Sabores do Sul. Plantas aromáticas e condimentos nas receitas tradicionais do Sul de Portugal

Luís S. Dias e Alexandra Soveral Dias
Departamento de Biologia, Universidade de Évora, Ap. 94, 7002-554 Évora
alxandra@uevora.pt

Na aromatização dos alimentos conseguida com recurso à adição de pequenas quantidades de plantas aromáticas reside muitas vezes grande parte do segredo dos sabores característicos de um prato tradicional.

Não deixa de ser espantoso o poder aromatizante destas plantas que pode operar alterações tão profundas e influenciar de uma forma tão dramática o sabor dos cozinhados. Efectivamente destes gestos banais de temperar, resulta de certa forma um pequeno milagre que se repete em cada cozinhado mas que exige e tem por base um saber precioso, o conhecimento das propriedades dos alimentos e condimentos, ou seja por outras palavras o saber dos seus sabores. Apesar de aparentemente banais, temperar e cozinhar são exercícios de sabedoria que exigem um conhecimento profundo dos sabores originais que alquimicamente se misturam para que nasça algo de novo, um sabor diferente que se pretendia e almejava.

Esta sabedoria implícita revela-se na confusão dos significados. De facto, estas palavras tão próximas «saber» e «sabor» confundem-se nalguns casos pois a palavra «saber» tanto pode significar conhecer, estar informado com ter sabor, dependendo do contexto em que seja usada.

Conhecer os sabores é fundamental na construção de qualquer culinária, quer seja ela uma pretensiosa cozinha de autor quer sejam as diversas culinárias regionais de cariz tradicional.

Mas será porventura preciso não esquecer que, apesar de terem efeitos milagrosos, os saberes dos sabores não nascem do nada por súbito milagre. Há todo um passado de que se perdeu o rasto e a origem, já imersos em brumas sem memória, que se encontra na base destes conhecimentos. Deste passado longo, em que se foram realizando experiências, tentando inovações, conseguido resultados variáveis em que os mais apreciados se foram fixando e transmitindo de geração em geração para depois se alterarem em função de outros gostos e modas em épocas diversas, acabou por resultar uma cristalização (provavelmente temporária) de conhecimentos e práticas em inúmeros livros de receitas. Estes, muitos manuscritos, espalhados por cozinhas de vários tempos e vários territórios, formam neste pequeno país, uma colecção imensa e ignorada de que não há história nem estatísticas. A face mais visível que constitui de certa forma a porção emersa deste imenso iceberg é também uma vasta colecção de livros de cozinha impressos e mais ou menos disponíveis para o grande público.

Foi a partir de uma selecção deste universo dos livros de cozinha impressos sobre a culinária tradicional portuguesa que se elaborou o estudo que agora se apresenta sobre as plantas aromáticas e condimentos que caracterizam a culinária do Sul de Portugal.

Mas nem todos os livros sobre este tema nos puderam auxiliar nesta pesquisa, já que só os que cobrem todo o país e simultaneamente apresentam uma discriminação por regiões geográficas ou por povoações nos poderiam servir, uma vez que intentamos a prazo distinguir e caracterizar, área a área, região a região, a culinária tradicional deste pequeno mas surpreendentemente diversificado país que é Portugal.

No presente trabalho a nossa atenção recai apenas nas regiões vizinhas mas bem demarcadas, geográfica, cultural e também culinariamente que são o Alentejo e o Algarve.

O Alentejo e o Algarve

De uma forma muito resumida estas regiões que formam no seu conjunto o Sul de Portugal têm como principal ponto comum a contiguidade espacial mas surpreendentemente, mais uma vez, as semelhanças parecem terminar aí.

Como Mariano Feio (1) tão bem descreveu, o grande Alentejo que aqui consideramos é uma terra seca, de peneplanícies monótonas com grandes ondulações e pequenas elevações afastadas umas das outras que só recebe chuvas abundantes no Outono e Inverno. Seguindo ainda uma descrição do mesmo autor, quando se percorre este autentico país, dentro do país, onde a população se aglomera em povoações muito afastadas umas das outras e se percorrem as estradas intermináveis, uma idéia de solidão e abandono acorre insensivelmente ao espírito.

Possivelmente este fraccionamento da população em povoações afastadas e até recentemente, relativamente pouco comunicantes (2) terá contribuído para a diversificação de usos e costumes incluindo naturalmente os culinários.

