Erudição e sensualidade na poesia de Ana Margarida Chora

ADELTO GONÇALVES
Adelto Gonçalves é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003), Tomás Antônio Gonzaga (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo/Academia Brasileira de Letras, 2012),  Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imp rensa Oficial do Estado de São Paulo, 2015) e Os Vira-latas da Madrugada (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981; Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2015), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br


I

O professor Massaud Moisés (1928-2018), em Dicionário de Termos Literários (São Paulo, Cultrix, 2004), diz que “a poesia corresponderia à expressão do “eu” por intermédio de metáforas, ou vocábulos polivalentes: o “eu” do poeta, matriz do seu comportamento como artista da palavra, volta-se para si próprio, adota não só a categoria “sujeito” que lhe é inerente, mas também a de “objeto; portanto, introverte-se, auto-analisa-se, faz-se espetáculo e espectador ao mesmo tempo, como se perante um espelho” (pag. 360).

Pena que o professor, que foi orientador deste articulista em seu doutoramento em Letras, tenha resolvido subir para o andar de cima, antes de ter tido acesso a este Insónia Lúbrica – resposta a uma noite inacabada (Setúbal, Centro de Estudos Bocageanos, 2017), terceiro livro de poesia da poeta portuguesa Ana Margarida Chora, em que a autora se expressa não apenas através de um “eu” feminino, mas também de um “tu” masculino. De fato, os poemas deste livro ajustam-se à medida ao que o crítico afirma em sua defesa teórica do que significa a poesia, ao observar que o “eu” vai ao encontro de si próprio ao buscar o “não-eu”, projetando-se para fora, fazendo uma “projeção”, inclusive no sentido freudiano.

No caso de Ana Margarida Chora, porém, como bem constatou a autora do prefácio, a professora Natália Maria Lopes Nunes, o sujeito poético constitui “uma figura ancestral que cruza todas as épocas, na busca de um interlocutor distante e, por vezes, ausente”. Diz mais: “(…) através do imaginário do “eu”, reflete-se um “tu”, a dualidade do ser, mulher/homem, feminino/masculino, procurando no amor uma harmonia cósmica que nem sempre é atingida através da fusão e da intimidade, criando, por vezes, uma certa ambiguidade de sentido”.

É o que se pode verificar no poema “O sigilo” neste trecho: (…) Registo a tua imagem até a exaustação / extinguindo o que resta dela em ausência… / Mil vezes a tua boca beijei em pensamento / e vezes  mil acariciei a tua pele de seda… / Sinto teu corpo em uníssono nas minhas áreas desérticas /  em cada espasmo incontrolável de que a Lua se ocupa. / Preenches o meu corpo fendido entre dois tempos, / perfazes as metades incumpridas de ambos os mundos. (…).

II

Ana Chora

Se ficássemos por aqui, só este mérito já seria importante para se destacar o aparecimento deste livro de poemas. Mas não. Este é um livro incomum, pois transborda também em erudição, sensualidade e conhecimento, não fosse a sua autora uma estudiosa com vasto saber no campo da História, começando pela Idade Média, passando pela Belle Époque, até desaguar no Oriente, notadamente no se que refere às artes, em especial a música e a dança, sem deixar de registrar ecos das artes visuais e do cinema.

Para completar, traz ainda um exaustivo e percuciente prefácio escrito por Natália Maria Lopes Nunes, que é fundamental para que a fruição do livro seja intensa. Natália Nunes é doutora (2008) na área de Literatura Portuguesa Medieval pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH) na Universidade Nova de Lisboa e mestre (1999) na área de Literatura Comparada Portuguesa e Francesa da Época Medieval pela mesma instituição, com pós-doutoramento realizado no âmbito de “A Literatura Profana e Mística no Gharb al-Andalus”,

Especialista na literatura arturiana, Ana Margarida Chora utiliza figuras que constam desse conjunto de textos, oriundos da área linguística francesa, que, a partir dos finais do século XIII, apareceram na Península Ibérica, envolvendo o rei Artur e os cavaleiros que se reuniam em torno da Távola Redonda. Artur, como se sabe, é um lendário líder britânico que, de acordo com as histórias medievais e romances de cavalaria, liderou a defesa da Grã-Bretanha contra os invasores saxões ao final do século V e início do século VI.

Entre essas figuras, estão Blonde Esmerée, uma fada moura personagem de Le Bel Inconnu, romance em versos do século XIII em francês antigo, Ninianne, personagem de Ninianne e Merlin, bem como a fada de O cavaleiro e a fada, inspirado nos Lais da Bretanha. Eis um trecho de “Le Bel Inconnu”: (…) Blonde Esmerée era uma fada/ Em seu castelo aprisionada/ Que Guinglain ia libertar/ Para a palavra a Artur honrar. / Rainha da Gasta Cidade, / Senhora de grande beldade, / Transformada numa serpente / Regressava em forma de gente / A quem o feitiço quebrasse / E  por amor a encantasse (…).

