..COLÓQUIO INTERNACIONAL "A CRIAÇÃO". CONVENTO DE S.DOMINGOS. LISBOA. 2001


  • A CRIAÇÃO ASSISTIDA POR COMPUTADOR
    - a ciberliteratura
    José Augusto Mourão
    (UNL-DCC)


"L'écriture cherche à délivrer la puissance du dehors, cette puissance qui lui donne sa force, qu'elle tient à la fois captive et à sa surface, qui lui donne à la fois sa beauté (sa séduction) et son sens (faire entendre, faire voir, emporter vers le dehors)" - Françoise Proust. 

"I could compare my music to white light which contains all colours. Only a prism can divide the colours and make them appear; this prism could be the spirit of the listener" - Arvo Pärt 

"The artist , to my way of thinking, is a monstruosity, something outside nature" - Julian Barnes

 

Abstract

Pedro Barbosa é, entre nós, um precursor assinalável no campo daquilo a que com o advento da informática abriu à literatura um novo horizonte de criação e de recepção se chama "ciberliteratura" ou "literatura ergódica". Revisita-se aqui a teoria desenvolvida no "site" criado por este ciberartista, ao mesmo tempo que se questiona a relação entre literatura e tecnologia. Criar no computador equivale a fornecer um reportório finito de Sinais, um número finito de Regras par combinar esses sinais entre si, e uma Intuição, simulada pelo algoritmo, que determine quais os sinais e quais as regras que serão seleccionados de cada vez. A criação do modelo de obra continua a ser um trabalho de concepção humana; à máquina cabe explorar o campo dos possíveis que esse modelo permite abrir. O computador é um extensor da criatividade: converte o infinito em finito (Abraham Moles). A leitura converte-se numa "arte variacional", e o leitor torna-se "escrileitor".

1. As novas tecnologias dos media estão a mudar algo que todos tínhamos por garantido: como lemos e escrevemos. Aquilo que um antigo grego via como nascimento (physis) transformou-se em produção (criação técnica).  Walter Benjamin e Theodor Adorno pensaram a questão da adequação da sociedade, da técnica produtiva e da arte que participa nas suas formas nesta técnica como uma questão política de monta. Benjamin inquieta-se por causa da "liquidação da herança cultural": como é que um media de massa pode ser ao mesmo tempo o lugar da emergência do novo? Por seu lado, Adorno entende que a mediação de outros suportes significa a desnaturação da arte, a regressão coisista, exactamente o contrário daquilo que define a arte: contra a reificação, que era a empresa da razão instrumental[1]. Enquanto uns consideram que "A literatura está a morrer" (Maria Gabriela Llansol, Onde vais, drama.poesia? 2000: 264), ou que passou a era dos poetas ou dos filósofos-poetas inscritos na movência de Nietzsche e de Heidegger, como brutalmente declara Alain Badiou no seu Manifeste pour la philosophie, outros, Michel Butor, por exemplo, escreve:

"...Je quitterai l'université.
-   Et après?
-  Je travaillerai avec des ordinateurs, j'achèterai de nouveaux programmes! On peut, en un rien de temps, changer ce qu'on veut dans un texte, créer de multiples variantes. A partir d'une matrice, il est possible d'inventer des centaines d'histoires, de textes mobiles. La littérature ne fait que commencer!" (Interview à Libération du jeudi 30 novembre 1989)".

Outros ainda, W.  Burroughs, por exemplo, localiza o mundo "externo" no interior do artefacto tecnológico. A força disruptiva da linguagem situa-se assim na fusão cibernética da linguagem e da tecnologia[2]. 

