Estamos a poucos dias do 7.º domingo a seguir à Páscoa, o Domingo de Espírito Santo, mais conhecido entre os açorianos por "Primeiro Bodo" - o "Segundo Bodo" corresponde ao 8.º Domingo, que é o Domingo da Trindade - no quadro das Festas do Divino Espírito Santo que ainda vigoram, no máximo do seu esplendor de significados, em todas as ilhas dos Açores. E com isto a propósito, vou completar um nadinha o que disse Nemésio acerca dos Açores: escreveu ele que, "a geografia, para nós, vale outro tanto como a história, e não é debalde que as nossas recordações escritas inserem uns cinquenta por cento de relatos de sismos e enchentes" [Nemésio, 1932]; e eu, com as devidas licenças, acrescento que tudo isto acontece à sombra do Espírito Santo. Porque nos Açores, na boca do Povo que não é muito versado em cânones e liturgias, a Santíssima Trindade parece que desfila em ordem inversa: pelo menos, nos gritos de aflição mais espontâneos, quem vem à cabeça é o Espírito Santo: "Espírito Santo, Deus misericórdia!", é o grito que talvez mais ouviram na boca do Povo todos aqueles que alguma vez testemunharam, nos Açores, momentos de grande aflição, e sintetiza-o o padre Jacinto Monteiro a propósito do grande sismo que destruiu a ilha Terceira no dia de Ano Bom de 1980: "A devoção instintiva do Povo Açoriano é, sem dúvida alguma, ao Espírito Santo. Aparece, todavia, como um culto leigo, paralelo, ao culto oficial da liturgia, devido aos aspectos paganizados de que está revestido. [Monteiro, 1983: 450]
Que há algo de pagão nas festas a propósito do culto do Espírito Santo nos Açores, há quem o diga. Como talvez em todas as festas populares que de algum modo se encontram ligadas aos ciclos da Natureza. Mas há por detrás dos ritos deste culto em particular um conhecimento e uma espiritualidade que vão além de um mero revestimento de memórias pagãs.
E tanto assim é, que já assim o entendeu e legislou a política - quando foi determinado que o dia da Região Autónoma dos Açores se comemorasse, todos os anos, na segunda-feira do Espírito Santo [ALA, 1980] - a "Segunda-Feira da Pombinha", que é já a segunda feira que vem...
Mas não me referirei às razões de ter sido a Pomba a ave escolhida para representar o Espírito Santo; já São Tomás de Aquino as dá quanto baste na sua Summa Theologica , e bastaria um dos argumentos por ele avançados - e cito de cor: a Pomba poisa nas falhas das rochas, como um forte que põe o seu refúgio e esperança nas chagas de Cristo que é a rocha firme - para nos convencer de que melhor símbolo não poderia haver para representar o Espírito Santo, a entidade divina em si, mas sobretudo na sua condição de patrono de um conjunto de ilhas vulcânicas perdidas a meio do Atlântico, no caminho entre o Velho e o Novo Mundo, e onde os grandes de Portugal e Espanha durante séculos construiriam fortes a que pudessem agarrar o seu poder e o Povo em cujo nome falavam.
Também não me referirei às razões, mais práticas do que teológicas, que determinaram que o Espírito Santo pegasse assim tão forte na alma e na cultura populares dos açorianos, depois de, praticamente, ter desaparecido em Portugal, na Península Ibérica, e na Europa. Não resisto, no entanto, a citar um depoimento de um lavrador já octogenário da ilha Terceira, chamado Gregório Machado Barcelos, recolhido em 1996 por José Orlando Bretão, onde encontramos, vertida no sabor do vernáculo popular e da tradição oral, toda uma súmula doutrinária e de bom comportamento social que tem por centro e por representação o Espírito Santo; tendo-lhe sido perguntado o que sabia ele acerca dos dons do Espírito Santo, assim terá respondido o velho sábio:
"É bom que o senhor me pergunte, porque acho que na cidade falam, falam e acertam pouco. Sem ofensa, até acho que não sabem nada, de nada. Mas eu digo como é que meu pai dizia e o pai dele lembrava muitas vezes como era. Eu digo que os dons do Espírito Santo são sete e são sete porque é assim mesmo, é um número que vem dos antigos, como as "sete partidas do Mundo" ou os "sete dias da semana" e não vale a pena estar a aprofundar muito porque não se chega a lado nenhum e só complica.