Mas a uniforme monotonia da paisagem alentejana não se estende a todo o Sul de Portugal. Para além das ondulações que marcam o fim da peneplanície alentejana, estende-se o Algarve, uma faixa litoral de dimensões exíguas com características muito próprias e contrastantes com o resto do país que figurava ao mesmo título que Portugal na enumeração dos domínios dos primeiros reis portugueses (3). O Algarve é uma região calcária com um relevo movimentado, acidentada, com uma vida camponesa intensa comportando ainda uma planície litoral com múltiplos portos de pesca e cidades antigas de onde, a partir da Idade Média, se exportaram frutos e sal e de onde, a partir do séc. XV partiram os barcos à descoberta de novas rotas marítimas (3).

O Alentejo com uma área de cerca de 27 mil quilómetros quadrados representa aproximadamente 31% da área continental de Portugal mas com cerca de 536 mil habitantes tem apenas 5% da sua população. Assim a densidade populacional é aqui muito mais baixa do que a média do país situando-se nos 19.7 habitantes por quilómetro quadrado. Com 62 povoações classificadas como cidades ou vilas, não dispõe de mais do que 2.2 povoações por mil quilómetros quadrados.

Já o Algarve tem uma área bem menor, de aproximadamente 5 mil quilómetros quadrados, que representa apenas 6% da área continental de Portugal mas é uma região muito mais povoada. Apesar de em números absolutos a população algarvia de cerca de 395 mil habitantes ser inferior à alentejana, a densidade populacional (79.2 habitantes por quilómetro quadrado) é quatro vezes superior. A densidade de cidades ou vilas sobe também aproximadamente na mesma proporção, sendo de 8.2 povoações por mil quilómetros quadrados(4).

De um mundo de livros de receitas

Recorrendo às fontes que nos foi possível encontrar com as características requeridas e acima enunciadas (5-11) reuniu-se um conjunto de receitas do Alentejo e Alagarve que foram posteriormente analisadas.

Consideraram-se todos os pratos à base de vegetais, ovos, peixe, mariscos e carne. A doçaria não foi considerada e está fora do âmbito deste trabalho que, numa palavra, incide apenas sobre pratos salgados em que o sal é um ingrediente invariavelmente presente e que por isso mesmo não considerámos na nossa contabilidade.

De notar que foi necessário excluir algumas receitas que constituíam de facto repetições, apesar de provirem de diferentes fontes e serem nomeadas de forma diferente, eram na realidade idênticas nos ingredientes (12).

Foi ainda necessário excluir algumas receitas pela sua excentricidade. Uma destas receitas, de Alpalhão, designada como Arroz amarelo e do outro (13), merece destaque, pois trata-se de um caso singular. A excentricidade desta receita fica a dever-se à presença de um condimento exclusivo o «açafrão» que pode ser substituído pelo «gengibre amarelo» apesar de não parecer muito seguro de que açafrão ou gengibre amarelo se trata. Na realidade, surgem-nos algumas dúvidas sobre este «açafrão» pois segundo outra fonte (14) num prato semelhante e também indispensável nos casamentos confeccionado na zona de Alter-do-Chão, muito próxima de Alpalhão, o «açafrão» utilizado seria na realidade açafroa ou açafrão bastardo, obtido a partir do cardo Carthamus tinctorius L. o qual seria profusamente cultivado nos quintais da terra. Por outro lado, também a designação de gengibre amarelo levanta algumas dúvidas, parecendo provável tratar-se da curcuma ou açafrão das Índias (Curcuma longa L.), a espécie mais utilizada na substituição do verdadeiro e dispendioso açafrão (Crocus sativus L.).

As plantas aromáticas, condimentos e
especiarias na caracterização das receitas

Após análise das várias fontes disponíveis e eliminação das repetições foi possível finalmente apurar 207 receitas diferentes para o Alentejo e 143 para o Algarve.

Assim, apesar de existir uma óbvia desigualdade entre regiões em número absoluto de receitas ela corresponde ao que seria de esperar tendo em conta a maior superfície e maior número de habitantes da região Alentejo. Porém se procurarmos ponderar estes números tomando em conta a área respeitante às recolhas ou o número de habitantes e povoações, verifica-se que o Algarve é nalguns aspectos mais produtivo.

