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Francisco Soares
FILOLOGIA
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De modo geral, a questão colocada pela palavra «filologia» suscita uma referência genérica à velha e a alguma nova escola filológica, mas nem sempre se toma em devida conta a morfologia e a etimologia da palavra para reflectir sobre a sua utilidade metodológica. Por consequência, a colocação de questões fundamentais da teoria da literatura carece, muitas vezes, de rigor filológico na selecção, utilização e consideração das palavras - do que darei exemplos, de resto conhecidos. "Rigor filológico" é o rigor trazido pela filologia. Quando chamo a atenção para a "utilidade metodológica", não falo aqui de "filologia" como "a elaboração de um método" (1) no sentido oitocentista da palavra. No mesmo termo tento apreender uma visão ou teoria etimológicas da actividade filológica. «Filologia» é uma palavra que se compõe a partir do termo grego philos (que significa "amigo") e de outro termo, igualmente grego, logos , que significa "palavra". A filologia seria, pois, o amor da palavra. O filólogo o amigo das palavras. Tendo-se modificado por um processo de especificação, o conceito de «filologia» surge modernamente ligado ao estudo da escrita, levando o trabalho filológico às edições diplomática e crítica de um texto, por exemplo. No resumo de Manuel Frias Martins "a filologia assenta na história da(s) língua(s), na etimologia, no estudo dialectal, nas vicissitudes da sintaxe e do vocabulário, acrescentando a tudo isto os frutos da erudição cultural" (2) e, contemporaneamente, da linguística e da crítica textual. É trabalho que dá para mais do que a edição crítica ou diplomática de um texto. A filologia alemã, a partir do romantismo, aplicou também o termo na acepção de estudo da literatura e da língua de um povo, ou de povos aparentados. Em países românicos, como Portugal, embora não se desconheça a acepção de "ciência constitutiva e estudo crítico dos textos literários" (3), o termo foi tido mais na conta de estudo histórico de uma língua, ou de um grupo de línguas afins. Encontra-se em J. Leite de Vasconcellos um dos principais filólogos nesta acepção. Havia entre os filólogos, porém, a convicção de que tal estudo nos traria "o instrumento capaz de constantemente fazer reviver aos olhos das gerações longínquas o esplendor do antigo", sendo a antiguidade a da mítica "juventude feliz" (4). Correlata seria a crença, de raiz romântica mas que não se deu mal no plantio positivista português, de que a história de uma língua revela a personalidade do "povo", da "nação", ou de qualquer outra unidade político-social - a "região", a "etnia" (5). Se ela assenta sofisticamente numa visão dessincronizada, estática, de nação ou povo e isso não tem nenhuma razão de ser, acompanha-se em compensação pelo mito da juventude feliz que paira sobre o "esplendor do antigo", como se pelas etimologias pudéssemos vislumbrar ou entrever uma teoria inaugural do mundo - uma teoria que, por inaugural, é autêntica no sentido que lhe dá José Enes À Porta do Ser . É quase nesta acepção mítica do termo que penso: a filologia (de que a etimologia é um dos fundamentos) estuda a língua comum e as artes poéticas aproximando-se do seu potencial de sugestão desde o início, na sua história e no seu presente. Falta esclarecer a via que abre a leitura etimológica ao presente, na busca de uma solução para "o problema da origem mental da palavra", de que fala António Telmo. António Telmo aponta o "cruzamento da filologia com a psicologia" para que a linguística (no sentido pleno que a palavra tem no movimento da Filosofia Portuguesa) possa dizer algo "sobre a língua primitiva" (6). E reforça a ideia quando garante que não há "construção linguística do passado pré-histórico que não parta, explícita ou implicitamente, de uma teoria da palavra no homem vivente e actual", no qual era portanto indispensável atentarmos. É de especificar o carácter biunívoco e profícuo do relacionamento entre a pesquisa da "origem mental" e o estudo da língua a partir do pensamento sobre os significados primordiais dela. Uma ponte entre esses dois pólos pode ser a proposta por José Enes, quando ele diz que a "destrinça filológica (7) do parentesco dos vocábulos [...]serve [.] para sugerir indícios de presença da metáfora original, que, se o for, há-de continuar viva ou nos derivados de raiz primitiva ou em outros vocábulos, sejam ou não cognatos, ou em locuções de formação recente" (8). A "metáfora original" continua viva porque ainda é funcional hoje. Reflectindo sobre o contexto histórico e o seu parentesco actual determinamos o conjunto das suas realizações, que está próximo de tudo o que ela pode sugerir. A imaginação e a adaptação a novos meios, que geralmente se conjugam, são responsáveis pelas potencialidades desconhecidas ainda. São essas potencialidades que as artes poéticas exploram. Elas devolvem a língua à sua função primordial de experimentar visões ou teorias dos acontecimentos que os originam, os explicam e nos ensinam como lidar com eles. Interessa-nos portanto organizar o campo semântico das palavras e expressões em torno de um pensamento que as