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FRANCISCO SOARES

“Tirar Doutrina”: Cruzamentos Narrativos de Cadornega

INDEX

Contextos
(In)definições
A língua: Intenção estética, oralidade e originalidade
Intenção estética
Oralidade
Estórias cruzadas
Recursos de conexão
BIBLIOGRAFIA

Contextos

Para o contexto receptivo desta revista a presente investigação pede precisões. Alguns dos leitores talvez não conheçam muito bem a História General das Guerras Angolanas. O que é importante para o caso é que elas foram escritas por um capitão alentejano (de Vila Viçosa) do exército português que chegou em 1639 a Angola, voltando velho e endinheirado a Vila Viçosa para aí escrever ainda uma descrição da mesma. Viveu no território angolano de hoje a maior parte da sua vida e uma parte significativa, mesmo central, do século XVII. Juntou estórias que ouviu e os acontecimentos de que participou e escreveu essa obra em três volumes. Cadornega partiu de onde se instalara a ‘corte na aldeia’, com bagagens reais (bragantinas) e algumas armas ainda. Ali havia homens negros também e leões, oriundos de África. Havia certamente muitos ‘africanos’ que passavam por lá no regresso a Portugal e contavam também estórias gloriosas de caça e guerra nas pátrias do exotismo. Desta maneira o intuitivo historiador ia já preparado para pelo menos uma ‘campanha de África’. O mundo que então conheceu deve tê-lo, mesmo assim, surpreendido, pois existia muito para além da realização do imaginário que em Vila Viçosa havia sobre ele. Alguma formação que teve, oralmente e por leitura, em clássicos greco-latinos, em cronistas portugueses e em Camões, especialmente Os Lusíadas, ajudou-o a estruturar a sua narrativa. A obra resulta aliás da mistura destes elementos com estórias contadas naquelas comunidades imprecisas e flutuantes na sua concretude.

Junto com isso conta-se tudo num estilo vivo, colorido, bem localizado, com imagens de surpresa, que alcança maior profundidade quando relaciona (pode-se dizer que naturalmente) os mitos bíblicos e europeus com a realidade e os mitos angolanos. Foi neste cruzamento de intenção estética e mistura das culturas em confronto que José Carlos Venâncio viu, com justeza, a importância da obra de Cadornega para a angolanidade literária (considerando-a “esteticamente precursora da literatura angolana» - 1993: 25; v. também 1992 a: 15 e 2000: 127).

O título é um resumo. É uma História: modela-se pela crónica, tanto a clássica latina e grega quanto a portuguesa. E traz da portuguesa já essa vivacidade e naturalidade que vemos em Fernão Lopes. A segunda palavra do título é espanhola (General), o que foi mudado posteriormente mas é termo que se repete no corpo do próprio texto, junto com outros castelhanismos. As guerras angolanas, se por um lado expressam uma filiação clássica (a de César, por exemplo, em De Bello Gallico), por outro faz a correspondência para Angola de uma obra mal conhecida e dedicada ao Brasil. A obra foi escrita pelo “General das Frotas do Brasil, e Governador que foi de Pernambuco Francisco de Brito Freire” e era conhecida como “as guerras Brasílicas”. A correspondência é feita explicitamente (e com humildade) por Cadornega. Nessa correspondência define os três valores do seu modelo, pois acha o livro escrito “com tanta bizarria e elegância e verdade” que tem pena de não ver em Angola algo semelhante, havendo ali tantos “sucessos prósperos e adversos” (citações da p. 9 da edição de 1972, a que seguimos neste artigo). Coincidência que se torna significativa para pensarmos como se foi construindo a angolanidade literária, cerca de 170 anos mais tarde José da Silva Maia Ferreira publica o seu livro inaugural dedicado “às senhoras angolanas”, por contraste humilde com uma dedicatória hoje mal conhecida “às senhoras brasileiras”. O original de Cadornega ficou terminado em 1680-1681 (os dois primeiros volumes) e 1683 (o terceiro). O livro de Maia Ferreira saiu em 1849 ou 1850 (leia-se para esse livro a introdução de Salvato Trigo à edição mais recente, da IN-CM, e – modéstia à parte – o meu livro Notícia da Literatura Angolana, também da IN-CM).

