Em busca da transcendência na poesia de João Cabral

ADELTO GONÇALVES
Adelto Gonçalves é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela USP e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003), Tomás Antônio Gonzaga (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo/Academia Brasileira de Letras, 2012),  Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2015) e Os Vira-latas da Madrugada (Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1981; Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2015), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br


A bailadora andaluza: a explosão do sagrado na poesia de João Cabral, de Waldecy Tenório. São Paulo: Ateliê Editorial/Fapesp, 178 páginas, 1996. E- mail: atelie@atelie.com.br Site: www.atelie.com.br


I

Fazer uma leitura teológica da poesia de João Cabral de Melo Neto (1920-1999), autor consagrado pelo poema dramático “Morte e vida severina”, foi a que se propôs o jornalista, pesquisador e professor Waldecy Tenório em sua tese de doutoramento “A bailadora andaluza: a lucidez, a esperança e o sagrado na poesia de João Cabral”,  defendida em 1995 na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP), sob a orientação do professor Franklin Leopoldo e Silva.

O ensaio foi publicado no ano seguinte pela Ateliê Editorial, de São Paulo, com o título A bailadora andaluza: a explosão do sagrado na poesia de João Cabral, com prefácio do professor João Alexandre Barbosa (1937-2006) e, se vivêssemos num país menos inculto, certamente, já teria tido várias reedições. Mas, hoje, talvez por essa mesma lamentável razão, ainda se pode adquirir pela Internet um exemplar da primeira edição por módico preço.

Foi a partir daquele poema, escrito de 1956, um auto de Natal que persegue a tradição dos autos medievais e faz uso da redondilha, levado ao palco do Teatro da Universidade Católica de São Paulo (Tuca), em 1966, e musicado por Chico Buarque de Holanda, ao tempo da ditadura militar (1964-1985), que Tenório empreendeu essa viagem em  busca da transcendência da poesia de João Cabral, autor que sempre se apresentou como ateu convicto. Como se sabe, o poema narra a trajetória de um retirante, que para livrar-se de uma vida de privações no interior, ruma para a capital. Na cidade grande, depara-se com uma vida de dificuldades e miséria, como é ainda a de milhões de brasileiros nesta segunda década do século XXI.

Buscar o sagrado na poesia de quem se diz ateu e a relação entre literatura e teologia sempre foi tema obsessivo para Tenório, como mostra o seu último livro, Escritores, gatos e teologia (Ateliê, 2014), em que sua pesquisa se abre para outros autores, quase todos também ateus ou agnósticos, como Samuel Beckett (1906-1989), os Fiódor Dostoievski (1821-1881), James Joyce (1882-1941), Agostinho de Hipona (354d.C-430d.C), mais conhecido como Santo Agostinho, Dante Alighieri (1265-1321), Teilhard de Chardin (1881-1955), Marcel Proust (1871-1922) e os brasileiros Guimarães Rosa (1908-1967), Manuel Bandeira (1886-1968), Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), Hilda Hilst (1930-2004) e Adélia Prado. Esses autores, em seus escritos, deixaram perguntas pelo sentido da vida que, no final das contas, encaminham para a teologia, como conclui Tenório, ao citar Chesterton (1874-1936), para quem “Deus também tem seu momento de ateísmo”.

 

II

No prólogo deste livro, o ensaísta diz que não quer que o chamem de astrônomo nem de teólogo, embora como professor sempre tenha procurado corromper com sangue novo a anemia religiosa de muitos de seus alunos. Portanto, raríssimos autores teriam sido capazes de levar adiante esta viagem ao âmago da obra poética de João Cabral, até porque “a ligação entre o teológico e o literário é de sabor bíblico”, como diz o próprio ensaísta, citando o profeta Ezequiel (2,8-10 e 3, 1-3). Sem contar que é dono de um texto irrepreensível, burilado anos a fio nas redações de periódicos, que o faz um entalhador da palavra, assim como João Cabral foi um pedreiro do verso, que construía “o seu poema palavra por palavra, pedra por pedra, como um artesão”.

Como João Cabral, Tenório desenvolve com raro talento o trabalho de artesão da palavra, conjuminando a análise literária com excertos da peça estudada, fazendo, muitas vezes, com que a frase seja concluída por parte da poesia, como se uma tivesse sido feita para a outra. É o que se pode ver nas considerações sobre o poema “Tecendo a manhã” em que o ensaísta constata a profunda identificação do filho do senhor de engenho com o povo severino, os “cassacos do eito”, ou seja, os trabalhadores da roça, ao incentivar os menos favorecidos a desafiar a status quo. “É a poesia desafiando a “ordem”, ampliando o “espaço mágico” dos cassacos, dando-lhes a consciência (como também está em Paulo Freire) de que juntos poderão enfrentar o gavião e outras rapinas. Por isso, ela também ensina:

Um galo sozinho não tece uma manhã:

ele precisará sempre de outros galos.