suas várias manifestações permitem configurar. Simultaneamente, a poesia ajuda a conhecer melhor esse pensamento e é estudada a partir dele. Podemos construir assim a teoria que nos permite visionar o polifónico e momentâneo acordo que mantém no ar um determinado poema, uma palavra, uma expressão. Um acordo ao mesmo tempo intra-textual e extra-textual, a maioria das vezes apenas intuído e vago. Não parece, pois, de valorizar a redução do campo da palavra «filologia» ao estudo histórico de uma língua, ou de um grupo de línguas afins, ilhado nas suas cronotopias. Nem ao estudo histórico-literário das obras poéticas, auscultando-se os tiques de cada momento e ignorando o que os altera, o que a obra representa de um trabalho pessoal sobre a língua que a revela um pouco mais. A filologia em que penso aparenta-se com as preocupações de António Telmo quando assinalou, na edição inaugural da sua Arte Poética, ao primeiro dos «Problemas Filológicos» a tarefa de traduzir "Henrique Bergson" (9). A sua concepção fazia-se nesse tempo acompanhar, de uma forma ou de outra, pelo próprio movimento da Filosofia Portuguesa, que dedicou sempre um lugar estruturador à filologia tal como a entendo, o que se vê com facilidade, quer nas obras de José Marinho e Álvaro Ribeiro, quer em Pensamento e Movimento, de Pinharanda Gomes (10), ou na crítica literária de António Quadros. As leituras deste crítico são especialmente elucidativas para o caso literário. O título de um dos seus livros mais instigantes é Ficção e Espírito . Os aspectos técnicos, artísticos e estruturais não foram ignorados, mas serviram de suporte a uma "demanda filosófica e existencial", não só da "Patriosofia" portuguesa, também da russa, da brasileira e de outras mais entre as literaturas que estudava. Na aventura espiritual de António Quadros, como lembra António Braz Teixeira, a reflexão estética desempenhava um papel essencial e era guiada pela "aprofundada reflexão sobre o seu [da arquitectura e da literatura] radical elemento simbólico" (11) e sobretudo pela pesquisa da biografia espiritual dedutível de um conjunto de obras e de algumas das expressões mais significativas da luta do escritor com as palavras, escavando nelas à procura de sentidos. O trabalho deste movimento crítico e filosófico, cujas origens próximas remontam a Sampaio Bruno, foi desenvolvido também por filósofos menos directamente afectos, por exemplo, José Enes, de confessada filiação heideggeriana e tomista (12). Na sua filologia, o pensamento, a analogia, a intuição, a verdade, são conceitos importantes para uma teoria da palavra, da obra e da própria poesia. No que mais estritamente é considerado "estudos literários", há posturas que estabelecem algumas afinidades com esta. George Steiner, ao falar sobre o seu método de leitura, diz: "Começo sempre por um exercício que se chama «amar o logos», quer dizer logos philein ou filologia. Trata-se de descobrir, com o auxílio de todas as ferramentas que os eruditos nos propõem, a saber os dicionários, o sentido primeiro, ingénuo, quase inocente de cada palavra" (13). Não sei até que ponto o 'sentido' é ingénuo, muito menos inocente, mas é de qualquer forma um sentido arqueológico e o método está muito próximo do que falo. Steiner diz que passa depois à gramática, "a música do pensamento", porém uma análise filológica tal como a penso inclui a gramatical. Se a sintaxe (o que ele faz equivaler à gramática) nos dá uma visão do mundo e a "filologia" nos dá a matriz combinatória dessa visão, só se pode perceber uma com a outra. Paul Ricoeur, em A Metáfora Viva , lembra-nos precisamente que a metáfora não pode ser estudada apenas ao nível da palavra, mas da frase. A própria palavra não pode ser estudada isoladamente, mas com as frases que a integram. Talvez Steiner tenha separado a "gramática" da "filologia" porque os tipos de conexão entre frases (refiro-me a relações de coordenação, subordinação, etc.) são por si só significativos. De qualquer modo, o que ele persegue ainda, nessa fase estruturante e inicial, é "a música do pensamento". Talvez não o "verdadeiro sentido", ou a "verdadeira intenção" do autor, mas o feixe de sugestões que o poema vem movimentar. É esse feixe de sugestões que a filologia fareja. Não é então desconhecida pela crítica euro-americana actual a acepção em que tomo a palavra, apesar do positivismo e da história literária, de que falam por exemplo Eduardo Prado Coelho (14) e Manuel Frias Martins (15). Há, portanto, uma filologia para cultivar a "forma literal" (16) (a positivista) e outra, a que me parece pertinente, que tem o objectivo oposto: evitar a redução ao literal. A proximidade entre filologia e filosofia, que foi também tema de reflexão no movimento da Filosofia Portuguesa, tem um fundamento filológico esclarecedor a este respeito. A palavra filologia , incluindo em si o grego logos , traz um outro significado que não referimos ainda e que é muitas vezes dado como o único para o étimo, visto o facto comum de encontrarmos logos traduzido por "razão". É verdade que, desde o começo da sua história, a palavra teve também essa entrada, a par da de "conta" (17), "conto" ou "recolha". Da sua dupla origem vieram duas séries de