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BENTO DOMINGUES, O.P. .................................Público, Lisboa,17.12.2006 | |
Devido à condição laica da escola espanhola, pelo menos duas – uma em Saragoça e outra em Múrcia – decidiram suprimir os festivais de Natal celebrados, habitualmente, com os alunos mais pequenos. São festas que os pais conhecem bem e nas quais as crianças se vestem de pastorinho, de ovelha, de romano, de anjinho ou de Virgem. A pequenada e a grei entretêm-se, os mais velhos sacodem o pó das câmaras de vídeo e filmam as suas criaturinhas a interpretar o papel da sua vida. Servem também, é preciso dizê-lo, para manter viva uma celebração, a natalícia, que nos acompanhará para sempre, sob a forma de memória, de melancolia, de saudade, de júbilo ou de irritação. Para Carlos Herrera, renunciar a estas festas de carácter social, familiar e religioso é uma manifesta tolice e, sobretudo, tendo em conta que toda essa quadrilha de idiotas usa, como argumento principal, o seguinte: uma escola pública é laica, logo, não pode celebrar o que tenha a ver com religião. Outros apontam, como desculpa, a presença de minorias muçulmanas. Pelos vistos, têm medo que elas fujam, histéricas, ao verificar que, no pátio da sua escola, se disfarçou de S. José um conhecido activista anti-maometano. Por essa lógica, diz o cronista do abc, daqui a pouco, vai ser exigida a revisão do calendário para instaurar, em vez do baptismo, uma cerimónia de "boas-vindas à sociedade" e uma espécie de "primeira comunhão civil", substituir a celebração da Imaculada Conceição pela Festa do Outono, a dos Reis Magos pelo Dia do Brinquedo e a Sexta-feira Santa pela Festa da Primavera Jubilosa. Quem, por acaso, gostar das festas e ritos católicos que os celebre em casa. 2. Pelo que A. Marujo mostrou, no público (17.12.2006), os "Estúpidos sem Fronteiras", não são apenas os nossos vizinhos. De Espanha ao Reino Unido e aos eua, certas manifestações da reacção laica não recuaram diante do ridículo. Segundo ouvi, também em Portugal, algumas escolas não escaparam à intolerância perante as representações natalícias. Umberto Eco, por razões de tradição, tornou-se um paladino do Presépio contra o império do Pai Natal sem precisar de recorrer aos métodos da República de Hugo Chaves. Há também quem não se canse de denunciar as múltiplas desfigurações, económicas, sociais e familiares do verdadeiro espírito do Natal. Alguns exegetas julgam superar todas essas questões, mostrando o papel secundário que o nascimento, a infância e a adolescência de Jesus têm nos escritos do Novo Testamento. Os Evangelhos começaram por se interessar só com a vida de Jesus a partir dos 27 anos e, mesmo essa curta existência, é interpretada a partir das experiências com o Ressuscitado que escapa aos métodos do conhecimento histórico. Nas Cartas de Paulo não há alusões senão à ressurreição pela luz que projecta sobre o significado da intervenção de Jesus, reconhecido como Cristo. Em S. Marcos, não há Evangelho da Infância. S. Lucas e S. Mateus projectaram, sobre os primeiros anos da existência de Jesus, o que descobriram na sua vida adulta: Jesus foi tão espantoso na sua intervenção pública que teria de ser concebido e nascer prodigiosamente. 3. Deve haver algum cuidado com soluções pastorais precipitadas extraídas dessa exegese. É certo, certíssimo, que a chave de leitura dos textos do Novo Testamento não pode prescindir da convicção de que a morte não pode ser a última palavra sobre a vida e, sobretudo, sobre uma vida tão extraordinária como a de Jesus de Nazaré. As mulheres não o permitiriam e, entre todas, Maria Madalena. Sobre ela muito se tem delirado. Dispomos, no entanto, de estudos que dizem o que se pode saber com rigor histórico (1). Pretender eclipsar o Natal com a luz da Páscoa é esquecer que a graça não suprime a natureza. Só morrem e ressuscitam os que nascem. O hino que abre o Evangelho de S. João resolveu as coisas de uma forma brilhante: «o Verbo fez-se carne», fragilidade humana, e estabeleceu a sua tenda entre nós. Desse Presépio jorrou «graça sobre graça» e a luz da verdade tocou a nossa condição (Jo 1, 1-18). Cristianizar as festas do Natal não pode consistir em cortar no seu folclore, para o reduzir a uma única versão na diversidade dos povos, das culturas e das épocas que assumem problemáticas muito contrastadas. A diferença entre as narrativas de S. Mateus, S. Lucas e S. João deviam bastar para podermos centrar o olhar sobre o principal sem esquecer a importância da diversidade de perspectivas teológicas e manifestações estéticas. As Igrejas têm clamado contra o esquecimento das raízes cristãs no projecto de Constituição Europeia. Neste momento, deveriam também cuidar dos ramos, das flores e dos frutos. Os seus membros não podem deixar que sejam, apenas, as promoções comerciais a gerir o imaginário das festas natalícias. Nunca será demasiado destacar, como agora se tem feito, a importância da recuperação do património artístico do Natal. Essa recuperação serve também para mostrar as carências do presente e a necessidade de investir, hoje, na criatividade popular e erudita. Se, por negligência ou maldade, fosse perdida a referência e os fundamentos confessionais do Natal, mas continuasse a ser a festa dos pobres, dos sem abrigo, dos velhos, dos que não têm ninguém, dos hospitais, dos abandonados, dos esforços para acabar com as guerras, a violência e a marginalidade, o principal não estaria perdido. Se a paz ganhasse a terra, mesmo sem hinos à glória de Deus nas alturas, o Deus do Presépio seria infinitamente louvado. A alegria humana é a maior glória de Deus. Bom Natal! |
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(1) Cf. Maria Julieta Mendes Dias / Paulo Mendes Pinto, A Verdadeira História de Maria Madalena, Lisboa, Casa das Letras, 2006. | |