Uma das locomotivas históricas usadas nos passeios pelo Douro


Sim, tinha razão o conselheiro Pinto Porto, no conto Civilização de Eça de Queiroz, ao gravar no recém-inventado fonógrafo essa orgulhosa sentença: "Maravilhosa invenção! Quem não admirará os progressos deste século?"

Progresso?! Progredir é andar - mas para onde?

Todas as épocas têm a sua modernidade, o estar à la page com a ideia, a matéria-prima ou a máquina novas. Progresso, evolução, positivismo, eis algumas palavras de ordem do século XIX. Foram escritores como Eça de Queiroz e Antero de Quental quem divulgou em Portugal a teoria de Darwin, não os cientistas. Estes guardaram silêncio. Enquanto Eça troçava - traçava, pior dizendo - a filogenia do homem a partir do átomo que progressivamente se ia transformando e complexificando até chegar a Orango (tango), para culminar na mais perfeita espécie terrestre (Os Maias), o que é imagem biológica desse progresso, e Antero (1; 2) reflectia em que o evolucionismo era a única filosofia viável no futuro, apesar de não lhe vislumbrar tecto nem soalho, os naturalistas tratavam de experimentar e testar em plena Natureza, e por isso mesmo no maior segredo. Basta levar duas lagartixas para a ilha do Pico para pôr em arame farpado os nervos da selecção nacional - emendo, queria dizer "natural".

Progresso?! Pois será ele isto, dançar melhor o tango que o Orango? Será pois o orangotango o nosso espelho, o estímulo para o nosso íntimo desejo de progresso? Competição por competição, ponha-se o espelho mais alto.

A convenção evolucionista oferece intacto à ciência o Jardim do Paraíso, antes de Adão, Eva e maçã, para que os naturalistas estudem à vontade a selecção natural em espécies virginais, jamais conspurcadas pelo homem. Mexer nas espécies, mesmo com a inocência de quem leva sem saber o pólen na manga do vestido de uma flor para outra, é cometer o pecado da selecção artificial. O arrepio que os híbridos causam à biologia é o pecado, é ele que abala a árvore axiológica do Bem e do Mal e faz cair de bichosas todas as maçãs. Não é por o híbrido ser fruto do cruzamento entre diferentes espécies animais ou vegetais que ele engasga a ciência, sim por ser fruto do cruzamento do Homem com a Natureza. Esta aliança retira à ciência a soberania com que dita ao mundo as suas explicações definitivas sobre a origem dele e nossa, esta aliança retira à ciência legitimidade para torturar a Natureza com o cinto de castidade das suas hipóteses.

Também eu fiz a viagem de Jacinto pelo Douro, buscando - e onde? - algo de natural, algo não mexido ainda pelo Homem, mas só vi vinhedos, pomares, gatos, cães, águias, pinheiros, a terra trabalhada pela enxada ou pela picareta, tudo o que desde D. Dinis, O Lavrador (para não recuar a Noé, a quem se atribui a selecção artificial das uvas), tem vindo a povoar terrenos ásperos, desabrigados e pobres, em que nem o granito escapou ao cinzel da vontade e necessidades humanas. Busquei na paisagem o sentido do progresso, pensando em coisas como tartarugas marinhas em vias de extinção desde que atiramos ao mar um dos maiores símbolos do progresso do século XX, algo que radicalmente divide - segundo me dizem - a Química em duas Químicas, a Orgânica e a Inorgânica - o plástico, o radicalmente novo e artificial em absoluto, isso que não existia na Natureza antes de inventado pelo homem, porque híbridos, francamente, sempre o homem os produziu e não se vê por que motivo a sua origem deva ser apelidada de "artificial". Selecção humana, assim deve chamar-se ela.

Acontecia o progresso de conluio com o comboio, que tudo levava e trazia em pequena e grande velocidade, de Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo! - para citar outro poeta desta mesma modernidade, Cesário Verde. Há um progresso na marcha do comboio, que está quase a chegar ao Pinhão e daqui a nada alcançará o Tua - será só isto, o Progresso?

Na matéria nova, que não é nova matéria-prima, abunda o que é do foro de Marte - o metal sans noblesse, ouro dos pobres e dos ferroviários. Fez opus magnum em Paris contra todas as expectativas, hoje é isso mesmo - uma renda bordada a fio de ferro por Eiffel, uma obra-prima da arquitectura da Era do Progresso. Por aí adiante, baixou à terra, riscou os mapas de lés a lés, a via que nem é seca nem húmida, mas é férrea, e foi talvez sacra para pobres de Cristo que a não viram concluída - não terão estes sacrificados alcançado a meta para que tendia a sua aspiração ao Progresso?

O Douro, na estação do Tua

Mais de cem anos depois, ainda sabe a alta modernidade e tecnologia de ponta nesse Alfa pendular, embora substancialmente o progresso pouco tenha mudado.

Rio Tua

As palavras de ordem continuam as mesmas, os objectos tecnológicos proliferaram em variedades e hibridaram-se, o fonógrafo passou a ter imagem e a electricidade também move comboios, a velocidade aumentou e a comunicação prescindiu da via férrea para usar vias de fibra óptica, mas o essencial perdura: abolição pela máquina das barreiras à comunicação e ao progresso.