O livro de Cadornega ficou inédito até ao século XX. Disseminou-se minimamente pelas cópias manuscritas, comuns na época, mas nunca por livro. Apesar disso, a intuição literária e linguística de Cadornega levou-o a escrever o que seja talvez, para a gloriosa família, o primeiro livro da literatura angolana. Porque, já antes de se ter tornado público, as vias estilísticas e de cruzamento cultural por ele exploradas deram sinais em muitas outras obras da nossa história literária, mostrando assim que ele tinha inaugurado um sentido determinante da nossa identidade literária. Daí que os estudiosos voltem constantemente à História General e aos caudais míticos, históricos e linguísticos que manam ao longo dos seus três volumes.

O prefaciador da edição de 1972 da História Geral das Guerras Angolanas diz que, no vol. III, Cadornega descreve a etnografia de Angola e Congo, onde se misturam “divagações, crendices e ingenuidades” (pp. VIII), sem dúvida sucessos extraordinários e extravagantes (1972, III: VIII, 271 e seguintes). O objecto deste ensaio é o de observá-los enquanto narrativas literárias. Falamos de narrativas porque esse é o género dominante na obra. Também havia, nas mesmas comunidades e quer entre reinóis quer entre filhos da terra, “poetas e curiosos” a versejar (1972, III: 316). A menção a poetas aparece várias vezes na crónica, bem como a pregadores exímios na oratória, e é reforçada ou esclarecida por outras fontes. É escasso, no entanto, o nosso conhecimento desses textos. A História General transcreve alguns (de um filho da terra e, no final, de um reinol – ou seja, oriundo do Reino, no caso do reino português). O relato dos festejos pela beatificação de Francisco Xavier copia mais alguns. Mas não chega. Não sendo suficiente o material conhecido até hoje para nos debruçarmos com detalhe sobre a oratória ou a lírica, e visto que a obra de Cadornega está cheia de pequenas estórias, voltamo-nos para a narrativa, construída aliás com uma vivacidade poética e uma dinâmica linguística próprias de um verdadeiro escritor.

A linguagem na qual as peças estão construídas, segundo se resume no mesmo prefácio, “[...] é quási um crioulo, girarem muitos termos dos dialectos indígenas ou aportuguesados, além dos vocábulos antiquados ou espanhóis” (1972, III: VII). O próprio livro nos desenha as condições nas quais emergia uma linguagem com tais características. São condições que de forma geral remetem para cruzamentos culturais cujo desenho encontra similaridades no Brasil e noutros espaços lusófonos ou crioulos. Resumo em seguida algumas das que são nomeadas nesse mesmo volume III.

As igrejas eram, apesar de vigiadas pelo policiamento doutrinal, espaços onde havia margens de manobra suficientes para dar lugar a processos de miscigenação cultural. Nas igrejas havia missas com danças e estâncias, sendo nas de Nossa Senhora do Rosário dos Negros “danças dos mesmos pretos, e suas estâncias, por onde dá a volta a procissão” (1972, III: 15). Não pensemos apenas nas danças. Algumas destas estâncias eram pintadas por padres e é de prever que alguns deles fossem filhos da terra. No Reino do Congo, por exemplo, havia segundo Cadornega um “insigne pintor”, aliás “homem afazendado”, nomeadamente o P. e Manuel Rodrigues. Um padre com esse nome, segundo o A. Brásio mestiço, foi confessor de D. António I, o Mwana Mulaza, tendo sido preso pelos portugueses na batalha de Ambuíla. Adriano Parreira diz que é o mesmo Padre (o pintor afazendado e o confessor do Rei), acrescentando ainda que ele pintou uma imagem de Santa Ana, a pedido da Rainha Jinga, para o templo homónimo. A fama de pintor do padre Manuel Rodrigues ilustra a apetência cultural do meio (incluindo das elites não-coloniais), uma apetência geralmente ignorada, que é no entanto multipolar e decisiva para sustentar a síntese cultural angolana.

As capelas de música e os pregadores eram outras duas componentes humanas e culturais que participavam da missa e das romarias como, por exemplo, a que os de Massangano faziam à Senhora da Muxima (1972, III: 110). Os próprios moradores pagavam a comitiva musical e o pregador demonstrando a sua devoção e, consequentemente, estimulando a apetência artística dos habitantes. Lembremo-nos de que estávamos numa época em que o cerimonial e a festa se destacavam, não só pelo predomínio do barroco a um nível já globalizado, mas ainda pela importância que tinham na missionação essas mesmas festas religiosas (que já na Europa tinham apropriado rituais pagãos). De maneira que todas estas manifestações eram vistas com bons olhos pela própria estrutura eclesiástica e proliferavam no seu seio. Através delas, em discursos pictóricos ou verbais dedicados a públicos diversos (por exemplo a filhos de chefias tradicionais e coloniais; a forros e homens livres e mesmo a escravos), as memórias literárias diversificadas pediam leituras possíveis para cada uma e, portanto, uma estrutura artística e moral que as misturasse, que as levasse a todas em conta.