significados: a de "lógica, razão, faculdade racional, proporção"; e a de "discurso, relato" (18), mais do que palavra. O sinónimo "definição", como o "relato verdadeiro e analítico" de Platão, aponta a intersecção das duas séries e é frequente em Aristóteles. A partir desta análise, podemos defender que a filologia não é só o amor pela palavra, ou língua, é também o estudo da razão que nela opera proporcionando, como diz o Sócrates de Platão, "a afirmação de uma característica distintiva de uma coisa" (19). A "razão certa" da ética aristotélica, dita através da palavra logos , apresenta-se também com essa função diacrítica ao ser usada como sinónimo de «limite» e «definição». Daí que Aristóteles rentabilize a acepção de proporção, razão matemática, de muito provável raiz pitagórica. É com tal acepção que ataca o "problema das misturas" e atinge o conceito de «harmonia» (20). Por isso, como disse Álvaro Ribeiro, a "filologia distingue-se da linguística na medida em que seja a busca do logos, do verbo, ou da razão, na linguagem (.../...) Diremos, noutra imagem, que a filologia será o desenvolvimento do Espírito, e nessa acepção a consideramos também quando passa à análise da obra literária. A literatura é já, como ensinou Teixeira Rego, «expressão do sobrenatural»" - o que era reconhecido pelo menos desde Fílon, para o logos, que, não significando "o Deus", participava do seu espírito (21). Note-se que a palavra "desenvolvimento" atrai na citação um carácter etimológico e filológico muito preciso, próximo do de desenovelamento. Na linha do desenvolvimento do Espírito pela palavra se coloca esta outra afirmação do pensador português, feita na mesma altura: "a filologia [.] permite-nos fazer a análise e a síntese dos pensamentos que se exprimem". Desta forma se reúnem o significado de logos como razão e como discurso para orientar a disciplina filológica. Álvaro Ribeiro, nessa passagem, pensava na "linguagem vulgar", mas em qualquer outro tipo de linguagem podemos realizar a mesma operação. José Enes, no já citado livro À Porta do Ser , verbaliza com maior nitidez a ligação íntima entre esta filologia da língua e o estudo da "literatura" falando na transparência metafórica, base de ambas. Discordo da tese que lhe permite associar uma "tendência para a transparência" com a essencialidade metafórica da fala, pois há também qualquer opacidade nessa fala. A reserva, no entanto, não impugna a validação do "método etimológico", largamente comprovada em À Porta do Ser . E parece-me necessária também, como ele diz, a "intimidade com a crítica literária" para se descobrir no estudo filológico os sentidos postos em jogo pela "multiplicidade de recursos e o seu refinado emprego na composição artística da linguagem" (22) - como na não-artística. Principalmente por causa da opacidade a que me referi, a percepção das potencialidades do discurso, mesmo do irracional (veja-se o caso de Freud), precisa dessa intimidade, que torna a crítica inseparável da filologia. A linguagem crítica desatenta originou muitas vezes, na teoria da literatura, questões e imprecisões que estão na origem de equívocos com os quais o trabalho só tem a perder. Isso pode-se ver através de vários desvios semânticos, que são a base de nominações menos correctas. No entanto, em certas épocas essas denominações contribuem decisivamente para a visão da Poesia dentro de uma determinada sociedade ou numa dada elite artística. Foi o caso do próprio conceito de poesia para os românticos em geral e é ainda hoje o caso da confusão entre os termos 'poesia' e 'lírica', daí adveniente. Esta confusão gerou disparates terminológicos e problemas teóricos vários, inevitavelmente consagrados pelo uso de muitas décadas de crítica e de teoria, que a adoptaram num sentido "prático", sem olhar à etimologia. Em A Noção de Literatura e outros Ensaios , para dar um exemplo relativamente recente, Tzvetan Todorov chega ao ponto de nos garantir que "Aristóteles ocupa-se da Epopeia e da Tragédia, não da Poesia", sem se lembrar que ele as incluía na arte então por nomear e a que deu o nome, precisamente, de poesia (23). Outro exemplo, que daqui deriva, é o da designação comum de «poemas em prosa». Como a palavra poesia se perdeu em certa altura do seu sentido original (24) e se confundiu a sua significação com a de lírica em verso, chama-se aos "poemas em prosa" poemas , para os distinguir das narrativas (25), e prosa, para os distinguir dos escritos em verso (26). De facto, o que se procura designar é uma espécie de composição (por isso um poema) lírica, nova na medida em que se escreve em prosa. Bastava, pois, dizer lírica em prosa , ou prosa lírica , para nomear com rigor a espécie, visto que pode haver poemas narrativos em prosa e eles são, à mesma, poemas em prosa. É claro que o peso de obras como a de Hegel e Croce, com a distinção entre poesia e prosa, barraram a crítica filológica da palavra e do conceito a ela associado. Mas nunca é tarde para desfazer o mal-entendido. Por fim um terceiro exemplo, de fundamental importância na crítica literária, que é o da confusão entre «tema» e «motivo». Lembra Karl Popper, em A Miséria Do Historicismo , que a "ciência emprega termos que são denominados