Com efeito, se expressarmos o número de receitas em função da área das duas regiões verificamos que a terra algarvia se revela cerca de 3.8 vezes mais produtiva em receitas que a alentejana uma vez que temos em média 7.6 receitas por mil quilómetros quadrados para o Alentejo e 28.7 para o Algarve. Já no que diz respeito ao número de receitas por habitante ou por povoação (vila ou cidade) as discrepâncias são mínimas com em média 3.5 e 3.3 receitas por povoação e 3.6 e 3.9 receitas por 10 000 habitantes para o Algarve e Alentejo respectivamente.

No conjunto das 207 receitas alentejanas encontra-se um total de 154 ingredientes que não difere significativamente dos 126 ingredientes encontrados para o conjunto das receitas algarvias (razão entre ambas 1.2). Também são muito semelhantes entre as duas regiões analisadas, o número médio de ingredientes por receita (8.7 e 8.6) ou o número médio de ervas aromáticas, especiarias e outros condimentos por receita.

Aplicamos aqui uma classificação que importa explicar. Julgou-se útil distinguir três categorias de temperos nomeadamente (a) as plantas aromáticas, plantas condimentares de sabor intenso com origem ou ocorrência espontânea em Portugal ou ainda naturalizadas ou cultivadas no país (b) as especiarias que sendo plantas aromáticas exóticas têm que ser importadas por não se adaptarem ao nosso clima e (c) os condimentos (outros condimentos) que apesar de poderem ter uma origem vegetal são produtos já transformados como por exemplo o vinho, a aguardente, o vinagre ou ainda o limão (15) que pode ser usado como substituto do vinagre.

Também com vista a hierarquizar um pouco estes temperos consoante critérios tanto quanto possível objectivos consideramos como importantes os que surgem em mais de 10% das receitas, como frequentes os que se encontram entre 10 e 1% e raros os que só ocorrem em menos de 1% das receitas.

No seu conjunto, as receitas do sul de Portugal, recorrem a 37 temperos. Destes 10 são exclusivos de uma das regiões. Oito aparecem apenas nas receitas alentejanas. Os poejos, a manjerona e a laranja são frequentes enquanto a salva, a canela, o açafrão e a segurelha que são raros nas receitas no Alentejo estão ausentes nas receitas do Algarve. A estes há ainda a juntar o «vinho» sem indicação de tipo. Em contrapartida o Algarve tem como temperos exclusivos a casca de laranja e a folha de cebola, ambos raros, que não surgem nas receitas do Alentejo.

É de notar que num trabalho anterior em que, com recurso a fontes muito mais diversificadas, se recolheram 325 receitas do Alentejo, a folha de cebola era um dos temperos presentes (16), utilizado em pratos de favas.

Na tabela 1 apresenta-se a lista de temperos presentes nas receitas do Sul de Portugal.

Os temperos mais usados se considerarmos o conjunto das duas regiões são o alho e a cebola. Estas plantas de origem incerta e que já não se encontram crescendo no estado selvagem são cultivadas desde a Antiguidade (17). A sua primazia entre os condimentos do Sul de Portugal não surpreende na medida em que são temperos importantes de utilização generalizada, pelo menos em pratos de carne, um pouco por todo o mundo (18). Embora as quantidades em que muitas vezes são usados permitissem e até justificassem a sua classificação mais como alimentos do que como condimentos, são, apesar disso, usualmente consideradas plantas condimentares devido ao seu sabor/aroma intenso, qualidades bactericidas, bacteriostáticas e medicinais (17).

O alho é o condimento mais utilizado no Alentejo onde entra na composição de 75% das receitas diferindo significativamente do Algarve onde a sua utilização é mais parcimoniosa entrando apenas na composição de 62% das receitas analisadas.

No Algarve, o condimento mais importante é a cebola não havendo diferenças significativas na sua utilização entre as duas regiões (60% no Alentejo e 69% no Algarve). Ao ter a cebola como principal tempero, aquele que está presente em maior número de receitas, o Algarve está mais próximo do que o Alentejo da média mundial obtida por Sherman e Billing (1999) analisando 5 000 receitas de pratos de carne de todo o mundo (17). Nesse estudo a cebola emergiu como o principal tempero mundial enquanto o alho ocupa uma posição mais modesta.

