Dez poemas para strip

ANA MARIA OLIVEIRA


O espetáculo hipocondríaco da justiça

 

No mercado das emoções vendem-se todos os papéis

É só escolher e representar

O que perante as circunstâncias nos possibilita o desafio ganhar

 

Várias falas se baralham

O abrir de dentes do carrasco

A lamúria penosa do coitadinho

A desculpabilização do louco

O risinho do astuto

Que se vai safando nas várias peripécias pelo mundo

 

O passivo vai-se calando mas é provável que expluda

Sem que ninguém possa impedir o regresso do tempo dos opressos

Pelo obscurantismo persistente dos retardados

Retorna sempre que as raposas retóricas de caninos afiados

Se movem na ganância dos mesmo cenários

Contracenando acomodados a velhos palcos

 

O protocolo da justiça tem várias máscaras

Múltiplas entidades

Infinitas realidades

Relativas verdades

Subterfúgios engrenagens

Passadiços e esconderijos

Que perfazem pegajosos cortiços

Onde os ferrões se armazenam aqui e ali

Prontos para a ferroada envenenada neste e naquele

Onde os escorregas atingem a velocidade

Do salve-se quem puder e cada um por si

 

O espetáculo hipocondríaco da justiça

Pinta neuróticos e maníacos bipolares

Homicidas e ladrões

Que permanecem incólumes com perdões

Esta cambada de asnáticos que maltrata e mata

E se julga dono de toda e absoluta certeza

Ignoram que não escapam a uma perfeita limpeza

Imposta por algo maior que é a revolta da própria Natureza


Corpo em cinzas

 

O grotesco da minha voz apenas se ergue contra o ruído

Rejeitando os estalidos estridentes nos meus ouvidos

Provocando a avalanche de sangramento da minha escrita

Que provém do desconforto asfixiante patético

Semelhante ao peso sobre o meu peito de criaturas toupeiras

Que minam o terreno e abrem buracos sugadores de vida

Enterrando-a bem fundo para depois se alimentarem

Em frações de absolutismo patogénico

 

O vómito incontido no rasto de tinta da minha caneta

Arrasta as entranhas revoltadas contra o harém

De compra e venda de carne humana em traição cobarde

Rabiscos denunciadores de embusteiros

Que apregoam os sonhos paradisíacos colados na testa

Rotulada de idiota felicidade

 

Os pés de criança cruzam o tempo no palmilhar dos campos e carreiros

Decidem em modo precoce de quem acabou

De entrar no mundo pelo protesto da rebeldia

E empreendem sem dúvidas a viagem

Que se metamorfoseia em anúncio de libertação

Um pronunciar afirmativo sem receio da franzina autonomia

 

A víbora que se enrosca no recém-nascido

E o faz soltar o grito de alerta profundo

Transforma-se no acontecer de iniciação

Preparando a inocência para as batalhas do mundo

 

O meu corpo transformar-se-á em cinzas

E a voz continuará o grito pela libertação

O vómito será destreza de aniquilação dos ditadores com a doença do poder

Os pés humanos calcorrearão as montanhas mais altas

Sentirão o esforço da subida das vertiginosas dunas

E o conhecimento dinâmico captará as transmudações

Das fissuras dos abismos inalcançáveis

Onde a arte e a vida serão unas 


Hienas

 

Afocinham os animais sem perceção das transferências

Guinchando na intimidação dos acabrunhados

Erguem fronteiras onde atraem e aguardam

Que os desprevenidos caiam na ratoeira armadilhada

No arame farpado das convenções machistas

Amaciadoras de reflexos espelhados

 

Escondem-se as hienas nos mais altos cargos

Escoam-se por aí ignorando a dinâmica dos verbos

São sobreviventes astutas no meio da sociedade humana

Cobardes na atitude medíocre e no argumento apodrecido

Fedem à distância e é imperativo travá-las

Vigiar e anular os seus ímpetos de megalomania

Enfrentá-las!