2.   O enunciado de Llansol tem de ser lido à luz do momento trágico que engloba toda a produção interpretativa duma época, à luz também da abolição das fronteiras que continham a arte como domínio à parte, e do próprio hibridismo genológico. O face a face já não é com a religião e a filosofia, mas com a própria linguagem, com os modos narrativos e a enunciação clássica. O combate, a haver, é com a puissance du dehors (fora do texto), com Vergílio Ferreira, "o nosso imprevisto Bossuet do mundo de Deus morto" (Eduardo Lourenço), com a literatura como "transfert" ou "ucronia apocatástica" (João Barrento), com a proliferação de escritas poéticas multimedia, "verbi-voco-visuais" (para retomar uma expressão veiculada por Joyce e depois por McLuhan). Qualquer que seja o combate, não há dúvida que toda a literatura é determinada "pelas ideologias das culturas em que se inscreve, com as quais as suas formas correm o risco de desaparecer e pelos dispositivos tecnológicos que permitem a sua mediatização" (Jean-Pierre Balpe). Também é verdade que uma grande parte da poesia deste século é "privada": escrita, ou para demonstrar emoções do autor, ou como ferramenta de procura pessoal, ou conhecimento, mas não para ser lida. O mecanismo surrealista de escrita automática é uma técnica de criação de textos e não necessariamente um dispositivo destinado a gerar leituras: mesmo aqui, o acento é colocado na emissão mais do que na percepção, o centro da criação é o poeta e não o leitor. Há movimentos post-vanguardistas latino-americanos como o Poema PROCESSO e A Poesía para Armar e/ou Realizar que reviram os mecanismos de geração de leituras e tentaram deslocar o centro de criação (e portanto de emissão) para o leitor. Radicava aqui a crença de que esse seria o primeiro passo para a desaparição da noção de um autor-artista colocado num plano superior de criação. Afinal um dos traços que permitem identificar a forma de sensibilidade  que a poesia contemporânea exprime é que o acto de perceber aparece aí como um acto intencional sem sujeito nem objecto e a sua essência assenta numa Épokhè das instâncias psicológicas (ego-lógicas) e ontológicas (eco-lógicas) da actividade sensível[3].

3. Ninguém previa, há cinquenta anos, que a troca entre o homem e a máquina se tornasse tão sofisticada. A engenharia, a máquina e a matéria foram durante séculos esvaziadas de possíveis conteúdos ou efeitos. No limiar da revolução industrial, no Paradise Lost é Satã  e a sua coorte que mobilizam uma "devilish enginery" (Milton 1667: VI, 553) de guerra rebelde. O papel do Deus  de Milton é o de "circunscrever/O universo", impondo limites ao mar caótico. A matéria á ainda vista como um mero paciente para a forma, matéria morta, "informe e vazia"[4].

4.  0 fazer na tradição Ocidental pensa-se como uma exigência de realidade. Fazer e agir significam produzir. Pro-duzir (pro-ducere) significa conduzir diante de, para este fora do mundo que conjuntamente define fenomenalidade e realidade. E isto porque é real o que se mostra - o que se mostra na realidade do mundo, lembra M. Henry[5]. Ora a realização é a vinda a este mundo - a sua emergência na luz, o seu aparecer. O agir, na versão que recebe do Cristianismo, é esforço, desassossego, sofrer. Donde a analogia estabelecida de longa data entre criar (em arte) e dar à luz.

5.  A leitura e a escrita tornaram-se uma aventura experimental. As escritas unívocas e as escritas híbridas entraram em fusão. As primeiras constituem aqueles modos de interpretação da realidade que privilegiam, em princípio, os fenómenos onde a unidade e a perfeição surgem como valores máximos e, em última análise, a 'pureza' ou a eficácia do estilo e das ideias. Pelo contrário, as escritas híbridas demandam, assumidamente ou não, a impureza, o contacto coincidente com o contrato, a contaminação através da comunicação. Com efeito, a escritas de fusão consideram que esses processos ambígenos (i.é., mestiços), mas também ambíguos, que lhes subjazem, tornaram-se, hoje mais do que ontem, o polissémico estrume das relações sociais. O medo é que a singularidade desta escrita "mate" o prestígio de que o autor goza, matando os prestígios do inédito; que o leitor/utilizador destrone o "rei" que presidia a uma literatura oracular e mágica e que a autoria se torne um fenómeno transindividual (Pedro Andrade).