As cerimónias religiosas entrelaçavam-se com o gosto pela comida, que levava até mesmo aos conventos “muitas e boas cozinheiras” daquelas terras (1972, III: 121). Os cozinhados misturavam receitas e produtos locais com outros inicialmente exógenos, tornando-se num indício de cruzamentos culturais, tal como percebeu Gilberto Freyre. As colas, por exemplo, “as come toda a gente portuguesa de Angola” (1972, III: 201). Cadornega, ele próprio, confessa-se um grande apreciador de ginguba. Por sua vez a Santa Casa da Misericórdia mantinha sempre “a despensa provida”, entre outras coisas, de “açúcar, azeite, vinho e vinagre, marmelada e dos mais doces de Portugal, biscoito, farinha mimosa, bejus, massa ou milho, e miúdo para ração da escravaria da casa, farinha de guerra” (1972, III: 22). O “beju” ou “beiju” era termo brasileiro que se dava a um preparado de tapioca, ou mandioca, ralada, que depois era assado. Ainda hoje é nome que circula no português e na culinária do Brasil. A restante provisão tem origens conhecidas e histórias que passam por diversas paisagens e culturas. A elas havia de se acrescentar ainda o óleo de palma, por vezes de coco (Cadornega, 1972, I: 488; Venâncio, 1996: 55).

Os cruzamentos culturais não se ficavam pela cozinha nem pelas vigiadas igrejas. O valor comercial atribuído aos produtos da terra exprime, por seu turno, a mesma integração de culturas diversas num meio muito fluído, que os despachos de Lisboa não tinham tempo de controlar miudamente, mas que envolviam toda a escala social dos espaços colonizados e circunvizinhos.

A transversalidade social era reforçada, na colónia, pela facilidade com que se juntavam, por exemplo, o comerciante e o militar, ou o funcionário, o comerciante e o militar, em muitos casos na mesma pessoa (sobre as tensões provocadas por essas imprecisões sociais v. José Carlos Venâncio, 1996: 175). Cadornega é um deles e por isso nos chama a atenção para os dois aspectos ao mesmo tempo, referindo por exemplo sobados que tinham “todos em suas terras passagens e portos para a vasta província do Libolo” (1972, III: 153), ou sobados onde era farta a comercialização das armas de fogo, “que são tão bastas por todo este sertão” (1972, III: 177). Tais informações interessavam à milícia e ao comércio. A atenção de Cadornega ao duplo controlo (político-militar e comercial) das rotas deriva de ser ele também negociante, não somente militar. Muitas outras passagens espalhadas ao longo do livro são indicações para comerciantes: os produtos, “que são muito estimados”, a qualidade do sal que os Mundombes negoceiam, a lista de produtos da terra e sua nomeação. Quando fala em zebras, logo se lembra virem delas “aquelas formosas e vistosas peles, e chingas (ceras) de Endure”, ou de elefante. Há aqui o fascínio pelo produto mas também uma indicação do quanto é apreciado – logo, do seu interesse comercial. A caracterização dos espaços passa constantemente por índices mercantis, avisando-se por exemplo que, “ principalmente o que é de mais proveito, há muito negócio de peças e marfim” (1972, III: 202). Entre os produtos considerados encontramos alguns de fabricação local. É o caso da cal de mabanga, cotada nos circuitos em referência. Fornos de cal havia, na Ilha de Luanda, tanto propriedade de europeus quanto de axiluanda (Venâncio, 1996: 124 – a informação é extraída à obra de Cadornega). Outros, claro, são produzidos fora do território, trazidos do Oriente, ou do Ocidente, ou do Norte do planeta. É pela atenção ao comércio em curso que ele aponta, aliás, o que havia a negociar nas terras e por que preço (1972, III: 195). Ora negócios como o da cera atravessavam também todo o espectro social, podendo-se dizer que só os escravos não negociavam cera. Todos os outros povos o podiam fazer e faziam-no. Isso é exemplificado a pp. 96-97 do vol. III, para a zona da Muxima e Quissama (Venâncio, 1996: 130).