 

Improvisam-se no lar comum

Pavoneiam-se hasteando a bandeira do poder

Reprimidos e comprimidos sobre si próprios

São burros de duas palas

Que não veem mais além

Numa cultura arcaica  que lhes dá guarida

E são incapazes de sentir empatia por alguém

 

Enaltecem o jogo da crueldade

Deliram com atos de violência

Consideram-se os melhores e a salvo

Cegos à força incandescente da metamorfose

Podem morder trucidar

E se não tiverem mesmo oposição assassinar


Escalada linguística

 

O escalador condutor de letras cai do alto do ilimitado

Porque em voo quer alcançar a língua oculta

Esboroada entre os murmúrios da voz embaralhada

Nos cornos da besta esquartejada e inventada

Dança em desequilíbrio o trepador de dialetos

Vigiando a rutura dos elementos

Corta os fios liga a corrente

Sobe e desce a escada

Rumo ao abismo do nada inglório

O emissor não vacilou o recetor se ampliou

Perante o indefinido auditório

 

A lamúria linguística espreguiçou-se

E amaldiçoou por mensagem obtusa o mundo

A língua ficou farta de gastar saliva

E decidiu-se convicta pela boca calada

Mas no abalroar dos destroços desabafou porca

Saltou de estado em estado mas pelo microcosmo

Era a mesma de cara lavada

 

Enlouquece a língua e instiga à derrocada

Premindo a tesoura assassina

Entra no esgar das sanguessugas

E transforma-se em lua obscura

Quer pavonear-se pelos altares proféticos herméticos

E metamorfoseia-se em clarividente

O verbo soa e espezinha prevaricador

Entre dentes a língua sorve as trevas do ódio irada

Os tempos entrecruzam-se e a revolta

Acrescenta aos lábios a sonoridade sorridente

 

A melodia surge criativa batendo palmas sapateando

A língua faz-se camaleão da alegoria cantada

Enquanto díspares grunhidos aparecem

A pobre língua de origem sente-se derrotada

Com agressividade espezinhando surge a polémica

E a outra chora esconde-se alienada

Em código morse intervalada

A língua instável efêmera intermitente

Afunda no poço lamacento e estagnada

Espera o rodopio e a mudança noutra mirada


Magia da vida

 

Movimenta-se a marreca arqueada acorrentada ao permanecer

Contrariando a beleza ereta sem projetos sem rendilhados sem meta

Estica-se o corpo estilhaça-se o mudo e o mouco

Sempre aquém de um horizonte de mar sem jamais o alcançar

 

O bailado do toca e foge persiste por entre os fungos

Nem para lá nem para cá do bosque flutuante

Nem ir nem vir do afundo na lama

Nem ter nem ver o voo ondulado sobre o oceano emaranhado

 

E no desafio infindável dos elementos

O estrondo fez-se luz calor incêndio raio trovão

Empurram-se as paredes derrubam-se as cercas

Eletrificam-se as veredas e os caminheiros sofrem a invasão

 

Pressente-se o corte o rasgo o impacto

Os dedos gelados pés coxos aguardando o choque do dorso esquartejado

Olhar quebrado arrastado pela distorção da salganhada suspensa

Em estendal agitado pela crença

 

Engolir em seco sangue-frio espectro

Gargarejos em catarata armadilhada

E a concomitância da língua ferida

Escondida inerte esburacada

Sonhos enforcados passos em tensão

Asfixia adiada no rosto envelhecido submetendo-se ao acordo

Sem reconhecimento sem mensagem nem comunicação

 

Gruta fendida em garganta inflamada

Patologia em escarro de morte disfarçada

Pulmões sem força cãibra desgraçada

Poça de excrementos sonoridade zangada

Gota de água dispersa em tempestade

No bálsamo da exaltação da chuva renovada


Construtor de quimeras

 

