RENTRÉE SEM POLÉMICA...

A respeito dos últimos acontecimentos no TriploV - a polémica falhada sobre A Sala do Museu Bocage na Exposição do Mundo Português -, os nossos leitores e colaboradores manifestaram duas principais reacções: receio, por parecer que os híbridos são um problema nacional, português, e espanto por esse mesmo assunto dos híbridos, polémico, não gerar polémica nenhuma.

Bem, os híbridos não são polémicos. Polémico é dizer eu que a hibridação não é natural, sim fruto de acção humana. Se lermos os artigos dos ornitólogos, dos especialistas em peixes de água doce, etc., vemos que eles falam de híbridos, de círculos de raças, e também de complexos e de superespécies, conceitos que incluem a hibridação. Mas tudo isto é transmitido ao leitor como fenómeno natural: os animais às vezes enganam-se, não reparam bem no outro e acasalam com parceiros de espécie diferente da sua. Eis uma explicação que me parece bem polémica, mas, sem argumentos para a discutir, terei de ficar calada: como é que eu saberia que dados ovos de truta ficaram tão baralhados que aceitaram o esperma de um salmão e se desenvolveram como híbridos das duas espécies?

Não haverá polémica em torno dos trabalhos que tenho publicado. Num deles, uma comunicação ao colóquio "A Criação", realizado há dois anos no Convento dos Dominicanos, e saído agora em papel, na revista Atalaia-Intermundos - "Deus não é descartável" (em linha no TriploV) - eu acuso abertamente a ciência de burla intelectual. Não há polémica porque os factos que eu tenho revelado são verdadeiros. As minhas interpretações podem não estar ainda apuradas, e falta saber o motivo que levou os naturalistas do passado a fazerem algo que no seu tempo talvez se justificasse e hoje é impensável, porém os factos apresentados, e todos eles são factos de discurso, patentes na literatura científica, são incontornáveis. Não há polémica, porém isso não significa falta de reacção: há gente que chora como eu já chorei, porque fomos enganados, ludibriados, excluídos do conhecimento. E muitas outras reacções diferentes desta.

A propósito de interpretações, darei um exemplo de como é falsa a ideia de que o texto científico é objectivo, liso como um lençol, sem margem para mais exegeses além da literal. Nesse meu texto sobre A Ciência na Exposição do Mundo Português, fiz uma leitura demasiado ligeira da nota abaixo, sobre a presença do cuco em Cabo Verde, ao entender que teriam sido capturados três ou quatro adultos e dois ou três juvenis desde 1898: realmente há quatro registos, mas não se sabe de quê - se de captura, se de avistamento - e nada garante que esses quatro registos (de quatro indivíduos?) correspondam a dois adultos e a dois imaturos: o que está escrito é que duas informações dizem respeito a um imaturo com certeza e a um imaturo sem certeza nenhuma. Ora se desde 1898 a ornitologia só tem estas quatro informações, como pode garantir que o que está em Cabo Verde é o cuco europeu? Não será o cuco esmeraldino, conhecido em São Tomé por ossobó? E supondo que seja o resultado do cruzamento entre as duas espécies? Última interpretação, por agora: não será tudo isso uma paródia? Há de facto cucos em Cabo Verde? Lembro a grande história sobre A Mamba de São Tomé, com exemplares estudados, etc., mas nem todos acreditam nela. Para efeitos faunísticos, a ciência garante que não existem mambas na ilha de São Tomé.


O cuco esmeraldino e variedades ou raças dele, criadas no Photoshop, só em imagem...

Ao receio dos leitores quanto ao facto de ser tudo isto um problema para Portugal, tenho de responder com muita firmeza que não, ele é mundial. Já o disse várias vezes e repito: houve pelo menos um aviso em Moscovo, num congresso, mas pelos vistos quem sabia não precisou dele e quem não sabia não fez caso: leia o texto de Bedriaga, no original francês e em inglês, na história da mamba de São Tomé, e comentado e traduzido por mim em Português, no TriploV. Bedriaga (1854-1906) é um alemão (creio), discípulo de Haeckel, nada de mais estrangeiro. Veja-se o que ele escreve, ao abrir a carta:

Devo chamar a atenção do nosso Congresso para os inconvenientes que resultariam para os sistematas e corologistas da importação e cruzamento artificial dos répteis e anfíbios, que agora se praticam em bastante larga escala, e proponho que se aconselhe, através da imprensa, às pessoas que, seja por interesse científico, seja com qualquer outra finalidade, importam estes animais e os aclimatam em liberdade, ou que cruzam diferentes espécies para em seguida darem liberdade aos produtos destes cruzamentos, que nos informem disso, para que, ao menos desse lado, não haja dificuldades para os sábios que se esforçam por fixar os verdadeiros limites do habitat de cada espécie e procuram formular diagnoses segundo os caracteres produzidos pela selecção natural e não artificial.

Se tivessem sido só os portugueses a introduzir na natureza o fruto de cruzamentos de espécies, neste momento Portugal já nem existia, ter-nos-iam cortado a cabeça a todos! Não, Portugal limitou-se a ir na onda dos Gray, dos Boulenger, dos Sharpe, dos Duméril & Bibron, dos Troshell, dos Leonardo Fea, dos Boyd Alexander, de centenas de naturalistas de reputação acima de superior, muitos deles directores dos mais importantes museus da Europa. Histórias como a que conto do Museu Bocage hão-de ser contadas sobre outros museus, pois exemplares-tipo desaparecidos na guerra, em bombardeamentos, são às dúzias. Nas Baleares, há até casos de terras-típicas (habitat, proveniência geográfica, dos exemplares que serviram de modelo para as descrições de novas espécies, chamados tipos) dinamitadas, e por conseguinte de existência de tipos sem lugar, que não se sabe de onde são... Não, definitivamente! O problema diz respeito à Terra, se parece português é só por minha causa, por ser portuguesa e preferir temas portugueses.

E o problema é verdadeiro? Para nós, os leigos, há algum problema grave? Vamos imaginar: o que os naturalistas pretenderam foi testar a hipótese de que as espécies se transformam umas nas outras... Ainda não se viu por aí nenhum elefante com asas, o mais que conseguiram foi, a partir de duas espécies de cuco, criar uma variedade imensa de cucos: uns de papo amarelo, outros cor-de-rosa, outros azul... Convenhamos em que a variedade é mais interessante do que a monotonia. E tudo isso se faz há milénios sem que a Terra tenha tremido.