Socalcos com vinha nova

Mas será só isto, o progresso? - casa, roupa lavada, comida, autocarro sem atrasos, e-mail, o ftp a funcionar sem falhas? É viável viver tão rasamente sobre a matéria, sem um sobressalto - alto!

Pouco do essencial mudou. Ainda hoje é possível despachar as malas para Tormes em Portugal e irem parar a Tormes em Espanha; ainda hoje é possível o Alfa pendular atrasar cinquenta minutos; ainda hoje a graça das estações do caminho-de-ferro vive dos jardins com roseiras, da cal e do azulejo; ainda hoje a paisagem duriense vai do vinhedo embardado a descer e a subir socalcos até à escarpa em cujos vales se abismam afluentes onde a truta adorável se reintroduz periódica e artificialmente - humanamente, corrijo; ainda hoje há faias nas quintas em cujos lagares se prepara o vinho do Porto, e ciprestes, e laranjeiras e limoeiros reflectidos em planos de água que recordam os jardins árabes da princesa Ardinga, nesses tempos em que a região prestava tributo ao califado de Córdova.

Elemento dinâmico da paisagem, o rio ensinou a linha férrea a ligar o alto e o baixo, a separar a monarquia da república, a vencer os obstáculos do elemento fixo, abrindo túneis, galgando sobre pontes os precipícios. Nada mudou, e no entanto já na época tudo estava mudado, e já na época nem todos ajoelhavam diante da ideologia do progresso, do positivismo, da evolução.

Sampaio Bruno gravado por Abel Manta

Regresso a casa. É sempre mais rico o regresso a casa do que o progresso na via que afasta dela - assim o filho pródigo volta pobre de bens materiais mas rico de experiências. Regresso com um livro antigo para ler no comboio, sobre um portuense ilustre, contemporâneo de Augusto Nobre, Francisco Newton, António Nobre, outros ilustres homens do Porto - Bruno (3). O que seja a filosofia portuguesa, e alguma coisa é, fora da qual mais nenhuma viça, bebeu em Sampaio Bruno.

Um dos 25 painéis de azulejo da estação do Pinhão

Ora a filosofia portuguesa deve ao comboio e à via férrea o ouro do seu esoterismo, o seu angelismo, a sua saudade do futuro, a sua evolução de sentido contrário - evolução para o regresso. Porque há um regresso à unidade de Deus no fim da viagem.

Sampaio Bruno foi avisado em Salamanca, quando regressava a Portugal, após o exílio subsequente à revolução republicana do Porto : se apanhasse aquele comboio, fatalmente encontraria alguém que não lhe agradava topar na viagem - João Chagas. O livre arbítrio moveu-o a dar ouvidos de mercador ao que Sócrates chamava daimon, ao que Bruno vai identificar como anjo. Em vez de esperar por outro comboio, meteu-se naquele. Numa das estações espanholas seguintes, quem entra na carruagem? Não, não foi o anjo, foi João Chagas.

Esta experiência inclinou Bruno, e por consequência a filosofia portuguesa, para o misticismo. Sob a crosta das palavras mais rasas, sob a capa das ideias mais positivistas e materiais, passa o voo de um anjo. Assim o positivismo foi uma religião, assim religião é o evolucionismo. Com a diferença de que Bruno tinha a consciência disso, sabia que o seu destino era a reintegração em Deus, tinha por pessoal objectivo o ser divino, como é de muita tradição religiosa e esotérica, e mesmo cristã, como diz José Manuel Anes (4), não fazia passar por ciência objectiva o seu misticismo.

Progresso não é só fonógrafo, electricidade e a vertiginosa velocidade de 30 Km/hora dos comboios, ele tinha para alguns um tecto muito alto. Para Bruno, era o único critério para avaliar os nossos actos : Todo o progresso humano se resume e consiste em realizar na ordem social esta aspiração sintética : liberdade, igualdade, fraternidade.

Pasquallys (5) é tido como o inspirador do ternário sagrado, esse triângulo formado pelas três palavras da Revolução Francesa. Mas que não houvesse Pai, Filho nem Espírito Santo a boiar à tona desses caracteres, já não era pequena obra que o progresso consistisse em concretizar o ideal de fraternidade, liberdade e igualdade para todos.



(1) QUENTAL, Antero de (1887) - A "Philosophia Natural" dos naturalistas. Prosas, III. Imprensa da Universidade, Coimbra, 1931. 
(2) QUENTAL, Antero de (1890) - Tendencias geraes da philosophia na segunda metade do seculo XIX. Revista de Portugal. Vol. II, Porto. 
(3) SERRÃO, Joel (1958) - Sampaio Bruno - O homem e o pensamento. Editorial Inquérito, Lisboa.
(4) ANES, José Manuel (2002) - A theosis, criação do homem divino. Online no TriploV.
(5) PASQUALLYS, Martinets de (1979) - Tratado da reintegração dos seres criados nas suas primitivas propriedades, virtudes e poderes espirituais e divinos. Edições 70, Lisboa. Prefácio de Manuel J. Gandra.


Grande velocidade : 30 km/hora







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PORTUGAL - Agosto de 2002