Pela avidez dos passos da contemporaneidade

Apresenta currículo ultrapassado e gasto

Traz atrelado um baú de sonhos

Para cada cabeça com sua fantasia

Desenha estilos ergue tronos

Estéticas cativadoras de permanências eternas

Mas vende o perene descortinar das alucinações

Na provocação de paraísos

Pantomineiro guionista fantoche artista

Saltitão palhaço malabarista

 

O construtor de quimeras ergue o seu comando

Nas linhas férreas do enredo retórico

Sorridente lança a rede

Por entre a vibração sísmica do desencanto

Senta-se no balouço na iminência da queda

Ainda assim gesticula aos ingénuos dúbios devaneios

Aspira destila sussurra e transpira

 

Aborrece o arquiteto da farsa

Escolhe de entre rejeitados os mais propícios à cilada

Anedota transformada em graça

Mina o terreno para o feitiço do engano pleno

Rodopia para um lado e para o outro conforme as melodias

Porque o fardo é real e pesado

E as palavras gastas ingerem-se frias

 

Enfadonho o tecedor de utopias

Para os que captam a profundidade do mundo

E de mãos gretadas unhas carcomidas

Bocejam as bocas pedindo descanso nas desertas ermidas

De dentes cerrados silenciando a espera o desencanto

Enquanto o fazedor de sonhos e criador de alvoroços

Continua a tecer de brilho efêmero o seu precioso manto


Condutores de informação

 

A informação abre veredas por entre a selva

Onde as serpentes aguardam a mordidela certeira

Na podridão da carne

Os canais são austeros perigosos e escorregadios

E os veículos descarrilam no percurso

Onde a arquitetura explode em linguagem cósmica

 

E o meu cérebro faiscando sobre o estado amnésico das palavras

Baralhando sílabas misturando notas musicais

Esperando que o caos se transforme em ordem

Sapateando entusiasmo para que a minha surdez não notem

 

O carrocel é velho e barulhento

Deslizando nos carris oxidados pela chuva

Onde os corpos carcomidos se revelam

Ansiando o brilho do ouro

Rebentando em campos de exequibilidades

De armazenamento de joias

Tesouros feitos ornamentos onde as mensagens ambíguas

Dão origem ao erguer de braços dos déspotas

E ao levantar e baixar da lâmina afiada do carrasco

 

E a minha mente criando fogo-de-artifício

Falseando os resultados da experiência

Pintando quadros onde a beleza aparece errática

Como trampolim para o grotesco e medonho

 

A mensagem atinge o alvo onde o alerta é dado

Mas as aranhas inertes e interesseiras

Apenas tecem a sua teia e permitem

Que a probabilidade dos escravos se transforme

Em espaços de concomitância indecente

E é então que o ditador é permitido e o seu ego lunático

Ergue uma forca poderosa

Onde os egoístas conformados passarão o portal

Renascendo como combativo inovador criativo

Golpeando a flecha no coração da besta

Manipuladora de homens esquartejados na cruz

Finalmente a viabilidade do carrasco

Permaneceu do outro lado na invisibilidade

E à velocidade vertiginosa se fez luz


A força do dilúvio

 

Abre-se a fenda por onde os elementos cósmicos

Se revolvem misturam deleitam se entrecruzam

Procurando o encaixe perfeito omnipotente  eleito

Criando rasgos de lençol campos estratificados

Aguardando a miscelânea o vendaval perfeito

 

O grito de comando soou por entre os recifes

Ecoa em toda a parte estridente como ser omnipresente

A água borbulha perante as rajadas de eficácia destrutiva

Arrancando o sustento dos homens à terra enfurecida

 

São prisioneiros do dilúvio infinito e imitando o furor cósmico

Chacinam os irmãos inventando justificações estoqueadas

Pela imbecilidade de uma mente decadente que perde a sintonia

Com o cordão umbilical da ética e a criativa energia

 

