MIGUEL GARCIA

A HISTÓRIA MILITAR E A
HISTÓRIA DE PORTUGAL
 SOBREPÕEM-SE


Fotos gentilmente cedidas por Franciso Miguel Proença de Garcia. Documentam todas elas a missão de paz em Timor, sobre a qual publicou no TriploV um ensaio e uma reportagem fotográfica. O nosso entrevistado é professor universitário e historiador. Além de obras já publicadas, coordena o Atlas de Lusofonia, uma série de livros sobre os países de língua portuguesa. Veja o trabalho sobre Timor e a bibliografia de Miguel Garcia em "Visor Militar".

ESTELA - Miguel, aprecio muito a colaboração que o Exército Português tem dado ao TriploV através da tua pessoa... O ensaio e a reportagem fotográfica sobre Timor continuam a atrair leitores e a ser divulgados por esse mundo fora. Gostava que nos dissesses se andaste por lá a fazer o mesmo que Francisco Newton...

MIGUEL GARCIA - Estela, apesar de também me chamar Francisco, não tenho as qualidades do Newton (mas gostava). Timor foi sem dúvida uma das experiências mais enriquecedoras que a vida militar me proporcionou. De Timor trouxe os cheiros, o calor, as águas límpidas, a paisagem deslumbrante, o sentir do povo

sofredor, a amizade de muitos e a experiência que foi de facto extremamente gratificante, quer ao nível profissional quer pessoal. Em Timor fui oficial de planeamento do Comando do Sector Central que estava sediado em Dili. A minha função inseria-se na missão da força de manutenção de paz que está no território para criar um clima de segurança que proporcione o desenvolvimento daquelas paragens. Tive uma preocupação de estar atento, ver, sentir, aprender, conversar, sobretudo observar e conversar muito, com os bons amigos jesuítas, alguns Liurais, o vendedor do mercado, o polícia, entre outros.

ESTELA - Apesar de seres bastante jovem, essa não foi a tua única missão militar fora de Portugal. Conheces a Guiné-Bissau, estiveste em Moçambique... Já publicaste livros que dão conta do que pensas sobre os processos que levaram à independência, e o teu depoimento é importante quanto à realidade actual dessas ex-colónias portuguesas...

MIGUEL GARCIA - Não sei se os meus estudos são importantes, se alguém os lê. Procuro apenas passar uma mensagem um pouco diferente da que ficou estereotipada no período pós-colonial, e que permanece. O imaginário da grandeza colonial ainda subsiste em algumas gerações; noutras, o desconhecimento dos territórios, usos e costumes das populações são histórias que ouviram aos familiares que viveram ou combateram em África, sempre impregnadas de um forte sentimentalismo. Assim, pela análise de documentação inédita e pela história oral procuro facultar uma visão original da génese, desenvolvimento e condução da Guerra global em África, nomeadamente em Moçambique e na Guiné. Há muito a falar sobre a África lusófona, sobre a história comum. É preciso sustentar conhecimentos, e de uma forma simples disponibilizar alguma informação sobre os diferentes países. Este foi o ponto de partida para o projecto do Atlas da Lusofonia.

ESTELA - No meio dos problemas que me tem levantado a descoberta de que a História Natural está longe de ser a virgem que parece, tenho tido mais desapoios do que apoios. Por isso foi tão importante a seriedade e a compreensão com que me ouviste. Por exemplo, quando descobri que as colecções do Museu Bocage tinham sido deliberadamente destruídas, antes de 1915, fiquei em pânico. Se o venci, foi por me teres dito que, quando estamos com medo, a solução não é parar, sim avançar contra ele. Também me deste orientação para entender o comportamento de Francisco Newton, que nunca está onde diz que está... Isso tudo são técnicas que se aprendem no serviço militar e nas escolas de espionagem...

MIGUEL GARCIA - Estela, antes de mais gostaria de te dizer que não trabalho nessa área, actualmente, sou, como podes ver na minha nota biográfica, um simples oficial. Outra coisa importante para esta tua pergunta é que devemos ter a noção de que a profissão de Intelligence é a segunda mais antiga do mundo e ao mesmo tempo devemos desmistificar as actividades desenvolvidas pelos serviços correspondentes nos diversos países. Qualquer Unidade política tem ao seu dispor desses serviços, eles são fundamentais para a actividade do Estado, para a segurança das populações, para a estabilidade democrática. As técnicas aprendem-se e estão nos livros, mas a imaginação para desenvolver a actividade é a de cada um. Tens que ver que Newton vivia numa época diferente. Hoje em dia, na dita sociedade de informação, muita coisa mudou, mas a imaginação continua a ser uma base fundamental na evolução e no progresso.