Tabela 1. Temperos considerados como plantas aromáticas, especiarias e condimentos (ver explicação no texto), utilizados nas receitas do Sul de Portugal, Alentejo e Algarve expressos em percentagem do total de receitas da região em causa. Entre parêntesis número de ordem de importância (decrescente) do ingrediente na região. Valores relativos aos temperos importantes em cada região (presentes em mais de 10 % das receitas) realçados a negro, os relativos aos temperos frequentes apresentam-se a itálico enquanto os temperos raros (presentes em menos de 1% das receitas) apresentados em caracteres normais. Temperos em que há diferenças significativas de ocorrência no Alentejo e Algarve assinalados com asterisco.

A seguir a estes dois pesos pesados do condimento surge a pimenta, em terceiro lugar para o Sul de Portugal. A sua utilização é significativamente superior no Algarve (63% para 49% no Alentejo). Aliás é de referir que a pimenta é o segundo tempero mais utilizado no Algarve onde o alho só surge em 3º lugar. É também de notar que na ordenação dos três temperos mais importantes o Algarve segue rigorosamente o modelo mundial observado por Sherman e Billing (18) com a cebola, a pimenta e o alho, por esta ordem, ocupando respectivamente o primeiro, segundo e terceiro lugar de frequência nas receitas. Enquanto isto, o Alentejo mostra-se mais original reforçando-se assim, também neste aspecto, a reputação de ter uma culinária muito particular. São, no entanto, necessários mais estudos para a confirmar esta singularidade condimentar alentejana, nomeadamente estudos que permitam a comparação com outras regiões de Portugal e do país vizinho.

A pimenta é frequentemente referida apenas como pimenta. Assumiu-se nestas circunstâncias que se trataria da pimenta branca, seguramente a pimenta mais usada no Sul de Portugal, de tal forma que os autores consultados consideram desnecessário especificar mais.

A pimenta branca, tal como a pimenta preta e a pimenta verde são obtidas da mesma planta Piper nigrum L. (19), originária das florestas tropicais da Índia equatorial (20).

Intensamente comercializada, particularmente a partir do princípio do séc. XVI, após a descoberta do caminho marítimo para a Índia pelos portugueses, tornou-se imensamente popular na Europa e a sua posição destacada nas receitas do Sul de Portugal parece fazer jus a esse facto.

Também as diferenças significativas encontradas no seu uso entre as duas regiões em estudo parecem poder explicar-se por um mais fácil acesso à especiaria por parte das populações algarvias, sendo esse acesso possivelmente facilitado por duas vias: uma maior acessibilidade devido à localização e por outro lado possivelmente também devido a um superior poder económico. De notar igualmente que no seu conjunto, embora muito ligeiramente, as receitas algarvias se mostraram mais ricas em especiarias do que as alentejanas conforme já referido.

Dentro dos temperos importantes, que estão presentes em mais de 10% das receitas, além da pimenta, encontramos apenas mais uma especiaria, o cravinho também referido como cravinho-da-Índia ou cravo (Eugenia caryophyllata Thunb. anteriormente Syzygium aromaticum (L.) Merr. & L.M.Perry). O cravinho terá sido utilizado pelo menos desde o séc. III a.C. pelos chineses que muito terão contribuído para a valorização desta especiaria e para o seu comércio (21). No entanto, só a partir de 1500 com o aumento das trocas comerciais com o oriente resultante das viagens marítimas europeias para a Índia é que o cravinho se tornou mais conhecido e utilizado (22), descobrindo-se então que apenas crescia nas ilhas Molucas conforme se pode ler nos Colóquios de Garcia da Orta «somente o ha nestas ilhas de Maluco que sam 5, e dahi se reparte por todalas partes do mundo» (23).

A designação cravo-de-cabecinha foi também encontrada algumas fontes, tendo sido assumida como sinónimo (24). O cravo/cravinho é obtido a partir da flor que se colhe já plenamente desenvolvida mas ainda não aberta quando a sua riqueza em óleos etéricos especialmente o euglenol é máxima (22, 25). No entanto, por cravo-de-cabecinha poderá eventualmente referir-se o fruto conforme parece poder retirar-se das palavras de Garcia da Orta «aquelle cravo que fica no arvore por colher se faz mais groso, e folgam com elle na Jaoa; e nós com o outro que chamamos de cabeça» (26).