De um que apanhe esse grito que ele

e o lance a outro; de um outro galo

que apanhe o grito de um galo antes

e o lance a outro; e de outros galos

que com muitos outros galos se cruzem

os fios de sol de seus gritos de galo,

para que a manhã, desde uma teia tênue,

se vá tecendo, entre todos os galos”. (pág.140)

Para Tenório, aqui nas palavras do poema está o sentido da poesia de João Cabral, que seria de uma lucidez que denuncia o “gavião e outras rapinas”, ou seja, a opressão. Para o ensaísta, essa lucidez ensina a tessitura da manhã: a esperança. E, portanto, a poesia de João Cabral seria carregada de um sentimento evangélico inconsciente.

A mesma perspicácia se vê quando o ensaísta analisa o poema que dá título ao seu trabalho e observa que a relação entre inspiração e trabalho na poesia de João Cabral resolve-se dialeticamente na dança. Como se sabe, o poema descreve o trabalho da bailadora no palco, como se a artista fosse a própria poesia: “Quando está taconeando / a cabeça, atenta, inclina, / como se buscasse ouvir / alguma voz indistinta. / Há nessa atenção curvada / muito de telegrafista, / atento para não perder / a mensagem transmitida (…)”. Para Tenório, porém, a dança da bailadora “desmaterializa a arte, aproxima o visível do invisível e ela já não sabe de onde vem a mensagem, se do fundo do tablado ou de sua vida, sabe que “já não cabe duvidar”.

 

III

João Cabral de Melo Neto, nascido na cidade do Recife, teve uma infância vivida entre engenhos da família em São Lourenço da Mata e de Moreno, no interior de Pernambuco. Membro da elite pernambucana, era irmão do historiador Evaldo Cabral de Melo e primo do poeta Manuel Bandeira e do sociólogo Gilberto Freyre (1900-1987).

Aos dez anos de idade, com a família de regresso ao Recife, ingressou no Colégio Marista, onde permaneceu até concluir o curso secundário. Em 1938, frequentou o Café Lafayette, ponto de encontro de intelectuais que residiam no Recife. Dois anos depois, a família transferiu-se para o Rio de Janeiro, mas a mudança definitiva só foi realizada em fins de 1942, ano em que publicaria o seu primeiro livro de poemas, Pedra do sono.

Depois de ter sido funcionário do Departamento Administrativo do Serviço Público (Dasp), em 1945, foi aprovado em concurso para diplomata. No Ministério das Relações Exteriores, iniciou uma larga peregrinação por diversas cidades, como Barcelona, Londres, Sevilha, Marselha, Genebra, Berna, Assunção, Dacar e outras. Em 1984, foi designado para cônsul-geral na cidade do Porto. Em 1987, voltou a residir no Rio de Janeiro. Eleito membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), tomou posse em 6 de maio de 1969. Em 1990, aposentou-se da carreira de diplomata.

De sua obra poética, destacam-se os seguintes títulos: Pedra do sono (1942); O engenheiro (1945); O cão sem plumas (1950); O rio, (1954); Quaderna (1960); Poemas escolhidos (1963); A educação pela pedra (1966); Morte e vida severina e outros poemas em voz alta (1966); Museu de tudo (1975); A escola das facas (1980); Agrestes  (1985); Auto do frade (1986); Crime na calle Relator (1987); e Sevilla andando (1989). Em prosa, publicou o livro de pesquisa histórica O Brasil no Arquivo das Índias de Sevilha, editado em 1966 pelo Ministério das Relações Exteriores, um ensaio sobre o pintor catalão Joan Miró (1893-1993), publicado em 1952, e Considerações sobre o poeta dormindo, tese apresentada ao Congresso de Poesia do Recife, em 1941. A Editora Nova Fronteira, do Rio de Janeiro, publicou em 1994 sua Obra completa.

IV

Waldecy Tenório, nascido em Palmares-PE, estudou Humanidades no Seminário de Olinda, graduou-se em Letras Clássicas e fez doutorado em Filosofia na USP. Foi professor no Programa de Estudos Pós-graduados em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica (PUC), de São Paulo, e assessor do educador, pedagogo e filósofo Paulo Freire (1921-1997) na Secretaria de Educação de São Paulo.

É autor também de O Amor do herege: resposta às Confissões de Santo Agostinho (Paulinas, 1986) e João Alexandre Barbosa: o leitor insone (Edusp, 2007), em co-autoria com Plínio Martins Filho (organizadores). Pesquisador e membro do conselho científico da revista da Associação Latino-Americana de Literatura e Teologia, foi pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da USP. Foi redator e editor de várias seções na redação de O Estado de S. Paulo e, mais tarde, editor-adjunto do suplemento Cultura deste jornal, além de colaborador da Abril Cultural e da revista Realidade e coordenador de projetos da Fundação Roberto Marinho.