E o primeiro dom do Espírito Santo é a Sabedoria - é o dom da inteligência e da luz. Quem recebe este dom fica homem de sabença. Os apóstolos estavam muito atoleimados e cheios de cagança e veio o Divino que botou o lume nas cabeças deles e eles ficaram mais espertinhos. Depois vem o dom do Entendimento . Este está muito ligado ao outro, mas aqui, quer dizer mais a amizade, o entendimento, a paz entre os homens. Este é assim: o Senhor Espírito Santo não é de guerras e quem tiver pitafe dum vizinho deve de fazer logo as pazes que é para ser atendido. E o terceiro dom do Espírito Santo é o do Conselho - o Espírito Santo é que nos ilumina a indica o caminho. É a luz, o sopro ou seja, o espírito. É por isso que tem a forma de uma Pomba, porque tudo cria e é amor e carinho. O quarto dom é o da Fortaleza , que vem amparar a nossa natural fraqueza - com este dom a gente damos testemunho público, não temos medo. Quem tem o Senhor Espírito Santo consigo tem tudo e pode estar descansado. Depois vem o dom da Ciência , do trabalho e do estudo. O saber porque é que as coisas são assim e não assado. É não ser toleirão nem atorresmado como muitos que há para aí. O senhor sabe! O dom da Piedade e da humildade é o sexto dom. Quer dizer que o Senhor Espírito Santo não faz cerimónia nem tem caganças. Assim os irmãos devem ser simples e rectos. E depois, por derradeiro, vem o sétimo dom que é o Temor mas não é o temor de medo. É o temor de respeito - para cá e para lá. A gente respeita o Espírito Santo porque o Senhor Espírito Santo respeita a gente. Temor não é andar de joelhos esfolados ou pés descalços a fazer penitências tolas: é fazer mas é bodos discretos com respeito mas alegria que o Espírito Santo não tem toleimas nem maldades escondidas. É isto que são os sete dons do Espírito Santo e o senhor se perguntar por aí ninguém vai ao contrário, fique sabendo." [Mendes, 2001: 90-91]
Este poderá ser o princípio contratual entre o homem e a divindade que permitiu aos açorianos, durante os seus cinco séculos de história, sobreviver numa tão instável e descontínua geografia como é a dos Açores. Sobre isso já muito se disse, já muito se escreveu, já muito se afiançou. Sobre isso, já a Igreja Católica teve que tomar posições, que definir critérios, que tentar controlar as formas da religiosidade popular referidas ao Espírito Santo.
Porque é sobre isso que me parece que se apoia muito do que caracteriza a doutrina de Joaquim de Flora, o monge calabrês do século XII que influenciou, de um modo muito particular, os franciscanos adeptos da heresia dos irmãos espirituais, mais tarde condenada pelo IV Concílio Lateranense (1215), e, por via deles, a definição e introdução do Culto do Divino Espírito Santo em Portugal, pela mão da rainha Santa Isabel - extremando-se tal influência à empresa dos Descobrimentos portugueses, por detrás da qual estaria - segundo, por exemplo, Jaime Cortesão ou Natália Correia - uma mística pentecostal. Sobre isso não me vou pronunciar: teria que repetir muito do que acabo de ler neste A Influência de Joaquim de Flora em Portugal e na Europa. Escritos de Natália Correia sobre a utopia da Idade Feminina do Espírito Santo , que os professores José Augusto Mourão e José Eduardo Franco acabam de publicar e me pediram que viesse, hoje, apresentar ao público na Biblioteca Municipal de Alcanena.
Com muito gosto o faço, e por várias razões - digamos, três razões: primeiro, porque na minha condição de açoriano, tudo aquilo que tenha a ver com o culto do Espírito Santo é-me familiar e instintivamente natural; e para mais quando a isso se junta a voz e a figura de Natália Correia - a escritora de referência nacional que, a par de Vitorino Nemésio, melhor deu conta do que seja a alma açoriana, e uma das pessoas que mais a fundo foi na investigação da essência e da razão de ser do culto do Paracleto no mundo de influência cultural portuguesa, designadamente nos Açores e no Brasil. A segunda razão, é porque se trata de um trabalho de dois investigadores sérios, académicos ilustres, que eu diversamente conheço: o Prof. José Augusto Mourão, pela sua obra científica, e por sermos colegas na Universidade Nova de Lisboa; o Prof. José Eduardo Franco, por ser também ilhéu, como eu, e pelo conhecimento que tenho de alguns dos seus trabalhos científicos, que já por várias vezes se cruzaram com trabalhos académicos por mim acompanhados, como por exemplo sobre as obras dos Padres Fernando Oliveira e António Vieira. A terceira razão, é que este livro constitui uma abordagem nova, e em muitos aspectos desviante - o que em matéria de investigação científica pode significar "estimulante" -, no âmbito dos estudos sobre o culto pentecostal em Portugal; e se é verdade que muitas da obras que sobre esta matéria eu conheço não constam da bibliografia que os autores aqui nos dão (e a verdade é que muitas delas também não fazem grande falta), em nenhuma delas o tema é tratado com o espaço e a profundidade com que é abordado neste livro, e sobretudo na perspectiva em que o é: como o eco vivo e operativo do espiritualismo e da mística social de Joaquim de Flora, tão bem lembrados por Natália Correia, na dezena de pequenos textos que dela são aqui editados; e só pelo facto de José Augusto Mourão e José Eduardo Franco terem trazido a lume estes textos, valeria a pena terem publicado este livro - e como filólogo que sou mais o valorizo por isso.
Partindo de uma inventariação exaustiva dos traços mais significantes da vida e da obra do Abade Joaquim de Flora ( » 1135-1202), os autores ocupam-se da influência que as ideias deste monge exerceram na cultura ocidental, e, num movimento que vai afunilando do mais geral para o mais particular, de um modo particular em Portugal, para finalmente, a propósito da edição de dez textos de Natália Correia sobre o culto do Espírito Santo, salientarem os ecos joaquimistas que ainda hoje encontramos nos impérios do Espírito Santo nos Açores. Como académico e investigador, sinto-me recompensado com o que neste livro encontro: de uma vaga referência histórica, Joaquim de Flora transformou-se-me numa figura de referência; e, como açoriano, acho que este livro me fez descobrir, no leito cultural onde nasci e fui criado, sinais que eu nunca vira - e compreender rituais que definem os parâmetros da vivência cultural de que sou oriundo mas que, por falta de uma investigação a sério, como a que subjaz a este livro, eu nunca entendera.
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