6. Vivemos como se o poder da escrita mudasse de mãos. Como se a natureza do texto tivesse mudado. De facto, o texto produzido por um computador não é senão a materialização instantânea de um processo de produções virtuais. É por isso um texto eminentemente "frágil", sem a autoridade do texto estabelecido. A literatura gerada por computador é uma literatura do fluxo, do instantâneo, do móvel, do universal, do interactivo. A informática põe em causa sobretudo a componente material do signo, o que leva vários autores a falar de imaterialidade.  Esta desmaterialização confere ao texto informático características que não apresenta em nenhum outro suporte. O texto informático é:

- móvel,
- engendrável
- instantâneo
- interactivo
- deslocalizado.

7. Temos hoje a impressão de estar num lugar de bifurcação entre duas concepções da linguagem: a linguagem como cálculo e a linguagem como "medium". Logos e tekhné opõem-se como os dois hemisférios do cérebro, o racional e  o intuitivo: um calcula, o outro ressente. Com que meios a literatura, que não é nem logos nem tekhné, pensa? "Híbrida de figuras e de puras noções, a literatura opera a partir de uma percepção concebida ou de uma concepção percebida, lembrando-nos que uma ideia é sempre uma imagem, eidos colocando sob os olhos do espírito os estados de coisas sensíveis"[6].

8. O artista agora apenas concebe um sistema gerador de obras. O autor transformou-se em gerador de textos automáticos. A obra identifica-se doravante com uma fonte de mensagens possíveis - a combinação de uma morfologia pré-estabelecida. As realidades virtuais são no fundo pré-realidades e nós realizamos apenas algumas das suas fracções. O artista já não visa a mensagem mas a fonte. Não um objecto actual, mas um universo de possíveis. A valorização do acesso interactivo à obra de arte assenta em parte na exaltação da autonomia e da nova responsabilidade dada ao público: “nós atingimos o fundo sem carne alguma, amnésico, cego e infinitamente eficaz do universo. O universo do cálculo”, que é o contrário do universo da sedução [7].

9. Nietzsche  entendia já que os nossos instrumentos de escrita intervinham no nosso pensamento e McLuhan entendia que o medium é a mensagem. O numérico, para se instalar, supõe uma ruptura forte com os suportes tradicionais e materiais. Com esta ruptura desaparece a figura do Autor, o que se desenha no horizonte é o fim do Estilo e a virtualização do Real. Há pontos de vista mais optimistas. Para esses, a  verdadeira revolução da Internet[8] vai consistir em libertar uma fantástica criatividade colectiva, no sentido em que a produção de sentido através da interactividade colectiva precede qualquer emergência de avaliação, qualquer vontade redutora para instaurar uma intencionalidade unívoca. A Internet vai permitir que o insconsciente colectivo chegue à expressão (Walter Benjamin fala da "câmara que inicia ao inconsciente óptico como a psicanálise ao inconsciente pulsional"). Mas continuamos a braços com a questão da técnica e os seus malefícios. Continuamos como Heidegger a interpretar a técnica de maneira positiva, como o modo próprio que tem o nosso tempo de manifestar a verdade, e portanto, a manifestação do ser. A técnica des-cobre a verdade que sem o seu auxílio permaneceria escondida, re-coberta. Mas logo descobrimos na técnica o seu lado maléfico, o "supremo perigo" porque obscurece o fundo donde procede. O perigo está em que o homem se torne escravo dos seus próprios produtos e esqueça o lugar próprio da manifestação do ser. Metafísicas. O facto é que toda a poética se define pelos meios que utiliza. Em publicidade, a natureza da “mensagem” varia com a do “suporte”. O canal, suporte dos significantes, eles próprios suporte das significações, funciona como um filtro suplementar, dado que a sua natureza tem incidências nas opções linguísticas. Quem tem medo da escrita electrónica?