A força do dilúvio enlameia os ossos dos cadáveres à deriva

E deposita-os no fundo do mar do esquecimento ilimitado

O sol encarregar-se-á de aquecer o gérmen

Que emerge os seus caules delicados após a tempestade

À procura de um ancoradouro onde possa repousar

Pois o tempo é uma bolha sempre pronta a rebentar

E as possibilidades do acontecer rejubilam por festejar


Contrato

 

A liberdade vive calada e surda

Nas entranhas do homem que se vendeu a troco de iguarias

Riqueza podridão de fanatismos e fantasias

A patologia singrou e sangrou os corpos dos criativos

Acorrentaram-se na masmorra mais sombria

E abafando a voz cortaram as mãos

E verteram os sonhos mais gloriosos

No submundo das trevas

Enterraram bem fundo os genes

Das probabilidades em potência

Da vida da celebração

Da ligação fundamental ao cosmos

Onde as moléculas se agitam entre novos seres

Outras vontades renovadas em múltiplos pareceres

 

O pacto caiu em desgaste

Enriqueceu os poderosos os corruptos

Os materialmente ambiciosos

O contrato social permitiu a descrença na humanidade

Fabricou políticos despóticos

Ditadores dissimulados

Explorou as crianças profanou as mulheres

Chicoteou os indefesos e tornou amarga a existência

De quem possui todo o acesso

À partilha da natureza pela essência

 

O contrato social tornou-se o bilhete para um campo armadilhado

Onde só o assassino é condecorado

E as toupeiras minam o chão que os inocentes pisam

E aos famintos retiram-lhes o pão

 

A segurança fez pacto com a utopia

Porque o sentir da esperteza saloia da raposa matreira

Derruba os nobres de coração e enaltece os traiçoeiros atrozes

A sandice é inimiga da justiça quando há um tirano

Que se levanta e manipula uma multidão alienada

Que em estado patológico não tem força para o impedir e não faz nada


Distanciamento do senso comum

 

Um mecanismo de evasão é fabricado

Pela consciência inquieta ávida de expansão

O átomo em dança agitada com o vazio penetra o muro

Cria espirais de fortalezas onde se escondem as criaturas do futuro

 

Na Terra as vibrações se cruzam e os gatos

Captam as auras dos humanos adivinhando-lhes os suspiros os afagos

Os gritos a doce contemplação e os sabores amargos

 

O lado mecanicista da sociedade cativa o homem como sonâmbulo

Sem objetivo nem propósito sem riso nem pranto

Sobrevém o entorpecimento e cada corpo empertigado

É o centro do seu próprio empreendimento

Aonde não há semelhantes irmãos amigos

Apenas marionetas e arquitetas adorando o obtuso pujante

Distorcido inflamado pedante que desvirtua a estirpe

Que atropela goza e maltrata

E que se permitirem a sua paranoia a todos mata

 

A caminhada pelos socalcos da serrania faz-se em esforço

O teste de coragem e desafio enleia-se nos pés como trepadeiras

Impedindo a pirueta para além das copas das árvores

Onde a luz é meiga o voo espreita e a paisagem flutua noutra dimensão

E a bravura se faz suavidade para além da brutalidade

 

Para trás fica a matança a linguarice a multidão opinativa

Sem cérebro sem poder crítico

Então num salto quântico surge o planar rasante dos pirilampos mágicos

Que iluminam os gestos humanos embebidos em utopias

São planaltos abertos onde a energia intuitiva rabisca inovadas melodias


Ana Maria Oliveira (Portugal, 1967). Em 1986 finaliza a licenciatura em Filosofia na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas de Lisboa. Edita o seu primeiro livro de poesia em 2008 “Grito de liberdade”, através da Corpos Editora. Faz uma edição de autor “Espírito Guerreiro”, o seu segundo livro de poesia, em 2014. Mantem alguns sites onde divulga a sua escrita:

http://www.assinaturaeletromagnética.blogspot.com
http://www.devirquantico.blogspot.pt/