termos universais, como «energia», «velocidade», «carbono», «brancura», «evolução», «justiça», «estado», «humanidade»". Esses termos, em literatura, são chamados temas . Segundo Ducrot e Todorov, o "tema de um acto de enunciação é aquilo de que fala o locutor" (27). Esta definição, inserida no Dicionário das Ciências da Linguagem, é uma tautologia (28). Mas pelo menos diz aquilo que se supõe desde logo a partir da origem da palavra grega. A palavra thema, em grego, relaciona-se radicalmente com um verbo que significava colocar, o mesmo que dá origem a hipótese, prótese e síntese; o thema era, literalmente, o "objecto que se põe", chegando a significar "depósito de dinheiro". De objecto que se põe deriva a acepção "o que se propõe", muito próxima do significado de hipótese, que antigamente queria dizer "suposição", mas hoje é uma suposição fundamentada (deduzida ou induzida) que se propõe à discussão em determinado campo científico. Na ciência literária, que é uma das mais antigas na tradição europeia ocidental, o que se propõe diz respeito àquilo sobre que se propõe falar o texto: o amor, a morte, a sorte, não muitos mais assuntos (29). No século XIV da era cristã o tema era ilustrado por um "texto bíblico no início para ser desenvolvido e comentado como corolário do sermão" (30). Esse texto chamava-se tema também, por contaminação, contágio (31), ou vizinhança com a sua função de ilustrar o assunto. Ele era a imagem de ligação entre várias abordagens, os motivos e os tópicos. Esta função não é diferente da que noutro campo lhe confere a filologia de Lázaro Carreter, para quem o tema é o "radical que permite a imediata inserção dos elementos de flexão" (32). Trata-se de um significado que teve consequências para a ideia que se tem de tema enquanto fio unificador, ou imagem congregadora de todas as partes de uma obra - enfim, de raiz. Não se deve portanto confundir «tema» e «motivo», ou «grupos de motivos», como sucedeu já com muitos ensaístas (33). A confusão foi facilitada pela história das duas palavras e também porque em ambos os casos estamos perante "unidades de significado estereotipado" que organizam "áreas semânticas determinantes" (34). Os motivos, relativamente ao tema, posicionam-se como "os elementos da flexão" na definição de Lázaro Carreter. Eles fazem parte da matéria, "livremente fornecida pelo mundo que circunda o poeta", na paráfrase que Segre faz de Goethe. Os temas integram-se no que Aristóteles chamou de dianoia (35) ao falar da Tragédia, ao passo que os motivos dão material à diegese narrativa. Os temas apercebem-se naquela conjunção de assuntos e conceitos que se entrelaça com os motivos dos episódios para criar ou sugerir conteúdos filosóficos. O motivo entra numa parte, ou em várias, de uma obra: pode ser o motivo de um episódio, de um romance, de um verso, de um poema, etc. O tema só se compreende a partir da totalidade da obra, o que lhe garante o "carácter metadiscursivo" (36) e holístico. O motivo é, na literatura, aquilo que parece ter acordado o autor e o leitor para o tema. Ao motivo que figura a causa do poema, normalmente repetido ou transfigurado (na íntegra ou em parte) ao longo do texto, podemos dar o nome de motivo nuclear ou principal , ou leitmotiv. Ao motivo que é suscitado pelo desenvolvimento do poema pode-se dar o nome de motivo secundário. Este, muitas vezes, não se repete ao longo da obra. A clarificação dos dois termos acarreta efeitos colaterais, esclarecendo confusões e imprecisões, de que dou mais dois exemplos apenas. O motivo também se costuma confundir com o "propósito". O propósito "é a informação que ele [o locutor] pretende trazer relativamente a este tema" (37), não é o motivo, pois resulta já de uma correlação entre tema e motivos. Por uma nova maneira de relacionar o amor (tema) e o sexo (motivo nuclear) é-nos transmitido um propósito, uma nova maneira de olhar o assunto. Essa maneira é uma resposta ao tema. A segunda confusão comum, que a clarificação feita acima ajuda a superar, é entre «tema» e «tópico». Mas um tema nunca pode ser um tópico, está situado num nível acima da classificação. C. Segre, no artigo já citado, faz uma nítida distinção entre os dois termos e conclui: "podemos pois dizer que os topoi são motivos : O topos é um motivo codificado pela tradição cultural para ser aduzido como argumento". A proximidade entre os dois conceitos ( tópico e motivo ) é tal que podemos dizer que a repetição de um motivo no interior de uma obra forma uma isotopia. A distinção fundamental é a de que o motivo fornece elementos, matéria, conhecidos ou não, ao passo que o tópico combina esses elementos numa fórmula já conhecida. A par deste género de consequências, que procurámos demonstrar, a desconsideração dos aspectos filológicos acarreta um segundo, mais importante ainda: a falta de rigor filológico permite que se trabalhe no estudo da literatura sem qualquer atenção às potencialidades inscritas no uso e na revitalização da língua do poeta e na do crítico; permite que se leia uma poesia ignorando o potencial significante que a língua incute no poema e o poeta na língua. No entanto, é no seio desta relação que o crítico pode compreender ou explicar as leituras.