10. Podemos hesitar acerca da denominação a dar a esta nova forma de literatura: infoliteratura, Literatura Algorítmica, Literatura Potencial, Ciberliteratura, Geração Automática de Texto, ou Poesia Animada por Computador. Não há dúvida que as novas tecnologias de difusão estão a impôr um novo estilo à escrita. Grupos ligados a esta questão não faltam.  Mas é bom saber que a  geração automática de textos faz-se há trinta anos, pelo menos[9]. Mélusine, por exemplo,  é um grupo que propõe um sítio Web sobre esta questão. Em inglês também, sobre a mesma questão, Kairos. Também o Resource Center for Cybercultural Studies propõe numerosos estudos sobre a mediação e os seus actores. Em Portugal, o CETIC (http://www.ufp.pt/staf/pbarbosa/PersonalWebpage.htm) de Pedro Barbosa propõe-se abordar teoricamente o polifacetado domínio da multidiscursividade ligado ao advento das novas tecnologias, bem como laborar no âmbito dos novos paradigmas textuais e comunicacionais daí emergentes. Virá a "máquina de emaranhar paisagens" (H. Helder) fazer-nos perder o pé e os sentidos, dissolvendo tanto a ideia de autoria como a ideia de leitura?

11. O principal problema do diálogo com os computadores deve-se à diferença entre linguagens formais, que regem o comportamento das máquinas, e línguas naturais que os humanos utilizam na sua vida de todos os dias. Um vocabulário inteiramente novo de formas e métodos emerge do mais inovador campo magnético que é o campo das redes. As novas tecnologias favorecem o desenvolvimento duma escrita poética multimédia, "verbi-voco-visual" (Joyce). A criação artística está evoluindo rapidamente devido sobretudo à aparição de colectivos ou portais dedicados integralmente à arte como www w3art.es. É o caso da Asociación de Artistas Visuales de Catalunã (www.w3art.es/aavc) ou L'Angelot (www.connect-arte.com/angelot/index.htm), associação que publicou em 1998 um dos livros com com maior claridade abordam o fenómeno da net-arte com o título de Ars telemática. Telecomunicación, Internet y ciberespacio. No que respeita à Net-arte, a verdadeira surpresa no mundo virtual espanhol e hispãnico aloja-se em www.bitniks.es/bn/revista4/arte.html ou www.iua.upf.es/~baigorri/arte/indice.htm, a aventura de Laura Baigorri, professora da faculdade de Belas Artes de Barcelona e impulsionadora da web "arte en Red". No plano internacional merecem destaque a Whole Eart Electronic Link (www.well.com), Art + Com (www,artcom.de), Arnet-web (http:(/arnetweb.com), Ada'Web (www.adaweb.com), Fundação para a Cultura Digital (http:/digicult.org) e Intelligent Agent Mazagine (www.intelligent-agent.com). Outros sítios de referência sobre literatura em linha: a revista DOC(K)S, com animações, criações de todo o mundo, textos teóricos: DOC(K)S (www.sitec.fr/users/akenatondocks. Consulte-se o noroeguês Marius Watz (www.evolutionzone.com/kulturezone/index body.html, que em inglês, concebeu um espaço de contra-cultura com uma secção quase exaustiva sobre geração de textos, mas também criações gráficas e rquivos sobre debates do mundo da cibernética[10]. Consulte-se também "Anabasis Electronic Chaps", editada por Thomas Lowe Taylor. Ou a "Boston Review", cuja morada é htpp://bostonreview.mit.edu/. Outro dos arquivos para onde ir é A Catalog of Electronic Texts on the Internet. Aqui encontramos arquivos de William Black, arquivos em hiprtexto com poesia britânica de 1780 a 1910 e outros.

12. Não faltam as referências na ciberliteratura à biologia (D. de Kerchove fala da "biologia da interactividade"), mas fala-se igualmente de "autopoiesis do sistema", de células que obedecem cegamente ao sistema (à língua), de "mudança ordenada". Eduardo Kac (www.ekac.org) faz na sua página a apresentação de Genesis, uma obra que transpôs um versículo da Bíblia para um código genético de uma bactéria!  Em Portugal, merecem especial destaque os projectos do CITI, Ópio, Vertigem, Interact, Non, Cyberkiosk.