O lugar do cravinho é no entanto muito mais modesto que o da pimenta, ocupando o décimo lugar no conjunto das receitas do Sul. Desta vez a frequência é significativamente superior no Alentejo do que no Algarve. No Alentejo, o cravinho ocupa o nono lugar numa escala de importância, estando presente em 19% das receitas enquanto no Algarve, onde ocupa um mais modesto 10º lugar, está presente em apenas 8% das receitas. Assim (seguindo o critério de presença em mais de 10% das receitas) pode considerar-se como uma especiaria importante no Alentejo mas apenas frequente no Algarve.

Mais uma vez se compararmos com a importância relativa e frequência em receitas de todo o mundo, verifica-se que há uma maior proximidade do Algarve e um maior afastamento do Alentejo em relação ao modelo mundial onde o cravinho que ocupa o 11º lugar numa escala de importância, pode considerar-se apenas como frequente.

Os outros temperos importantes são plantas aromáticas e condimentos. Por ordem de importância, seguem praticamente ex aequo a salsa e o louro, duas plantas aromáticas que ocorrem espontaneamente em Portugal, podendo tanto ser espontâneas como cultivadas no Sul do país onde a sua expressão é sensivelmente idêntica estando presentes em 39% das receitas. Surgem respectivamente em 4º e 5º lugar para o Algarve e para o conjunto do Sul de Portugal. No Alentejo, ao invés, o louro é mais importante que a salsa e surge em 4º lugar enquanto esta ocupa a 5ª posição conforme se pode ver-se na tabela 1.

Ainda dentro dos temperos importantes encontram-se o vinagre, o vinho branco e o colorau, condimentos que ocupam o sexto, sétimo e oitavo lugar respectivamente no conjunto das receitas do Sul. No entanto a sua ordem de importância difere entre as duas regiões do Sul sendo o vinagre significativamente mais importante no Alentejo (32%, sexto lugar) do que no Algarve (14%) enquanto o vinho branco se salienta no Algarve onde surge em sexto lugar entre os temperos mais frequentemente utilizados. Curiosamente os coentros que ocupam o nono lugar no conjunto das receitas do Sul, são o sétimo tempero no Algarve e apenas décimo no Alentejo. Neste caso, não há diferenças significativas entre as duas regiões onde os coentros podem seguramente considerar-se importantes com frequências de utilização muito próximas que são de resto bem superiores às registadas a nível mundial que se ficam pela ordem dos 10%.

Sobre a fronteira entre temperos importantes e temperos frequentes temos o caso do cravinho, que acima referimos, cuja frequência de utilização desce para 8% no Algarve, mas também a hortelã e o limão que apesar de se encontrarem abaixo dos 10% para o conjunto das receitas do Sul de Portugal são temperos importantes numa das regiões. Assim a hortelã é importante no Alentejo e o limão no Algarve.

Conforme também mostra a tabela 1, são muitas as plantas aromáticas que estão presentes nas receitas o Sul de Portugal podendo notar-se que a importância destas plantas é muito superior à das especiarias e outros condimentos.

No entanto, apesar de só duas especiarias a pimenta e do cravinho poderem ser consideradas importantes na região há um bem diversificado conjunto de especiarias de uso frequente ou raro, englobando os cominhos, a noz-moscada, a pimenta preta, a canela e o açafrão.

Entre os condimentos menos importantes usados destaca-se o limão (sumo), o vinho tinto, os vinhos doces do Porto e da Madeira, a laranja, o açúcar e o melaço e as aguardentes e conhaques .

A importância relativa de cada uma das plantas aromáticas é frequentemente bem diferente entre as duas regiões sendo de salientar os casos em que estando presentes numa não foram encontradas na outra. Dentro destes casos que já referimos anteriormente salientam-se pela singularidade os poejos que estando presentes e bem representados no Alentejo não foram encontrados em receitas do Algarve.

É preciso referir que seguramente mais plantas aromáticas, condimentos e especiarias terão lugar na culinária tradicional do Sul de Portugal. Algumas plantas aromáticas como a hortelã da ribeira e a cebola (folha de cebola), muito presentes em livros de receitas de cariz regional alentejano (27), não aparecem nas receitas recolhidas neste estudo em que a abordagem utilizada restringiu, pelos seus pré-requisitos, o conjunto de fontes consultadas.

