Concílio Vaticano II, na qual esteja bem estabelecida a função do clero e do laicado, tendo em conta que todos somos um, desde que fomos baptizados e integrados na família dos filhos de Deus, e todos somos co-responsáveis pelo crescimento da Igreja”.

A segunda vai além do estilo: “À vista da maré crescente de cristãos não praticantes nas vossas dioceses, talvez valha a pena verificardes a eficácia dos percursos de iniciação actuais, para que o cristão seja ajudado, pela acção educativa das nossas comunidades, a maturar cada vez mais até chegar a assumir, na sua vida, uma orientação autenticamente eucarística, de tal modo que seja capaz de dar razão da própria esperança de maneira adequada ao nosso tempo”.

O Papa sabia, sobretudo pela própria informação dos Bispos, que não há só a maré crescente de cristãos não praticantes. Esta maré atinge também os padres: uns morrem e outros não querem nascer, como se vê pelo número decrescente de seminaristas e de baptizados. Perante esses números, o Bispo Carlos de Azevedo, porta-voz da Conferência Episcopal Portuguesa, comenta: “Olhamos para estes números sem dramatismos nem angústias, porque eles reflectem uma fase de mudança que não é situada apenas em Portugal”. O Papa teria dramatizado a resignação aparente do Bispo.

2. Não me parece que os Bispos portugueses tenham ido ao Vaticano para saber como é que vai a Igreja em Portugal. De Roma só pode vir o que lá chega. Se não foram eles a queixar-se das relações entre clero e laicado, é porque os dicastérios romanos têm outras fontes de informação, que talvez não sejam só as do novo “beatério ilustrado”. Seja como for, não há dúvida que, no governo das paróquias e das dioceses, também se devia aplicar um programa simplex. Muitos se queixam da excessiva burocracia com bagatelas administrativas e com falta de espírito cristão de acolhimento universal.

Por outro lado, se a comunidade eclesial portuguesa e a mentalidade dos seus membros precisam de se colocar ao ritmo do Concílio Vaticano II, não ficaria mal aos Bispos lembrar ao Santo Padre e à Cúria romana que, embora haja muitas Igrejas locais que resistem à renovação, a fonte principal dessas oposições radica no próprio Vaticano. O grande “cisma”, pai de muitas dificuldades, na Igreja católica contemporânea, aconteceu sobretudo a partir da encíclica Humanae Vitae. A inteligência cristã da sexualidade ficou paralisada: quem concorda, concorda; quem não concorda ou deixa a Igreja ou passa à categoria de não praticante. Um outro ponto, cada vez mais importante, é o seguinte: não se quer discutir a necessidade que muitos sentem da celebração cristã do casamento dos divorciados. Convidá-los para a Eucaristia e proibi-los de comungar é como convidar alguém para jantar e proibi-lo de comer. Depois, quando os filhos fizerem a Primeira Comunhão, vão pensar: então isto da comunhão só vale para as crianças, não vale para os pais? Outra questão é o estatuto dos ministérios ordenados. Ao não permitir a ordenação de homens casados nem de mulheres, o resultado é este: exalta-se cada vez mais a Eucaristia, mas há cada vez menos possibilidades de a celebrar. No seu discurso, o Papa, em vez de abrir o caminho, fugiu à questão da atribuição dos ministérios sacramentais com a nebulosa habitual de misturar planos.

Quem desejar ver as consequências negativas das opções erradas acerca da preparação para os ministérios ordenados deve ler um livro extraordinário: Por caminhos não andados. Seminário dos Olivais 1945-1968 (1).

3. Na eclesiologia de comunhão do Vaticano II, evocada pelo Papa no seu discurso, não se pode esquecer que a redescoberta da colegialidade de todos os Bispos não está a ser inteiramente vivida. Isto significa que o exercício do primado do Bispo de Roma não se destina a fazer dos outros Bispos seus súbditos. Impõe que os Bispos façam sentir, ao Bispo de Roma, que certas orientações romanas estão a minar a vida das Igrejas locais com repercussões terríveis para a imagem universal da Igreja no mundo contemporâneo. Bento XVI não podia ser mais acertado ao dizer que as questões da Igreja não a devem distrair da sua verdadeira missão: “não deve falar primariamente de si mesma, mas de Deus”. No entanto, se ela não resolver as questões do seu funcionamento interno, continuará com essa pedra no sapato e tolhida para falar da salvação de Deus, no seio da enigmática história humana.

 

(1) Coord. de Artur Lemos, depósito Multinova.