13. Pedro Barbosa é, entre nós, um precursor assinalável no campo daquilo a que com o advento da informática abriu à literatura um novo horizonte de criação e de recepção se chama "ciberliteratura" ou "literatura ergódica".A "Teoria do homem sentado", um livro electrónico assente num gerador automático de textos, feito com a parceria de Abílio Carvalheiro, é o melhor lugar-não lugar para entrar no domínio do texto virtual. Aí milhares de textos aguardam pacientemente um leitor que os acorde da sua caixa de Pandora. Para conhecer o mundo da geração automática de textos que é, em grande parte o seu domínio, entre-se nas páginas do Cetic (um sítio de literatura electrónica) que ele próprio anima (http://222.ufp.pt/units/ceti/index.htm) e estará desde logo em contacto com a reflexão e a prática que esse maravilhoso mundo anuncia. O seu projecto de Literatura Gerada por Computador (LGC) designa um procedimento criativo novo, nascido com a tecnologia informática, em que o computador é utilizado de forma criativa, como manipulador de signos verbais e não apenas como simples armanezador e transmissor de informação. O uso criativo do computador varia consoante as potencialidades gerativas do algoritmo introduzido nos programas. Tais programas assentam normalmente num algoritmo de base combinatória, aleatória, estrutural, interactiva ou mista.

14. O processo criativo pode esquematizar-se como:

Artista  + computador » obra (s)
(criação)  (execução)   (múltiplos)

O acto criativo subtende dois momentos: o da concepção (humana) e o da execução (maquinal) (Max Bense) ou, segundo Abraham Moles, o da criação essencial ou ontológica (realizada pelo artista) e o da criação secundária ou variacional (realizada pela máquina). O artista concebe o modelo da obra a realizar (programa), a máquina desenvolve e executa as múltiplas realizações concretas desse modelo dentro de um campo de possíveis. O texto-matriz (pattern), lembra Pedro Barbosa, concebido pelo autor em estado latente, ou potencial, abre-se sempre a um campo de possíveis mais ou menos vasto, e tendencialemente infinito, que constituirá o conjunto dos estados textuais actualizados ou concretos. Tal campo de possíveis dará origem a um campo de leitura que pode ser explorado pelo próprio autor, mas que pode ser também explorado pelo próprio leitor. Um "texto virtual" é um texto em potência que contém o programa genético das obras a gerar; o computador intervém como um extensor da complexidade, capaz de dar execução à multiplicidade infinita dos textos a gerar pelo programa. Quer dizer, o texto virtual é uma estrutura literária associada a um motor informático que a põe a funcionar. E o autor institui-se, por conseguinte, em "meta-autor" (Balpe). Altera-se assim o circuito literário tradicional: na relação autor/texto, na relação texto/leitor, na relação autor/leitor e na própria noção de Texto. O Texto torna-se pura "máquina verbal". "Em qualquer dos casos", escreve Pedro Barbosa, "o computador funciona, seja como um amplificador de complexidade, seja como um actualizador das capacidades textuais: quer dizer, sempre como uma prótese mental  prolongando o autor duma forma simbiótica" (p. 3).

15. Diga-se, antes de mais, que este é um trabalho em que convergem, talvez pela primeira vez em Portugal, os problemas da tecnologia e de literatura. E isto, não já em termos de "ceci tuera cela", de feição humanista e romântica, mas de real produtividade e inovação. Estamos perante uma nova noção de obra, múltipla, descentrada, aí está uma nova definição do autor e uma nova prática de leitura. Refluem agora a esta nova prática os mitos e realidades da criação artificial, a estética gerativa e o modelo da criação computacional, os métodos e algoritmos para a criação literária em computador (combinatório, aleatório e interactivo). O livro de Pedro Barbosa apresenta o "software" didáctico Algeratura, concretização do projecto "oulipiano", com conclusões sobre a interactividade literária. Aqui se reescrevem textos clássicos, segundo a prática do pasticho. Aqui se faz a apresentação de um sintetizador de narrativas. Aqui se faz a demonstração de um gerador de aforismos servido pela prática da intra-textualidade. Aqui se faz a apresentação do programa RAPSÓDIA - um miscigenador intertextual, e de SINTEX, um gerador automático de textos virtuais, com a respectiva exemplificação. Apêndices de informática completam este trabalho, bem como uma Bibliografia e Infografia muito úteis para quem mal se inicia neste mundo nascente.