Francisco Soares

 

Notas

(1) C. Carena, «Filologia», Enciclopédia Einaudi , v. 17, p. 200.

(2) M. F. Martins, Matéria Negra: uma Teoria da Literatura e da Crítica Literária , Lisboa, Cosmos, 1993, p. 156.

(3) Id., ib. Em Croce aparece como a preparação para a crítica de um determinado texto (v. La Poesia , ed. cit., pp. 150-151).

(4) Id., p. 201.

(5) V. o Dicionário dos Synonymos da Língua Portugueza, Paris; Lisboa, Guillard, Aillaud & C ie , sd, p. 414, art.º 600: a língua é "o conjunto de vozes ou termos com que cada nação exprime os seus conceitos".

(6) Arte Poética , Lisboa, Teoremas de Teatro, 1963, p. 30.

(7) Note-se a acepção muito particular que toma aí «filologia».

(8) À Porta do Ser : ensaio sobre a justificação noética do juízo de percepção externa em S. Tomás de Aquino , Lisboa, Difusão Dilsar, sd, p. 35.

(9) Lisboa, Teoremas de Teatro, 1963, pp. 15-21.

(10) Porto, Lello & Irmão, 1974.

(11) Cf. António Braz Teixeira, «O Pensamento de António Quadros [.]», em Deus, o Mal e a Saudade , Lisboa, Fundação Lusíada, 1993, p. 233.

(12) Op. cit.. Neste aspecto o método continua-se em Linguagem e Ser , publicado em Lisboa pela IN-CM.

(13) Jahanbegloo, Ramin, Quatro Entrevistas com George Steiner , trad. Miguel Serras Pereira, Lisboa, Fenda, 2000, p. 78.

(14) Os Universos da Crítica, Lisboa, Ed. 70, 1987, p. 218.

(15) Matéria Negra, Lisboa, Cosmos, 1993, pp. 150-151.

(16) Op. cit., p. 223.

(17) Note-se que Aristóteles usava também logos com o significado de proporção matemática (Metafísica , 991 b).