ESTELA - Noto que a História das ciências feita por civis é muito diferente da que fazem militares, e recordo que as expedições científicas em África foram lideradas por oficiais como Capelo, Ivens e Serpa Pinto. A perspectiva é diferente porque do lado científico-civil há invariavelmente tendência para santificar a ciência, isolando-a numa redoma, como se não estabelecesse inter-relações com a política, a finança, etc., ao passo que o historiador militar logo à partida sabe que uma campanha científica é sempre uma campanha política, que a ciência age de acordo com interesses alheios, e que muitas vezes nem os conhece...

MIGUEL GARCIA - A História de Portugal está muito ligada à História Militar, elas sobrepõem-se. Foram diversos os exploradores militares que nas suas campanhas para afirmação da soberania portuguesa, por esse mundo fora, deram com os seus relatos de observação um forte contributo para as Ciências Naturais. Tinham meios para se deslocarem com mais segurança por locais desconhecidos. Observaram, descreveram, cartografaram, recolheram amostras, trouxeram desenhos, etc.. Estela, os militares são pessoas iguais às outras, apenas vestem um uniforme, têm uma disciplina de vida e uma formação para servir. Eles têm também a certeza de que a actividade militar é uma forma de servir um objectivo definido pela política e que eles não necessitam de conhecer. A noção da relação entre os militares e a sociedade, hoje, também tem um entendimento diferente. Estamos perante a transição entre Forças Armadas de grandes efectivos, ligadas ao cidadão soldado e à prestação de um serviço obrigatório por conscrição, para uma situação de Forças altamente profissionalizadas, com efectivos muito menores. As Forças Armadas da actualidade fazem parte de um mundo onde o Estado soberano está em crise, onde, a par da cidadania nacional, se desenvolve uma cidadania mundial, regional e local. Não nos esqueçamos do contexto internacional em que estamos inseridos, a Europa comunitária e as Organizações Internacionais de que fazemos parte. Este é um espaço onde se aceita o domínio de um vasto conjunto de valores e direitos classificados ocidentais mas considerados como de aplicação global, que transcendem os quadros definidos pelo velho Estado Nação. Hoje as Unidades políticas dos pequenos poderes, como é o nosso caso, colocam a sua soberania ao serviço dos interesses nacionais, mas inserida na comunidade internacional, com disponibilidade para contribuir para objectivos comuns, na boa compreensão de que a única legitimidade é a do exercício e que os únicos contributos efectivos, e como tal reconhecidos, são os contributos activos. Assim, carecemos de especialistas em diversas áreas do saber e de uma estreita cooperação civil/militar.

A actividade militar da actualidade cria uma fronteira muito ténue entre militar e civil, a especialização de hoje leva a que a formação e actualização do militar seja permanente, a uma ligação muito estreita entre centros da investigação e as universidades. Vê o meu caso, Mestre, Doutor, professor na Católica e na Academia Militar, e são dezenas os quadros que frequentam e leccionam nesses meios. Isto, claro está, com períodos de alternância variáveis entre a acção prática e períodos de reflexão/investigação. Esta modificação na profissão militar só foi/é possível em sociedades democráticas estabilizadas, com padrões de desenvolvimento humano significativos. Em sociedades na era da Informação não se deve temer a profissionalização e que esta se torne uma ameaça para a democracia.

ESTELA - O historiador militar entra em consideração com o contexto social e mesmo religioso da questão analisada, quando o cientista faz em regra uma história cronológica e nem se dá ao cuidado de verificar esses factos, como se fossem indiscutíveis... Ora falsas cronologias e falsas geografias são o pão-nosso de cada dia na literatura científica... O historiador da ciência não daria atenção à presença do islamismo ou das missões católicas e protestantes em África, porém tu, quando falas do movimento pró-independência e da fase posterior da história da Guiné-Bissau, mostras que não é possível pôr a pressão religiosa à margem de nada, e neste caso à margem da política...

MIGUEL GARCIA - As actividades desenvolvidas pelos militares implicam sempre um detalhado conhecimento do meio que os rodeia. Inconscientemente faz-se sempre um estudo de área. Nas guerras de África, o Poder português procurava conquistar a adesão das populações, assim teve de efectuar estudos profundos para poder actuar. Quanto ao segundo aspecto da tua pergunta, penso que devemos ter a noção de que em África se diz que, para o africano, a religião é tão necessária como a própria comida, dado que não se pode conceber a vida sem um amparo religioso.