16.Pedro Barbosa não repete o mundo e os seus textos. Ele gera ab ovo textos em expansão, de certo modo infinitos, partindo de uma programação (projecto textual)  e de uma máquina (que activa). Assinala a sua escrita o fim do texto, a disseminação da escrita, a partilha do texto e do sentido que faz com que o autor se tenha transformado em gerador de textos automáticos? Mas não é da essência dos semióforos que são os textos literários serem invisíveis? Não permite ao leitor esta máquina activa, não determinista, gerar o seu próprio texto, mesmo sabendo nós que toda a leitura é uma criação dirigida? E não traz o seu gesto a marca do humano que é o dialogismo ? "O sentido do texto não está aqui". Que melhor Boa Nova para o Texto a vir? Aqui está um livro que faz história. Que se tornará obrigatório para quantos procurem a genealogia da escrita singular que emerge dentre os géneros literários arquivados: a ciberescrita. Que procuram saber como a arte variacional, combinatória, aleatória se actualiza. Ou como o mito da sensibilidade estética, ou do texto como mensagem, ou do autor como logoteta se desmoronam.

17. Ficam algumas perguntas no ar: por exemplo, será o plano do sentido alguma vez susceptível de completa formalização em termos de tratamento informático? Não estarão as "performances" ciberliterárias dependentes dos limites de um "software" em permanente mutação? Não estará o "escrileitor" condenado a depender do saber-fazer do programador? Em que ponto se tocam a criatividade literária e a criatividade maquínica? Não contrariam as escritas laboratoriais, de leitura única, o desejo de "narrativa" e de fim da "história"? Não é, finalmente, demagógica a ideia de que somos todos criadores?

18. Olivier Boulnois sustenta, com razão, que "quaisquer que sejam as tentativas para sair  do modelo da criação - "instalações", arte conceptual, desvios de uso, etc. -, estas experiências determinam-se ainda em relação ao modelo que recusam, e confirmam-no a contrario: é impossível pensar a produção artística independentemente do pensamento judaico, e depois cristão, da criação"[11].   No novo sistema de criação, o artista já não assume a escrita ou o desenho duma mensagem,  concebe um sistema gerador de obras, inventa uma fórmula nova, esgotando as suas possibilidades em cada acto criador. O artista visa a fonte, não a mensagem, não um objecto actual, mas o mundo de possíveis, de acaso e de necessidade. O caos.  O resultado na maioria dos casos ainda é decepcionante: não se obtêm mais do que combinatórias mecânicas. "A ciberarte modificou radicalmente a nossa relação com a matéria, tornando-se dialógica[12]. Afinal a matéria era rigidez, atraso, peso, atrito, irredutível singularidade. A interactividade, se não põe em causa o conceito de criação, alarga-o. Doravante é a intensidade das sensações experimentadas pelo utilizador e/ou o espectador que conta. A cultura ocidental rompeu com essa concepção em que Javé modelava a forma humana com argila. Quando a biologia molecular cria uma espécie nova de bactéria ou de planta já não age a maioria das vezes por selecção ou intervenção directa, mas recombina dados. A infografia abole a matéria ou qualquer substracto físico. A parte da máquina na criação é mais importante que aquela que nela tinham os pincéis ou a massa. Não estamos já no domínio de aplicação das forças mecânicas nem no poder transformador do fogo, mas a decifrar uma escrita fundamental e a redigir textos inéditos[13].