(18) F. E. Peters, Termos Filosóficos Gregos : um Léxico Histórico , 2ª ed., Lisboa, FCG, [1983], p. 135. Em Platão assumia também o uso comum de "relato verdadeiro e analítico" (id., p. 136).

(19) Teeteto , 208 c, citado de Peters, op. cit., p. 136. Cf. Fédon 76 b (igualmente referido em Peters): "um homem que sabe é capaz, ou não, de dar razões daquilo que sabe?" (Platão, Diálogos , I, 2ª ed., trad. e notas de José Cavalcante de Souza, Jorge Paleikat e João Cruz Costa, São Paulo, Abril Cultural, 1979, p. 80).

(20) Peters, op. cit., pp. 136-137, p. 110 e p. 95.

(21) Peters, op. cit., p. 137.

(22) p. 30.

(23) La Notion de Littératura et autres Essais , Paris, Seuil, 1987, p. 24. Já na p. 13 ele opunha "romances, novelas, peças de teatro" a "poesia".

(24) Leiam-se os comentários de Barilli a propósito, no Curso de Estética , p. 89.

(25) Na medida em que "poema" ou "poético" é tomado na acepção de coisa própria do discurso lírico (veja-se o acima citado exemplo de Todorov).

(26) Na medida em que "prosa" recorre na vulgarização modernista com o significado de " discurso da narrativa " (cf. Gilberto Mendonça Teles, Estudos de Poesia Brasileira , p. 24).

(27) Ducrot, O., Todorov, T., Dicionário das Ciências da Linguagem , 6ª ed. port., Lisboa, D. Quixote, 1982, p. 325. A definição é precisada na página seguinte, mas aí só tem aplicação linguística ("o tema é a questão a que o enunciado responde").

(28) Palavra exemplificada na mesma obra (p. 344). O seu significado no dicionário português é "tautologia / s. f. / ( lóg .) proposição dada como explicação ou como prova, mas que, na realidade, apenas repete, em termos idênticos ou equivalentes, o que já foi dito; proposição na qual o predicado diz a mesma coisa que o sujeito, quer em termos idênticos, quer em termos equivalentes". A palavra tem origem no gr. tautología, «repetição de palavras», segundo a mesma fonte ( Dicionário da Língua Portuguesa , Porto, Porto Ed. : Priberam, 1996).

(29) Em latim, aquilo que é assumido, o que se toma para si, razão pela qual é dado como sinónimo de tema em português (Cf. Dicionário da Língua Portuguesa , Porto, Porto Ed. : Priberam, 1996). Assumpto compõe-se a partir de [ad-sumo], sendo o verbo traduzido por "pegar, tomar" (segundo A. Gomes Ferreira, Dicionário de Latim-Português , Porto : Lisboa, Porto Ed. : Empr. Litª Fluminense, p. 1108). O que se toma para si é, de facto, o mesmo que vem depois propor-se à discussão, o tema. Parece-nos, portanto, lógico ter "na Idade Média [o tema], além do significado de 'matéria' (...) o de assunto tratado", conforme lembra C. Segre no artigo «Tema / Motivo» ( Enciclopédia Einaudi , ed. port., Lisboa, IN-CM, 1998, p. 94).

(30) Segre, loc. cit..

(31) Para o sentido em que usamos a palavra, v. Stephen Ullmann, Semântica: uma introdução à ciência do significado , 4ª ed. port., Lisboa, FCG, [1977], p. 411.

(32) p. 388.

(33) B. Dupriez, Les Procédes Littéraires (Dictionaire) , Paris, UGE, 1984, p. 449, nota 1.

(34) Cf. Segre, art. cit., p. 107.

(35) Seria essa a ideia de Panofsky, segundo Segre, que a recusa por outra causa, por achar que há temas ao nível da "forma" e não só do "conteúdo".

(36) Segre, art. cit., p. 107.

(37) Ducrot, O., Todorov, T., Dicionário das Ciências da Linguagem , 6ª ed. port., Lisboa, D. Quixote, 1982, p. 325.

 
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Francisco Soares viveu e estudou em Angola até aos 17 anos. Viveu e estudou depois no Brasil e em Portugal, estando prestes a regressar ao seu país. Começou a fazer poemas-objecto e colagens, como muita gente, na escola primária. Começou a fazer fotografia em 1980. É poeta, crítico literário, professor e promotor cultural. Adora ver como as coisas se transformam em outras num processo infinito e de que participa consciente e voluntariamente. Essa animação pela imaginação é a raiz da arte e da vida. O resto são consequências.