Caracterização das receitas do Sul de Portugal

Considerando não só os temperos mas todos os ingredientes envolvidos no universo das 350 receitas recolhidas para o Sul de Portugal, salienta-se numa na análise superficial a importância de receitas à base de pão e de borrego no conjunto das receitas do Alentejo enquanto que a variedade de peixes e mariscos é a que se destaca no Algarve.

O recurso a ferramentas estatísticas (28) permite no entanto a realização de uma análise bem mais poderosa e fina que revela aspectos que sem ela facilmente poderiam passar despercebidos.

Assim investigou-se de que forma o conjunto de receitas se poderiam agrupar segundo as suas semelhanças e diferenças. Numa primeira fase consideraram-se separadamente as receitas das duas regiões, verificando-se a existência de três classes distintas de receitas no Alentejo e cinco no Algarve. Reunindo todas as receitas do Sul de Portugal resultam novamente três classes o que evidencia o maior peso relativo do Alentejo nesta selecção de receitas.

Na tabela 2 apresentam-se as características dessas classes.

Tabela 2. Caracterização das classes de receitas do Sul de Portugal, Alentejo e Algarve considerando apenas os ingredientes ou grupos de ingredientes registados em mais de 5% das receitas. Ingredientes deficitários em cada classe representados por -, equitativos por 0, em excesso por +.

Considerando em primeiro lugar o conjunto das receitas do Alentejo e Algarve a classe 1 que inclui 55 receitas com uma representação deficitária de ingredientes (8.0 por receita) sendo constituída maioritariamente por receitas alentejanas (66%) «pobres», quase sem carne, e caracteriza-se por excesso de coentros, enchidos, hortelã, leguminosas, ovos, pão e vegetais, associados a um total de 16 temperos. A classe 2 que inclui 157 receitas tem uma representação equitativa, embora baixa, do número de ingredientes por receita (8.3), maioritariamente algarvias (57%), é claramente uma classe do mar, caracterizada por excesso de bacalhau, farináceos, leite, limão, mariscos e outros, peixe, tomate e pimentos, associados a um total de 23 temperos. Quanto à classe 3, 133 receitas com uma representação excessiva de ingredientes (9.4 por receita) é constituída ainda mais fortemente por receitas alentejanas (75%), mas «ricas» e caracteriza-se por excesso de alho, aves, borrego e carneiro, colorau, cravinho, gorduras, lebre e coelho, leitão e porco, louro, pimenta, salsa, vinagre, vinho branco, associados a um total de 28 temperos.

No que diz respeito só às receitas do Alentejo identificaram-se, tal como globalmente para o Sul, três classes. Uma, com 95 receitas e deficitária em ingredientes (8.0 por receita), é claramente a das receitas alentejanas «pobres» caracterizando-se por excesso de bacalhau, coentros, enchidos, leite, ovos, pão, poejos, tomate e pimentos e vegetais, associados a um total de 21 temperos. A segunda, com 48 receitas, com representação equitativa, mas alta, de ingredientes por receita (9.1) caracteriza-se por excesso de aves (frequentemente caça), cravinho, leitão e porco, limão, pimenta, pimentão/massa de pimentão, salsa, vinagre e vinho branco associados a um total de 22 temperos. É a classe do porco, a raiar a riqueza. Finalmente, a terceira classe, 61 receitas, com excesso em ingredientes (9.7 por receita) é caracterizada por excesso de alho, borrego e carneiro, cebola, colorau, cravinho, lebre e coelho, louro, pimenta, salsa, vinagre, vinho branco, associados a um total de 21 temperos.

