RINALDO DE FERNANDES - NA FLORESTA DE PERO VAZ


Em tempos um tanto escassos de boas análises literárias, um livro do poeta e ensaísta Mário Chamie chama a atenção: Caminhos da Carta: uma leitura antropofágica da Carta de Pero Vaz de Caminha (Ribeirão Preto: FUNPEC, 2002). Trata-se de estudo rico, bem encaminhado na sua proposta principal de, via Oswald de Andrade, se ater ao texto da carta famosa - a qual dá origem à literatura brasileira -, investigando-o de perto. Porém, investigando-o com um desempenho analítico para lá de eficiente. Chamie mais do que se afirma como um grande intérprete literário.

Caminha observa nos índios traços que decorrem de três atributos principais: a inocência, a bondade e a alegria. Esses atributos, segundo Chamie, se infiltrariam "nos desígnios protocolares dos conquistadores, corroendo-os por dentro". Na Carta, Caminha, "com perícia e cuidado", pontua "as circunstâncias, os acasos e as situações em que isso se dá". Esses atributos, assim, vão cercar os propósitos dos conquistadores portugueses. Daí Chamie, num andamento analiticamente consistente do seu estudo, em que vários trechos da Carta são trazidos para bem ilustrar o argumento, mostrar como o cerco se dá, como Caminha vai enfocando os principais atributos do "outro", o indígena, sempre em confronto com os atributos e/ou as referências do conquistador português. Aquilo que Caminha vê ou parece ver no corpo do índio lhe vem como uma "outra realidade", longe de seus referenciais: "Caminha [...] estabelece comparações e expõe em seu texto o fascínio que a diferença nativa exercerá, mediante os atributos da inocência, da bondade e da alegria, sobre a mesmice 'fanada' dos valores culturais europeus" (p. 30).

O atributo da inocência seria o primordial e, conforme o estudioso, "registra o cerco crescente que a inocência do invadido avança sobre a vigilância do invasor". Chamie avalia três momentos em que este atributo aparece na Carta . O primeiro, em que Caminha observa as características físicas dos índios, o adjetivo "bom" (de "bons rostos e bons narizes" da descrição do cronista) é assim avaliado pelo intérprete: "[...] Pero Vaz fixa atributos corporais do indígena em que o adjetivo 'bom' predomina. O adjetivo 'bom' qualifica indiscriminadamente formas e volumes, o que, a rigor, denota uma impressão de conjunto (física, estética e psicológica) apreciável e favorecida. Um pouco na linha de extração aristotélico-tomista de que o Bom, o Belo e o Bem são verdadeiros, a impressão de conjunto parece, no fundo, ser ditada pela naturalidade da nudez sem malícia nem constrangimento, coisa que em princípio a moralidade de extração aristotélico-tomista-cristã denunciaria" (p. 30). O segundo momento do atributo da inocência abordado por Chamie são as carapuças utilizadas pelos indígenas. As carapuças não aparecem no texto da Carta como "cara do disfarce" ou "cara de empréstimo". Caminha, neste momento, de certa forma subverte seu código cultural ao tê-las como algo autentico, sincero. Chamie é agudo na interpretação: "As carapuças (verdes, vermelhas e amarelas), compostas com a 'tintura' que cobre 'de baixo a cima' o corpo das nativas, nada escondem e, por isso mesmo, contribuem para tornar ostensiva a não-vergonha das mulheres de genitália explícita e exposta. A vergonha ou a falta de inocência, no caso, ficaria - segundo a suposição do cronista - por conta das mulheres civilizadas, de Portugal, destituídas das graças bem feitas e redondas de nossas nativas" (p. 32). Quanto ao terceiro momento, Chamie observa que Caminha, ainda mais seduzido pelo elemento com que se depara, toca novamente na "mácula da vergonha civilizada". Aqui, "a inocência estampada [...] leva o cronista a [...] não sentir-se, sob o peso de sua carga moral e cerimoniosa, envergonhado do que vê, observa e relata" (p. 33). Por sua vez, o atributo da bondade, que está na origem do mito do "bom selvagem", tem também relação com a troca enquanto mecanismo de conquista. O português, com "reserva e precaução", mas também com "investidas premeditadas e estratégicas", é bem recebido pelos indígenas (as "mil boas vontades" a que se refere Caminha). Sobre essa questão, comenta Chamie: "[...] os indígenas, sob o impulso da doação, jamais estariam percebendo que a troca, nas expedições de conquista, é sempre um meio e uma estratégia para a apropriação de bens, pessoas e territórios encontrados" (p. 36). Por fim, no que se refere ao atributo da alegria do índio, o estudioso acentua a oposição que existe entre aquilo que é "grave e solene" na conquista e "uma felicidade nativa em pleno estado de descompromisso, distante das sombras da Fé ou da Lei" (p. 40). Temos aqui, fundamentalmente, o choque ou a distância entre a "gravidade séria" dos conquistadores e a "soltura descontraída frente às normas e restrições" dos índios.

