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ERNESTO DE SOUSA

O PATRIARCA GENTIL
RUI EDUARDO PAES

 
Conheci o Ernesto de Sousa apenas em 1986, quando lhe apareci à frente pedindo um depoimento para um projecto meu que ainda não viu a luz do dia. 0 «DL», onde o artista escreveu em tempos que já lá vão, publica hoje esse texto inédito: «O Seio», uma referência ao ciclo "O Meu Corpo é o Teu Corpo". Confesso hoje que foi um choque para mim esse encontro, já numa altura em que a vida lhe era injusta, com a doença muscular que por fim praticamente o imobilizou a entaramelar-lhe a fala. Este não era o Ernesto de Sousa que eu imaginava a partir das coisas que deixou feitas com as marcas da irreverência e da rebeldia. Triste, parecia agradecer-me o facto de não ser esquecido, de ainda lhe irem pedir opinião e colaboração.
No entanto, o que me espantou mais na ocasião foi o carinho que todos, na Galeria Diferença (onde quase fixava residência), lhe dispensavam, acompanhado pela fiel amiga que foi Maria Estela Guedes e pela sua companheira que amou como já ninguém sabe, a Isabel Alves. Emesto de Sousa era urn patriarca gentil.
José Ernesto nasceu na Rua de Entrecampos (Lisboa) a 18 de Abril de 1921, tendo o seu convívio com a imagem começado na infância, como acontece com todos os miúdos. Mas foi urna catástrofe ocorrida quando tinha 10 anos de idade que o levou para as artes da imagem: o seu Pathé-Baby, aparelho de projecção de cinema para amador, foi consumido pelas chamas, após um curto-circuito. Mal refeito, passou a dar atenção a um aparelho de projecção fixa. Nos anos 30 frequentou a Faculdade de Ciências de Lisboa e os seus conhecimentos de Química levaram-no a interessar-se pelo fabrico de tintas. À fotografia, primeira e última paixão (quando já não conseguia pintar), dedicou-se desde muito jovem e foi ela que o levou ao cinema e ao vídeo. Sem o seu gosto fotográfico o livro «Para o Estudo da Escultura em Portugal» não teria sido possível, pois naquele seu ensaio parte do fragmento para comparar ponnenores escultóricos em diferentes escalas, o que foi um trabalho inédito.

Fundou na década de 40 o CÍrculo de Cinema, um dos primeiros cineclubes portugueses. A sua actividade como crítico e teórico iniciou-a em 1942, dividindo a atenção dada ao cinema e à arte moderna com a arte popular, de que se tornou um atento apreciador. Depois, interessa-se pelas expressões artísticas africanas e mediterrânicas, organizando exposições ou recolhendo elementos sobre essas áreas.

Em Paris, onde viveu entre 1949 e 1952, estudou cinema na Sorbonne e na Cinémateque Française e foi assistente de Jean Dellannoy em «La Minute de Vérité».

Em 1956 foi redactor principal da revista «Imagem», na qual defendeu o cinema novo. Em 1960 publica um livro sobre Júlio Pomar e em 61 outro sobre Lima de Freitas. Em 1962 realizou o filme «Dom Roberto», financiado peIa Cooperativa do Espectador, assim inaugurando o novo cinema português. A Pide prende-o quando se preparava para ir a Cannes receber o prémio da crítica pelo filme.

A partir de 1964 começa a interessar-se pelo grafismo (publica a obra «Artes Gráficas - Veículo de Intimidade»). Em 1965 encena a peça de teatro «Desperta e Canta», de Cliff Odets, no Teatro Experimental do Porto e pela mesma altura escreve vários textos sobre a pintura neo-realista, de que era na altura um defensor. Em 1966, também no TEP, encena «0 Gebo e a Sombra» de Raul Brandão e é nesse mesmo ano que conhece o movimento Fluxus de Vostell e Joseph Beuys, influenciando-o decisivamente para o futuro.

Em 1969 dá início às filmagens de «Almada, Nome de Guerra» e no mesmo ano apresenta no Primeiro Acto de Algés o espectáculo «mixed-media» «Nós Não Estamos Algures», baseado na poesia de Almada Negreiros, Luiza Neto Jorge, Herberto Helder e Mário Cesariny e com a colaboração musical de Jorge Peixinho.

 

 

Em 72 consegue a proeza de trazer os painéis de Alrnada Negreiros, que ornamentavam a fachada e o «hall» do Cine San Carlos em Madrid, para Portugal. Com o 25 de Abril de 1974 tornou-se no artista da Revolução por excelência (com «Revolução Meu Corpo», por exemplo), subscrevendo um manifesto de 61 artistas e críticos que quiseram testemunhar a sua participação na «luta dos trabalhadores na defesa da democracia e na construção de uma sociedade sem exploração».

Em 1977 organizou a importante colectiva «Alternativa Zero», com a movimentação de centenas de pessoas.

É um dos sócios fundadores da Galeria Diferença em 1978 e em 79 apresenta o «mixed-media» «A Terra Prometida - Requiem por Vilarinho das Furnas», uma video-escultura com imagens daquela aldeia e leituras sirnultâneas de textos da Bíblia, Freud e Michel Foucault.

Em 1981 e 82 apresentou as instalações «Pre Texto I» e «Pre Texto ll na Diferença e no Centro de Artes Plásticas de Coimbra e publica «Maternidade», com 26 desenhos inéditos de Almada. De «Almada, Nome de Guerra» faz um multimedia, acrescentando ao fIlme uma combinação aleatória de trechos musicais, projecções simultâneas de «slides», aparatos gráficos e exposição, em 1983.

Em 85 publicou o livro «Presépios, o Sol, Loas & Etc.», e em 1986 expõe na Quadrum a série fotográfica «Esse Ouro Dantes». «Sucede nestas coisas o mesmo que nas histórias de amor. A gente descobre-se a perguntar em que momento um rosto, um olhar, um sorriso, uma presença, se começaram a recortar no indiferenciado da paisagem, instituindo, através de uma redistribuição de forma e de fundo, uma diferença que é, não apenas algo que fica do lado da realidade, mas também algo que nos altera, que é diferença em nós, definitiva e apagável» - as palavras são de Eduardo Prado Coelho, e cito-as de um livrinho publicado em 1987 chamado «ltinerários», sobre a obra e vida do artista.

 

Extractos do artigo de Rui Eduardo Paes, "O patriarca gentil", publicado no DL de 8.10.88