Já no que diz respeito ao Algarve não surge tão marcada esta distinção entre «pobreza» e «riqueza» das receitas, sobretudo pelo reduzido número de receitas «pobres» no Algarve, não obstante as classes de receitas algarvias deficitárias em ingredientes o serem de forma muito mais marcada que a equivalente alentejana. A classe 1, com 9 receitas, fortemente deficitária em ingredientes (6.1 por receita), caracteriza-se por excesso de coentros, enchidos, hortelã, leguminosas, ovos e vegetais, associados a somente 8 temperos no total. A classe 2, com 5 receitas apenas, menos deficitária em ingredientes (6.6 por receita), caracteriza-se por excesso de cebola, cravinho, farináceos, gorduras, leitão e porco, limão, ovos, igualmente associados a 8 temperos no total. A classe 3, com 29 receitas, já equitativa no número de ingredientes (8.2 por receita), caracteriza-se por excesso de aves, cebola, enchidos, gorduras, lebre e coelho, leguminosas, leitão e porco, vegetais e vinho branco, associados a um total de 12 temperos. A classe 4, com 43 receitas, ainda equitativa no número de ingredientes (8.8 por receita), caracteriza-se por excesso de farináceos, limão, marisco e outros, e ovos, associados a um total de 14 temperos. Finalmente, a classe 5, com 53 receitas e um excesso de ingredientes (9.3 por receita), caracteriza-se por excesso de alho, colorau, cravinho, louro, peixe, tomate e pimentos, vinagre e vinho branco, associados a um total de 18 temperos.

De notar a relação que parece haver nas receitas algarvias entre o número médio de ingredientes por receita (6.1, 6.6, 8.2, 8.8, 9.3) e o número de temperos usados em cada classe (8, 8, 12, 14, 18), relação completamente inexistente nas receitas alentejanas, em que o número de temperos em cada uma das classe é praticamente igual (21, 22, 21) e sempre superior ao verificado para o Algarve.

Considerações finais

Existem contrastes fortes e evidentes entre a culinária alentejana e a algarvia. Daqui resulta não poder considerar-se o Sul de Portugal como um domínio culinário homogéneo como também não o é em termos geográficos e culturais. Do recurso a instrumentos estatísticos poderosos vemos surgir três classes bem distintas no Sul de Portugal, sendo duas predominantemente alentejanas e uma predominantemente algarvia. Separam-se pois bastante claramente as águas.

Importa agora averiguar se à escala do país irão manter-se predominantes os contrastes que nesta análise se detectaram ou se, pelo contrário, irão esbater-se no confronto com a culinária de outras regiões.

Notas

1. Feio, M. Le Bas Alentejo et l’Algarve. Instituto Nacional de Investigação Científica e Centro de Ecologia Aplicada da Universidade de Évora, Évora, 1983, p. 6.

2. Para a homogeneização do fraccionamento cultural de uma população repartida por povoações bastante afastadas terão contribuído, já numa época relativamente recente, os poderosos veículos de uniformização informativa e cultural que são a rádio e sobretudo a televisão.

3. Feio, M. op. cit., pp.7-8.

4. O País em Números, versão 2.0. Instituto Nacional de Estatística, Colecção Estatística em CD-ROM, 2004.

5. Modesto, M.L. Cozinha Tradicional Portuguesa. 2ª Edição. Verbo, Lisboa, 1982.

6. Valente, M.O.C. O Melhor da Cozinha Regional Portuguesa. Círculo de Leitores, Rio de Mouro, 2004.

7. Guedes, F. Receitas Portuguesas. Os Pratos Típicos de Todas as Regiões. 3ª Edição. Publicações Dom Quixote, 2005.

8. Cristóvão, M.J.C. (Coord.). Gastronomia Regional Portuguesa. 5ª Edição. Impala Editores S.A., Ranholas, Sintra, 2005.

9. Modesto, M.L., A. Praça e N. Calvet. Festas e Comeres do Povo Português, Volume I. Editorial Verbo, Lisboa, 1999.

10. Modesto, M.L., A. Praça e N. Calvet. Festas e Comeres do Povo Português, Volume II. Editorial Verbo, Lisboa, 1999.

11. Ribeiro, M. Natal. Do Minho ao Algarve Açores e Madeira. Planeta Editora, Lda., Lisboa, 2006.

12. Foram ainda efectuadas análises discriminantes por árvore de discriminação binária com vista a averiguar se a fonte consultada teria ou não uma influência determinante na composição das receitas. Verificou-se, na sequência desse procedimento, que existia de facto um enviesamento no que se refere ao uso da pimenta com uma fonte mais (7) e outra menos (5) apimentada. No entanto, tendo a discriminação por fontes uma qualidade baixa, este enviesamento não porá em causa o conjunto e pode afirmar-se que, globalmente, a fonte não é determinante para a classificação das receitas. Apesar disso, o único ingrediente envolvido (pimenta) só foi utilizado nas análises posteriores das receitas do Sul, do Alentejo e do Algarve para a caracterização das classes.