O sal é outro produto transversal. Os mundombes, junto a Benguela, administravam as salinas, ainda hoje em funcionamento nas mãos de privados. As caravanas vindas da Huíla negociavam produtos com eles. Os mundombes, por sua vez, negociavam o sal com os comerciantes de Benguela, que o revendiam para Luanda. Os produtos transversais, ao atravessarem o espectro político, geográfico e social do que hoje é Angola, abriam também a circulação de informações culturais díspares e diversas nas quitandas dos caminhos.

A negociação passava pelas medidas para o cálculo dos preços das mercadorias, que não eram sempre as mesmas. Incluíam, por exemplo, o “emzeque”, valendo cada “emzeque [...] dois alqueires”. E passava a mesma negociação, claro, pelo valor da moeda, tendo o autor o cuidado de nos dar a equivalência entre os panos-moeda e as macutas que entretanto se introduziram. Tal como hoje sucede a um nível global, os interesses em jogo não se agregavam só por religiões ou chefias, instrumentalizavam também as próprias moedas de troca, o sistema de câmbios entre valores diversos mas conterrâneos.

No que diz respeito à administração da justiça, tarefa-chave para comerciantes e militares, encontramos a mesma instável amálgama, que deve ser contrastada com outros espaços da expansão portuguesa como por exemplo a Índia. No Congo o ‘Justiceiro’ (“Vangu Vangu ou Bangu Bangu ou Kibangubangu”) era a terceira figura na hierarquia nobiliárquica após a tentativa de introdução do modelo monárquico português da época. Nos julgamentos, o “mbukâmi” era o advogado do queixoso (Vitoriano, Cruz e Lucena, 1998: 230). Não sei se o nome tem relação com o nome que vamos reportar a seguir, mas trata-se de uma instituição nitidamente cruzada entre as tradições jurídicas portuguesa e bantos. Refiro-me ao “mucano”, ou seja, um julgamento “sem processo de papéis” (1972, III: 51, nota 75). No Dande, fronteira então com o Reino do Congo segundo o cronista, o capitão-mor resolvia “pleitos e mocanos, assim dos portugueses, que na capitania residem, como aos sovas fidalgos [...] que vêm por apelação a esta cidade a seu juiz competente” (1972, III: 54). O juiz colonial, coincidindo com o capitão-mor, entrava assim na estrutura social dos povos circunvizinhos e avassalados. Mas entrava requisitando-lhes também processos jurídicos. Esse tipo de julgamentos pode-se pensar que permitisse mais arbitrariedades face à lei portuguesa, que era escrita. Mas visto por outro lado esse tipo de julgamentos era preferível para as chefias locais, na medida em que lhes permitia defenderem-se num quadro retórico próprio e na medida em que a sua forma de justiça era adoptada pela nova autoridade.

Para além destas questões institucionais, ao nível de práticas quotidianas inobservadas habitualmente, é curioso lermos que, para o corte do cabelo, havia profissionais brancos e escravos, envolvidos em funções iguais para diversos tipos de clientela. Havia, portanto, um cruzamento de saberes também ao nível mais comezinho e, o que é mais importante, em momentos de muita conversa, que se dão à passagem de informações culturais e de notícias vitais.

Muitas vezes, o processo de mistura passava pela procriação e a vida em comum de pessoas de culturas diversas, originando novas miscigenações biológicas e culturais. Cadornega refere, neste mesmo volume, que a Infantaria causa “muita produção” (termo tão moderno!), reportando ainda “outra gente particular, em falta de damas brancas, nas negras damas, de que há muitos mulatos e pardos” e “mulatas, filhas de homens de bem, conquistadores, havidas em suas escravas e outras em negras forras” (1972, III: 30. Note-se que na estrutura social bakongo havia também escravos e forros. Estes apelidavam-se munto-a-kanda ou mfumu; aqueles podiam ser muntu-a-nzimbo – eram trocados pelo zimbo-moeda – ou muntu-a-bongo. Veja-se Vitoriano, Cruz e Lucena, 1998: 230). E já nessa passagem faz o autor a comparação com a Índia, Afonso de Albuquerque e o Brasil. Então podemos dizer que parte da teoria do luso-tropicalismo germinava nesse instante.