PORTUGAL, 22.03. 2003

BIÇMILLAH IRRAHMAN IRRAHIM

António Barahona entregou-nos para edição o poema "786", acerca da guerra, informando que qualquer muçulmano entenderia que "786" equivale a "Biçmillah Irrahaman Irrahim!" (transcrição fonética da edição do "Alcorão" da Europa-América): "Em nome de Deus, Beneficente e Misericordioso!", primeiro versículo do "Al-Fatiah", a mais comum oração islâmica.

Tenho dormitado as noites diante do écran da televisão, vendo um espectáculo bélico em que realmente não acontece nada, e com a garantia dos comentadores de que não devemos acreditar no que vemos e ouvimos, porque a informação é manipulada de um lado e de outro. Sei por isso que estou diante de um tremendo vazio, e que ao perder as noites também perco a imaginação e a capacidade de trabalho, ficando sem nada para dizer, o que será a menor das perdas em comparação com a global, mas é uma perda individual a somar às outras.

É o deserto, e a sua extenuante aridez, é a noite sobre Bagdad, povoada apenas pela luz eléctrica, e depois são as ruas das grandes cidades europeias e americanas apinhadas de gente que reclama ponto final à guerra. São os jornalistas confinados nos quartos dos hotéis, munidos de uma câmara fixa que regista brilhos, a luz que passa, um estrondo. Nada disto assinala um ganho, tudo isto é um discurso vazio no vazio, tudo isto é um manifesto de perda.

Não sei que dizer, sinto-me na obrigação de dizer alguma coisa, mas não sei o quê. Tudo é inútil e vazio, as palavras são só um sinal de presença como as luzes na noite de Bagdad. Por enquanto estamos aqui, palavras e luzes.

Guerras sempre houve, e se o progresso e a evolução têm alguma realidade científica, as guerras já deviam ter sido remetidas para o museu das maneiras pré-civilizadas de o Homem resolver problemas. Mas parece que o progresso e a evolução se limitam à tecnologia. Numa frente asiática da Segunda Grande Guerra, só entre os aliados, e só nessa frente, morreram quarenta mil homens em combate e duzentos e cinquenta mil de doença, na maior parte paludismo (1). Desde antigos manuscritos chineses, desde os alvores disso a que chamamos civilização, o paludismo, sezonismo ou malária, é conhecido, se bem que só no século XIX se tivesse dercoberto qual a sua causa. Desde as quinas usadas pelos índios ao quinino e substâncias idênticas sintetizadas - Paludrina, Daraprim, etc. - se conhece o remédio para destruir a causa - protozoários da família Plasmodidae, transmitidos na saliva de insectos quando picam a pele dos animais para lhes beberem o sangue. Sabemos como combater o vector, mosquitos do género Anopheles, quer impedindo as fêmeas de pôr ovos na água, quer impedindo as larvas de respirar, quer matando os adultos com insecticida. Drenaram-se pântanos, secaram-se vastas regiões em todo o mundo, abandonaram-se povoações inteiras, envenenámo-nos com DDT - e o paludismo continua a ser um flagelo que mata um milhão de pessoas no mundo todos os anos, segundo as estatísticas, mas as estatísticas ficam aquém da realidade, porque registam apenas o que deixa rasto nos hospitais. Trezentos milhões de pessoas infectadas todos os anos é um número ainda mais aquém da realidade, porque na maior parte dos casos a doença é familiar, as pessoas tratam-se em casa, não consultam os médicos, e disso não há registo nenhum (2).

É fácil à ciência inventar armas biológicas muito mais mortíferas do que o paludismo, que não é contagioso. Elas revelam um grau avançadíssimo de civilização e progresso, se progresso e civilização se medem pela criatividade na indústria da guerra. Essas armas existem, têm sido usadas. Se existem no Iraque, não sei. Sei apenas que o discurso proferido por essas armas é o do vazio, o da perda e não do ganho, e pessoalmente não veria nelas, nem nesses sofisticados aviões invisíveis, nenhum sinal de progresso nem de evolução. Pessoalmente não lido sequer com esses conceitos, são vazios: não há nenhum progresso nem nenhuma evolução em Fernando Pessoa relativamente a Camões, e Homero é dos escritores mais modernos que conheço.

Postos os problemas neste pé, retiro-me, porque sinceramente, a respeito do nosso grau de civilização e progresso, ou do avanço das tropas ocidentais sobre o Iraque, não sei o que de útil, esclarecedor ou precioso possa dizer, e ainda menos sei o que possa ajudar, excepto talvez repetir: Biçmillah Irrahaman Irrahim, Pai Nosso que estais no céu...



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(1) R.M. GORDON (1949) - Insects in control. The control of insects. Anais do Instituto de Medicina Tropical, Lisboa, VI: 247-272.
(2) Dados disponíveis na Internet.