O estudo de Chamie ganha ainda mais força quando este trata da vontade de poder do conquistador relacionada com o estado de disponibilidade do índio. É um passo que situa de forma mais profunda os mecanismos da conquista configurados na Carta . Um elemento que denota ou marca a vontade de poder é o "tratamento que o súdito [Caminha] dispensa ao Rei". Isso pode ser conferido no tom cerimonioso da Carta , uma vez que tanto o começo quanto o fim dela "trazem o selo da reverência no tratamento formal dirigido ao poder" (p. 47). Ao propósito do Reino de Portugal configurado na Carta ("levar adiante o propósito, realizar o desejo e impor a ordem missionária é conduzir a palavra salvadora e a luz do saber ao mundo sem Fé, sem Lei e sem Deus" - é o comentário do intérprete na pág. 50), a esse propósito, o qual proporciona as investidas diretas ou astuciosas dos conquistadores, se casam certas referências "à postura de disponibilidade ingênua" do índio. Chamie assim define essa disponibilidade: "[...] se consubstancia no vazio de propósito, na indeterminação do desejo e na ausência de organização que, segundo a ótica do Poder, caracterizariam e definiriam o universo do homem primitivo encontrado" (p. 50). O método de Chamie aqui continua eficaz. Sempre colado ao texto da Carta , o intérprete, claro e objetivo, continua extraindo dele passagens que ilustram com muita força a sua perspectiva analítica, facilitando a vida do leitor.

Neste ponto de sua investigação, Chamie volta-se mais claramente para a poesia pau-brasil de Oswald de Andrade, detendo-se em poema cujo principal intertexto é a Carta . Esse movimento pendular do intérprete, de passar do texto-matriz da Carta para o texto-paródia de Oswald, revela uma grande habilidade de, sem deixar nunca que desatem os nós bem apertados de sua interpretação, tomar fontes literárias diversas, de contextos diferentes, mas que mantêm entre si um rico diálogo. Aqui o leitor é aquecido com a riqueza de informações que o estudioso traz, tornando visíveis os principais pressupostos da poesia pau-brasil e da Antropofagia oswaldiana. Entranhado entre duas fontes fundamentais de nossas letras (Caminha e Oswald), Chamie demonstra disposição ao trazer agora para a cena do seu estudo o poema de Oswald intitulado "Pero Vaz Caminha", que integra a parte denominada "História do Brasil", do livro Pau-Brasil. O poema, "apropriado" do texto de Caminha, tem os seguintes subtítulos: "A descoberta", "Os selvagens", "Primeiro chá" e "As meninas da gare". O principal passo agora do estudioso é interpretar cada um desses subtítulos. Compreendendo que Oswald está interessado em "desqualificar as propriedades do acerto gramatical" para "legitimar as impropriedades do erro, entendido este como fala direta dos despossuídos e dominados", Chamie discute primeiro as teorias da paródia, da citação e da colagem, inserindo no debate o livro A vanguarda antropofágica , de Maria Eugênia Boaventura. Chamie vai discordar da abordagem da autora, de orientar sua análise do texto oswaldiano para os limites de uma "simples aplicação de técnicas intertextuais", concluindo este passo com uma interpretação no mínimo instigante do texto de Caminha e de seu empréstimo feito por Oswald: há um "discurso substantivo" do indígena por baixo do "texto protocolar" de Caminha. A Carta , portanto, se faz paródia, citação e colagem do discurso indígena, o qual Oswald pretende "recuperar". A poesia pau-brasil, assim, "é bem a paródia de uma paródia".