ESTELA - Conheces o mapa de Fernando Pó publicado na Ibis por Boyd Alexander, à data em que era tenente da Rifle Brigade. Alexander era um geógrafo, foi ele quem estabeleceu as coordenadas que permitiram cartografar o Lago Tchad. A generalidade das pessoas não consegue assimilar a ideia de que um cientista seja capaz de falsificar os factos, entende que foi por erro que ele deslocou Fernando Pó (Bioko) para o Atlântico Sul... Decerto tens experiência, em campos diferentes da História Natural, de erros deliberados nas cartas geográficas... Na altura dos Descobrimentos, todos os países interessados neles falsificavam as cartas. Que motivos há por detrás dessas falsificações, e sobretudo em épocas recentes?

MIGUEL GARCIA - Nada prova que ele estivesse a falsificar os factos. Podia ter duas ou ter versões diferentes do mesmo mapa, diferentes formas de o interpretar, ter por exemplo uma chave que descodificasse o local exacto a partir dos dados apresentados a público, ou então até podia ter feito um mapa para desviar atenções e induzir o adversário em erro, ganhando tempo/atrasando os outros, como queiramos ver. O mundo sempre foi competitivo. Na época dos Descobrimentos, e basta ler Jaime Cortesão, foi adoptada uma política de sigilo em tudo o que estava relacionado com os avanços na arte de navegar, desde a construção naval às velas e aos instrumentos de navegação. Ainda hoje, quem dispõe de informação privilegiada utiliza-a e procura que o concorrente não tenha acesso a ela pelo menos em tempo oportuno. Os princípio são os mesmos, mas os métodos é que são diferentes.

ESTELA - Olho para essa imagem aérea em cima, que enviaste, e tenho de perguntar: até que ponto é importante para um militar a geografia?

MIGUEL GARCIA - É a base da cartografia, da geopolítica, da geoestratégia. Através do estudo da geografia percebemos determinados fenómenos, decidimos como colocar e onde colocar os meios, como estabelecer o dispositivo, etc..

ESTELA - O TriploV está com boa difusão na Europa e nas Américas. Porém, que saiba, os africanos estão à míngua das nossas notícias, o que me decepciona, pois há no portal muita matéria que lhes interessaria. Receio que África esteja muito vulnerável do ponto de vista militar, se o facto se deve, como julgo, à sua falta de equipamento informático. Que lugar ocupa a Internet nas estratégias de defesa e ataque de um país?

MIGUEL GARCIA - A guerra na actualidade tem uma nova forma de ser feita. Chama-se a essa nova forma a Revolution in Military Affairs. Revolução no sentido de que há processos importantes de mudança quantitativa e sobretudo qualitativa na actividade militar, isto num sentido muito abrangente. Estes processos têm um ritmo histórico. Nessa abrangência a que me refiro, incluo pelo menos um novo conceito de guerra, e como já referi, um diferente entendimento da ligação entre Forças Armadas e sociedade, bem como um domínio da informação e da sua transformação em conhecimento. Na guerra, o dominar a informação e o seu processamento é fundamental, todo o soldado é elemento de pesquisa, ele deve verificar e actualizar a informação. O futuro está na guerra em rede, com unidades muito flexíveis e integradas, a pontos de quem não o seguir estar condenado a não participar em operações militares modernas, e quem não participa com a sua soberania ao serviço da comunidade internacional nunca terá voz activa.

ESTELA - Gostávamos de saber que obra te ocupa de momento, e se alguma nova missão militar te vai afastar de Portugal...

MIGUEL GARCIA - Tenho três publicações em mãos. A primeira é o trabalho de doutoramento e que aborda o problema da guerra colonial e do controlo das populações, depois estou a coordenar o Atlas da Lusofonia, em que colaboram inúmeros investigadores de Timor a Cabo Verde, à Guiné, etc., e por último, organizei com o Professor Adriano Moreira um livro de Estudos em Homenagem do General Pedro Cardoso. O livro conta com três áreas do conhecimento que o saudoso General mais apreciava: a História, a Estratégia e, claro, as Informações. Este trabalho e o Atlas, que foi iniciado pelo General Pedro Cardoso, são a homenagem possível a um Amigo com quem muito aprendi sobre África e sobre a vida.

ESTELA - Novas missões...

MIGUEL GARCIA - Sobre uma nova missão, lembro-te que elas são viciantes, e que a defesa dos interesses nacionais se deve fazer sobretudo longe da fronteira política, quanto mais longe melhor....e não podes esquecer-te de que sou militar e logo sempre disponível. Vamos a ver o que a vida me reserva.