Advento de Deus

e nosso advento





Regozijai-vos sempre no Senhor; outra vez digo, regozijai-vos. (Filipenses 4,4)

BENTO DOMINGUES, O.P. ........................ ......... Público, Lisboa, 1.12.2007

 

1. O calendário litúrgico lembra, todos os anos, aos cristãos, que entramos no Advento. É uma palavra de futuro que, ao repetir-se todos os anos, parece evocar o eterno retorno do mesmo.

É o tempo que nos devora e não é o tempo que nos consola. Se parece escandaloso ter nascido sem ser consultado, não é com alegria que alguém pode escolher o tempo e o modo de morrer. Nietzsche, no entanto, desafia-nos a dançar nas prisões. Ao aproximar estas imagens contraditórias, evoca as estranhas relações do ser humano com o tempo. Se tivéssemos apenas cadeias, cairíamos no desespero; se não houvesse senão a dança, viveríamos na ilusão. A nossa relação com o tempo vive destas duas evocações: prisão e liberdade, mas a lógica do tempo escapa-nos. Podemos fechar os olhos e criar a ilusão de que o tempo não existe. Logo que os abrimos, o presente está sempre a ir para o passado sem nos poder dizer o futuro. É a nossa condição: viver nesta passagem fugaz e fugidia, onde tudo se inscreve e tudo se apaga.

Para o “Eclesiastes”, um belo livro do Antigo Testamento, a vida parece feita apenas de enganos: «Ilusão das ilusões – disse Qohélet – ilusão das ilusões, tudo é ilusão”. Mas ficar aí, também seria uma ilusão. Consentir na nossa finitude é o começo de sabedoria. Segundo o poema de Qohélet, «para tudo há um momento e um tempo para cada coisa que se deseja debaixo do céu: tempo para nascer e tempo para morrer; tempo para plantar e tempo para arrancar o plantio; tempo para matar e tempo para curar; tempo para destruir e tempo para edificar; tempo para chorar e tempo para rir; tempo para se lamentar e tempo para dançar; tempo para atirar pedras e tempo para as ajuntar; tempo para abraçar e tempo para evitar o abraço; tempo para procurar e tempo para perder; tempo para guardar e tempo para atirar fora; tempo para rasgar e tempo para coser; tempo para calar e tempo para falar; tempo para amar e tempo para odiar; tempo para guerra e tempo para a paz» (Ecl 3, 1-8).

2. Há dois mil e oitocentos anos, o profeta Isaías – evocado, hoje, na primeira leitura da Missa – esperava que Jerusalém fosse, finalmente, transformada na cidade da paz para todos os povos: «converterão as espadas em relhas de arado e as lanças em foices. Não levantará a espada nação contra nação, nem mais se hão-de preparar para a guerra» (Is 2, 1-5).

Dir-se-á que a megalomania do desejo não tem limites. Espera contra toda a esperança e recomeça, mesmo depois das maiores desilusões. Em vez da paz, a chamada Terra Santa transformou-se na terra da violência e do sofrimento sem fim, de gastos astronómicos em armamento, que nem diante da bomba atómica recuaram.

Cada tentativa para chegar a um Tratado de Paz tem acabado numa desilusão. Quando, em 1995, tudo parecia bem encaminhado, Rabin, denunciado como traidor do Estado judaico, foi abatido a tiro por um judeu. Sempre que se aproximam as presidenciais nos EUA, a estratégia vira as suas baterias para as negociações. É o que está a acontecer agora, em Anápolis. Abriram-se novas negociações acordadas pelo presidente da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas, e o primeiro-ministro de Israel, Ehud Olmet, com o patrocínio de G. W. Bush. Pretendem terminar, no final de 2008, com o reconhecimento comum de dois Estados – Israel e Palestina – a viverem lado a lado em paz e segurança. Como à partida tudo aponta para mais um fracasso, esperemos que Deus escreva direito por linhas tortas.

3. Não invoquemos, no entanto, o nome de Deus em vão, porque não tem culpa nenhuma da loucura dos homens. Espero que o advento do Deus da paz esteja sempre a acontecer. Se assim não fosse, Deus não seria Deus, o excesso permanente do dom. Nós, seres humanos, é que inventamos cada vez mais razões para adiar a reconciliação, mais prontos para a guerra do que para a paz. A omnipotência de Deus é discreta porque não substitui nem a nossa razão nem a nossa vontade.

Há sempre Deus a mais e Deus a menos. Os fundamentalistas religiosos servem-se do nome de Deus para combater os “infiéis”, os heréticos, os ímpios, os que não são da sua religião. Servem-se do nome de Deus para cobrir a sua ignorância e a insegurança das suas crenças. Os actuais militantes do ateísmo têm medo que Deus exista e, por isso, não compreendem que haja crentes que não abandonam o exercício crítico da razão nem a fé. Estes ateus comeram a razão toda. Esquecem que a razão humana tem a particularidade de ser assaltada por questões que ela não pode evitar – são-lhe impostas pela sua própria natureza – mas às quais não pode responder porque ultrapassam totalmente o seu poder, como insinuava Kant, no prefácio da primeira edição da “Crítica da Razão Pura”.

Na Eucaristia de hoje, Paulo quer cristãos de olhos abertos. S. Mateus quer que eles sejam vigilantes para se não perderem do discreto advento de Deus.

“A fé de que eu gosto, diz Deus, é a esperança” (C. Péguy). Eu também.