Não se pode deixar também de citar a influência que a autora passa de sua investigação na área do Orientalismo, com referências explícitas à cultura árabe, levando o leitor a uma viagem sem sair do lugar, apenas tocado pelas imagens. Veja-se, por exemplo, estes versos que fazem parte do poema “Oriente-Ocidente”, em que há referência a Hathor, deusa da religião do Egito Antigo que personifica os princípios do amor, beleza, música, maternidade e alegria, e ao Abu Simbel, dois grandes templos escavados na rocha e que foram construídos a mando do faraó Ramsés II:

(…) A minha vida dividiu-se num hotel de Copenhaga / antes de perder os brincos de cobre num fiorde da Noruega… / Pelo caminho tornei-me Hathor em Abu Simbel, / fiz amizades no Pêre Lachaise, onde há mais histórias do que em Richelieu-Louvois, / e aventurei-me na montanha de Whistler. / Quis rever os momentos e as fotografias tinham ficado num táxi em Praga…/ Esperava-me o Ocidente de Walter Scott, / os cavaleiros, os mitos da Gália e das Bretanhas… Na minha fé reside o deserto da Ilha Sagrada / aonde os Evangelhos me conduziram. (…).

III

Ana Margarida Chora sabe como usar as palavras e seus versos trazem sinestesias e metáforas de muita beleza, obrigando o leitor a refletir para perceber observações carregadas de intertextualidade e metalinguagem, o que exige leitores de apurado gosto e refinado conhecimento para entender a sua linguagem erudita. É o que se vê na última frase do poema “5-HTP”: Leio Dostoievski. Talvez as noites se tornem menos brancas.

Sabendo disso, a própria autora escreveu um texto de apresentação (“Em modo preambular: as expressões poéticas da significação”) em que afirma que não há palavras para fazer poesia. “A poesia faz-se com a magia que se põe em cada palavra. Fazer poesia não é ter propósito nos termos certos. É encontrar a certeza nos termos despropositados”, acrescenta.

A autora conta ainda que os 40 poemas de Insónia Lúbrica foram escritos durante 40 dias e 40 noites, numa procura incessante de depuração  de imagens sob a forma verbal. “Há um registo metafórico e, dentro deste, um registo ficcional, sustentáculo do complexo conceptual dos poemas, que atravessa o conjunto e o instala no plano da efabulação descritiva”, observa. E acrescenta: “Contam-se histórias. Narram-se factos e afectos dentro das fronteiras da linguagem que, por seu turno, cria uma insinuação ilusória no discurso expresso”. Como se vê, este não é só um livro de uma poeta, mas de uma refinada crítica de poesia.

IV

Ana Margarida Chora nasceu e vive em Setúbal. É docente, investigadora, escritora e artista plástica. Licenciada em Estudos Portugueses, mestre e doutora em Literaturas Românicas, é  investigadora do grupo de Estudos Interdisciplinares sobre o Imaginário (Eisi)/Instituto de Estudos de Literatura e Tradição (Ielt) da Universidade Nova de Lisboa), do Grupo de Investigación – Cultura, Literatura y Traducción Iber-Artúrica – Universidad de Valladolid (Clytiar) e do Centro de Estudos Bocageanos (CEB), de Setúbal, dirigido pelo pesquisador Daniel Pires.

Como investigadora, tem apresentado dezenas de trabalhos em congressos e encontros científicos nacionais e internacionais e publicado diversos artigos científicos sobre variados temas literários comparativos. Publicou os ensaios “Lancelot – do mito feérico ao herói redentor” (2004) e “Bocage e o Oriente. Para uma visão orientalista da poesia bocageana” (2016) e, em co-autoria com Daniel Pires, os livros As Chinelas de Abu-Casem (2016) e Bocage e o Sortilégio do Amor (2016). Publicou as obras poéticas Janela sobre o Tempo (2010) e Diadema (2014). É igualmente uma artista plástica de grandes méritos, de que o desenho da capa de Insónia Lúbrica, de sua autoria, é um bom exemplo. Na parte artística, assina-se apenas como Ana Chora.

 

 

 

 

Insónia Lúbrica: resposta a uma noite inacabada, de Ana Margarida Chora. Setúbal, Portugal: Centro de Estudos Bocageanos, 88 páginas, 10 euros, 2017. E-mail da editora: geral@cebocageanos.net Site: https://centro-de-estudos-bocageanos7.webnode.pt