19. Desde o princípio, o objectivo do Projecto Xanadu era facilitar uma nova forma de literatura: um novo media popular, um sistema de edição "de muitos para muitos". Por hipertexto entende-se simplesmente, desde Ted Nelson, que cunhou a palavra, a escrita não sequencial. Livro dentro do livro escondido debaixo do texto, essa é a definição do hipertexto. Este instrumento tecnológico não induz, de um ponto de vista estritamente literário, uma invenção propriamente dita. A escrita hipertextual permite antes um regresso a uma imensa tradição que tende a exprimir o não-linear, o encavalitado da vida, a profusão do real, a magia do invisível, para lá da rigidez do suporte impresso. O Pessanha das consoantes líquidas, o Appolinaire dois caligramas, Joyce, Proust, os surrealistas e muitos mais autores "modernos" andavam de mão dada com a literatura oral, com os mistérios da idade média, com a Ilíada e a Bíblia.

 20. “A criatividade, por efeito da sua democratização, torna-se maquínica. Dessacralização radical: é o mesmo gesto de Duchamp”, afirma J. Baudrillard[14]. A vertigem que alguns modelos funcionais transportam (Bootz) pode converter-se, afinal, no movimento feliz de "emaranhar paisagens", bem mais criativo do que revisitar velhos baús em que até o pó se indiferencia. A escrita  electrónica, mais do que qualquer outro tipo de escrita, vem confirmar a ideia expressa por Maria Gabriela Llansol de que a palavra é um vivo, não um instrumento: "fiquei a saber que o dom poético é a língua tocada pela expansão do universo, // que este caminha para o vivo, // e que o meu vivo é apenas uma forma dos vivos que, de facto, existem" (OVDP, p. 21);  "as palavras são vivos // e não instrumentos, //  movimentos de poder e de vibração que transformam as coisas em formas, rodeadas de pontos mortos" (p. 82). Quaisquer que sejam os dispositivos (Sintex, Styoryspace) utilizados pelos escritores para intervir no processo criativo, é sempre da palavra como vivo que se trata, ou não fosse a palavra a forma mais elementar que liga os vivos que nós somos. Sendo verdade que estamos bem longe do tempo em que se acreditava (mito acádico) que "os deuses faziam o homem" ou que "no começo Deus criou o céu e a terra" (mito do combate primordial).


[1] Walter Benjamin, Écrits français, Paris, Gallimard 1991; Theodor Adorno, Théorie esthétique, Klinckieck, 1982.

[2] O poder da escrita é evidente na secção "writing machine" de  The Ticket That Exploded de W. Burroughs.

[3] Pierre Ouellet, Poétique du regard. Littératrure, percveption, identité, PULIM, PUL, 2000, p. 187.

[4] Cf. Alistair Welchman, "Machine Thinking", in Difference Engineer, Routledge, 1997, p. 213.

[5] Michel Henry, Eu sou a Verdade. Por uma Filosofia do Cristianismo, Vega, 1998, p. 176.

[6] Pierre Ouellet, Poétique du regard. Littérature, percept, identité, PULIM, Presses Univ. De Limoges, 2000, p. 9.

[7] Pierre Lévy, Pierre Lévy, La machine univers. Création, cognition et culture informatique, La Découverte, Paris, 1987, p. 70.

[8] Cf. Christian Huitema, Et Dieu créa l'Internet, Paris, Eyrolles, 1995.

[9] Michael Zock & Gérad Sabah, "La Génération  Automatique de Textes: trente ans déjà, ou presque", in Langages, nº 106, Juin 1992.

[10] Veja-se em particular o Electronic Poetry Center, um arquivo com bases de poesia electrónica organizadas quer no servidor da Universidade de Buffalo quer em outros  locais da Internet. A morada é: http://epc.buffalo.edu.

[11] Olivier Boulnois, "La création, l'art et l'original", Communications 64, 1997, p. 73.

[12] Olga Kisseleva, Cybeart, un essai sur l´art du dialogue, Paris, L´Harmattan, 1998.

[13] Pierre Lévy, op. cit.,  p. 60.

[14] Jean Baudrillard, Le paroxyste indifférent, Entretiens avec Philippe Petit, Paris, Grasset, 1997, p. 173.