O ENIGMA E A RESPONSABILIDADE DE CADA DIA
EDUARDO AROSO

Num dos números da revista Espiral, da década de sessenta, o filósofo José Marinho (1904-1975), em pequeno mas pleno escrito, ao abordar a problemática da interrogação do homem, vai mais longe dizendo que o questionar profundo deveria ser uma incursão ou transcursão além do mero círculo do ser humano e até do filósofo, enquanto tal. Diz o pensador português que entramos numa época do pensamento enigmático. Na sociedade actual, o síndrome do palavrear semi-automático, da afirmação peremptória, rápida, quase sempre irreflectida, assumiu-se mormente naquilo que vemos como reivindicação - um onda mental em oposição àquela tão ingénua como instintiva/intuitiva humildade, seja a da “santa curiosidade”, seja a da verdadeira formulação filosófica.

Para irmos um pouco adentro do que supomos nos propõe José Marinho, o enigma pode começar por aquelas perguntas de infância: Mãe, quem fez o céu e a terra? Por que brilha a lua? Quando saem os passarinhos do ninho? Estas e outras perguntas, porventura muitos de nós as fizemos. Porém, elas podem amortecer na boca das crianças de hoje que mantêm todavia – talvez de um modo mais aguçado – o sentido do enigma. Procuram desvendá-lo virtualmente (ainda assim enigma), e contudo a estimular a imaginação. Mas o motivo profundo da pergunta pode afrouxar. É que o ímpeto natural e oral (ou oral porque natural) do questionar vai sendo deslocado para o solilóquio do enigma informático – e já não é só a pergunta «Contas-me uma história?» que se pode deixar de fazer, como a própria história já se não conta. Não nos parece que uma certa viagem estática (sem dúvida, futura) dispense o diálogo, a natural oralidade, pois até os anjos têm falado aos homens, e sabemos pelas Escrituras que os Doze não dispensaram viver parte das suas vidas sem ouvir e perguntar ao Mestre.

O boneco ou o brinquedo não se constrói; compra-se. A simples eliminação de processos e etapas com a concomitante ausência da verificação do resultado, poderia conduzir-nos àquela já velha questão colocada por Rosseau quando dizia que imaginássemos uma criança que nascesse já sábia, isto é, com todo o processo de aprendizagem e maturação concluídos. Saltemos, agora sim, para adiantar que o enigma se faz acompanhar, antes de mais, da responsabilidade do pensamento, mesmo que de imediato não seja pedagógica ou politicamente actuante.

Falta apurar na totalidade se aquilo a que certo período da civilização grega (embora ainda sem Cristianismo) interpretou como sentido trágico da vida, não teria mais verdade do que a excessiva e fácil descontracção com que hoje (não) se interpreta e (não) vive a própria vida. A regra instalada do «comamos, vivamos, pois amanhã poderemos morrer» nunca colocará o homem face a face com o que poderíamos chamar, ainda que aligeiradamente, o enigma saudável. Se todos os tempos, com toda a carga enigmática, não estiverem nos imanentes, breves mas responsáveis dias do presente que por cá vivemos, então perdemos a divina oportunidade de enfrentar o Grande Enigma – o que nos coloca no deserto com a mortificante sede de espírito, aí onde nascem os verdadeiros e perenes oásis.

Mas cada dia é como «o sal da terra». Cada folha do calendário não pode ser atirada fora, ou passada colada noutra. Seria um absurdo haver crianças nascidas já adultas! Por isso, a cada nascer do sol, levantamos os olhos na fé que nos coloca no primeiro umbral do caminho - ou do átrio do enigma - desse verdadeiro enigma que nos é posto misericordiosamente ante nós, a cada momento, pelo Criador do próprio enigma. Ele atrai-nos a cada passo. Sejamos vigilantes, como vigilantes estavam os três Reis Magos para o enigma que os atraiu, no perfeito indagar, e depois no perfeito caminhar, tão perfeito que bem sabiam que o caminho do regresso seria diferente daquele que os levava ao divino Mestre; e eles, por certo, não temiam o enigma, pois dele irradiava a verdade do amor; a estrela que muitos não vêem mas cujo brilho supõem. Responsabilidade a dos Reis Magos que eram não só a representação das três raças; do ouro, incenso e mirra; mas muito principalmente da lição sobre as Três Idades, talvez a primeira lição, e que mais tarde Joaquim de Fiore ampliou admiravelmente. E no mistério triádico do tempo, que apesar de humanos eles representavam, qual é símbolo desse tempo do Espírito Santo? Dessa época em que todas as sementes do ser humano darão fruto sem dor de transacção. Qual deles, paulatinamente, vai mostrando ao mundo a prenda do espírito, a que não ofereceu mas verdadeiramente recebeu de Cristo? De que modo o mundo irá lentamente recebendo essa dádiva do Filho feito homem, ou a divina Linhagem de Melquisedeque dissolvendo a oposição do temporal e do espiritual, do que infelizmente nos separa drasticamente do espírito algumas vezes nas vinte e quatro horas de cada dia? Os três Reis Magos ou as Três Épocas da História omnipresentes em cristianíssima lição: se a História acaba “fora”, continua dentro; se o visível mergulha no chamado caos, os acontecimentos no interior da alma têm sempre a promessa de uma História providencial.

José Marinho anteviu a possibilidade que hoje se nos coloca, um século depois do Sinal do Encoberto. Relativamente a Portugal, num derradeiro esforço que se nos pede, fitar o enigma seria tanto vigiar a ideia pessoana de que «todo o começo é involuntário», como o sentido de «o todo, ou o seu nada». «No mais baixo da maré baixa», como dizia Agostinho da Silva, é que o enigma é mais enigmático! Todavia, nele (ou sobre ele) só pode rondar o amor.

Num dos símbolos máximos do enigma, representado pela esfínge, podemos vislumbrar aquilo que José Marinho nos parece propor, isto é, transcender o homem no seu percurso viciadamente circular, e bem assim tudo o que o rodeia. Nas múltiplas visões da esfinge é possível a chamada forma da esfínge evoluída, única disposição em que o homem se torna anjo.

Porque, então, até de uma súbita, humana e universal catástrofe, desse enigma poderá resultar a compreensão através tanto de um sentimento amoroso, como de um pensamento luminoso.

Viseu, 30 de Dezembro de 2004

Eduardo Aroso