Os subtítulos "A descoberta", "Os selvagens" e "Primeiro chá" do poema de Oswald estão situados no período da descoberta. Já o subtítulo "As meninas da gare", segundo Chamie, "transpõe a barreira do tempo histórico e transporta uma descrição do ano de 1500 para uma situação de insinuações e desejos do ano de 1924, data da publicação do livro de Oswald" (p. 66). A entrada que Oswald faz no texto de Caminha é normalmente "sintética", "anti-descritiva" ou "mais direta", "incisiva". E haveria, como principal estratégia de construção do poema, um Oswald-poeta que desempenha o papel "de persona indígena" e um Oswald/co-autor que assume o papel "de narrador coadjuvante de Caminha". Na abordagem de "A descoberta" ("Seguimos nosso caminho por este mar de longo/ Até a oitava da páscoa/ Topamos aves/ E houvemos vista de terra"), Chamie, depois de apresentar e discutir o trecho da Carta de onde Oswald retirou o seu texto-paródia (procedimento, aliás, adotado na análise dos quatro subtítulos), chega à seguinte conclusão: "[...] o espaço e o tempo indígenas resgatados por Oswald-poeta [...] são o oposto negativo de toda linearidade, de toda cronologia ou de toda geografia mensuráveis. [...] O subtítulo aposto por Oswald - 'descoberta' - se absolutiza num ato puro de descobrir: - a 'descoberta', aqui, tanto vale para o descobrimento da terra nova como também para qualquer outro descobrimento e revelação" (p. 92). O subtítulo "Os selvagens" ("Mostraram-lhes uma galinha/ Quase tiveram medo dela/ E não queriam pôr a mão/ E depois a tomavam espantados"), conferindo o valor que Oswald dá à pureza e autenticidade indígenas, recebe de Chamie uma das mais felizes interpretações do livro. Vale a pena reproduzir por inteiro este instante inspirado do estudioso: "O selvagem [...] desenhado por Oswald no poema não é o índio emasculado pela História, com a idealização de sua bondade natural. Não. O selvagem de Oswald, possuído pelo temor e pelo espanto, tem a sua bondade natural medida pela inocência de seus instintos, de sua liberdade feroz, de seu sentimento de vingança ou de seu igualitarismo tribal. O índio brasileiro (ou o selvagem), nos moldes do perfil oswaldiano, é, por isso, o de Montaigne e não o de Rousseau; é o que devora (o que deglute o português no corpo do bispo Sardinha) e não o que concilia e muito menos o que vampiriza - como o índio do verde/amarelismo ou do movimento da anta - o sangue do invasor" (p. 105). Chamie abre agora um parêntese para expor os vínculos do pensamento de Oswald com Montaigne, Rousseau, Freud e Ronsard. O parêntese traz sínteses bem elaboradas de aspectos importantes do pensamento desses autores (com destaque para a excelente exposição do pensamento de Rousseau), mostrando o que está por trás da sinopse antropofágica ("1. retorno à Idade de Ouro pré-cabralina; 2. transcurso pela Idade Histórica pós-cabralina; e 3. prospecção rumo a uma nova Idade de Ouro trans-histórica" - p. 135) descrita pelo Oswald-teórico. O parêntese torna-se um verdadeiro ensaio à parte e poderia até mesmo ter sido posto em um outro local do livro, sem muito prejuízo do método analítico. No que se refere ao subtítulo "Primeiro chá" ("Depois de dançarem/ Diogo Dias/ Fez o salto real"), após tratar com minúcia do trecho de Caminha que aborda a primeira "dança" do conquistador com o indígena (a estratégia de, como nos demais capítulos, e talvez neste com mais eficiência, subdividir a análise em tópicos torna o evento interpretativo didático, sem prejuízo da profundidade crítica), Chamie observa: "Irônica e corrosivamente, Oswald vê no chá o emblema comum da convivência civilizada e cortês entre dominador e dominado, em seus instantes intervalares de confraternização" (p. 208). E acrescenta: "[...] A denominação de 'primeiro chá' nos alerta sobre os muitos outros momentos intermediários que ocorrerão, reunindo colonizador e colonizado, ao longo da 'História do Brasil', desde a Colônia até após a Independência" (p. 209). Por último, sobre o subtítulo "As meninas da gare" ("Eram três ou quatro moças bem moças e bem gentis/ Com cabelos mui pretos pelas espáduas/ E suas vergonhas tão altas e tão saradinhas/ Que de nós as muito bem olharmos/ Não tínhamos nenhuma vergonha"), depois de avaliar certas estratégias discursivas de Caminha, certos torneios e circunlóquios que, segundo Oswald, constituem a "lábia" do conquistador, Chamie irá dizer que a gare, na utopia antropofágica, é um espaço premonitório que "cenariza [...] a antecipação da liberdade desrecalcada do homem, livre e desembaraçado de todas as metafísicas centralizadoras, bem como do constrangimento de todos os sistemas religiosos e morais" (p. 244). O estudo traz ainda anexos os manifestos "Pau-Brasil" e "Antropófago".

Neste ponto, só resta dizer que, pela qualidade do texto, pela profundidade analítica de Mário Chamie, Caminhos da Carta é um livro imperdível.

Rinaldo de Fernandes – é doutor em Letras pela UNICAMP e professor de literatura da Universidade Federal da Paraíba. Organizador do livro “O Clarim e a Oração: cem anos de Os sertões” (São Paulo: Geração Editorial, 2002). Como pesquisador, fez os textos da antologia Os cem melhores poetas brasileiros do século, organizada por José Nêumanne Pinto (São Paulo: Geração Editorial, 2001). Já teve contos publicados, entre outros suplementos, pelo "Rascunho", de Curitiba. Autor dos livros de contos "O Caçador" (1997) e "O perfume de Roberta" (a sair).
E-mail: rinaldofernandes@uol.com.br