13. Modesto, 1982 op. cit., p.248-249.

14. Monteiro, M.L., 2006. O açafrão de Alter, Alentejo Terra-Mãe 4: 86-87.

15. Por afinidade considerou-se também a laranja, sumo e casca como condimento.

16. Dias, L.S. e A.S. Dias. Herbs and spices in traditional recipes of Alentejo (Portugal). Proceedings of the IVth International Congress of Ethnobotany (ICEB 2005), 2006, 69-72.

17. Sherman, P.W. e J. Billing, 1999. Darwinian gastronomy: why we use spices. BioScience 49: 453-463.

18. Simonetti, G. Simon & Schuster’s Guide to Herbs and Spices. Simon & Schuster Inc., New York, 1990, p. 74.

19. Ferrão, J.E.M. Especiarias. Cultura, Tecnologia e Comércio. Ministério do Planeamento e da Administração do Território. Secretaria de Estado da Ciência e Tecnologia. Instituto de Investigação Científica Tropical, Lisboa, 1993, pp. 257-259.

20. Simonetti, G. op. cit., p. 208.

21. Ferrão, J.E.M. op. cit., p. 104.

22. Simonetti, G. op.cit., p. 136.

23. Orta, G., 1563. Colóquios dos Simples e Drogas da Índia. Volume I. Reprodução em fac-símile da edição de 1891 dirigida e anotada pelo Conde de Ficalho. Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1987, Colóquio vigésimo quinto. Do cravo, p. 362.

24. Fernandes, F.M. e L.M. Carvalho. Portugal Botânico de A a Z. Plantas Portuguesas e Exóticas. Lidel, Lisboa, 2003, p. 59.

25. Ferrão, J.E.M. op. cit., pp. 112, 124.

26. Orta, G. op. cit., p. 363.

27. Veja-se por exemplo Dias e Dias op. cit.

28. A análise estatística das receitas do Sul, do Alentejo e do Algarve envolveu em primeiro lugar análises das correspondências das tabelas de frequências dos ingredientes em cada receita seguida da pesquisa da melhor classificação hierárquica possível pelo método aglomerativo de Ward usando as coordenadas dos dois primeiros eixos factoriais resultantes das análises das correspondências. A caracterização de cada classe foi feita a partir do intervalo de confiança de 99% da média de cada ingrediente ou grupo de ingredientes desde que ocorrendo em pelo menos 5% do conjunto das receitas. Assim, cada ingrediente ou grupo de ingredientes poderá ter, em cada classe, uma representação deficitária (abaixo do limite inferior do intervalo de confiança), equitativa (dentro do intervalo de confiança) ou excessiva (acima do limite superior do intervalo de confiança). Optou-se, para a descrição das várias classes, por privilegiar as representações excessivas.

Alexandra Soveral Dias . Nasceu em Lisboa, reside em Évora. É professora auxiliar no Depto. de Biologia da Universidade de Évora, coordenadora do Grupo de Interdisciplinar de Estudos sobre Pigmentos e Corantes Naturais, sedeado na Universidade de Évora e membro da Associação de Gravadores de Évora (AGE). Em 2006 orientou em colaboração com outras colegas da AGE um workshop de gravura em metal.

Formação em gravura:

- Workshop de calcogravura com orientação de Humberto Marçal, Univ.Évora, 23-30 de Outubro de 1999.

- Workshop sobre técnicas de verniz branco e Chine collé com orientação de JoAnn Lanneville, Galeria Teoártis, Évora, 4 a 7 de Maio de 2002.

- Workshop de gravura em técnica mista e colagens com orientação de Slavko Zupan, Museu de Évora, 4 a 6 de 2002.

- Frequência do atelier livre de gravura da AGE desde 2002.

- Frequência da disciplina anual de Gravura do curso de Artes Visuais da Universidade de Évora durante o ano lectivo de 2003-2004 com orientação de Ana João Romana.

Exposições : Participou em diversas exposições colectivas de Artes plásticas e de gravura em Portugal e no estrangeiro. Em Setembro de 2004 expôs individualmente «Alegria», na Cafetaria Terras de Café e no Palácio Vimioso em Évora. "Olhário", no TriploV, é a segunda exposição individual.