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MARIZA MAGALHÃES

 

 

 

 


MATER DOLOROSA
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A primeira bofetada parte-lhe o sorriso ao meio, a segunda atinge em cheio sua dignidade adolescente. Dos olhos sombrios e inexpressivos não rola uma única lágrima, mas há o laivo de uma dor cava, funda. Segue a mãe até em casa, cabisbaixa e inteiramente entregue ao vexame causado pela agressão, assunto obrigatório por um bom tempo. Há muito encontrou uma saída para evitar a mágoa, quando a mãe fala - como agora - esconde o espírito dentro do coração e a ignora, mantendo-se surda. Mas, para as cenas proporcionadas na rua, ainda não pensara numa escapatória. A mãe continua ali na sua frente dizendo coisas sem nexo enquanto ela apenas olha para o chão. A mulher estremece de ódio diante daquele mar de assustadora indiferença e outra bofetada estala. É o momento de voltar ao presente e tentar responder alguma coisa, é sempre assim.

Sentada num desgastado banquinho dentro do galinheiro, delicia-se a olhar os pintinhos amarelos, pretos e brancos ou pintadinhos e correr de um lado para outro e mais adiante o galo Alcides. Velho já; mas atrevido e orgulhoso, depositário da maior parte do seu carinho. Vez ou outra uma galinha ranzinza tenta acertar uma bicada em algum pintinho mais atrevido e mamãe-galinha intervém, toda arrepiada. Um sorriso angustiado paira em seu rosto. Em seguida o grito esganiçado e mau:

- ...! Estou lhe chamando, não ouve? - estremece violentamente, levanta-se derrubando o banquinho na pressa de atender ao chamado. Mas não, não pode ser vista a correr desabaladamente assim. Então corrige o passo e aproxima-se, aparência serena:

- Brincando outra vez com seu galo de estimação? - o sorriso é cínico, a voz assustadoramente suave. E perversa. - Fiz uma pergunta... - A mãe olha o rosto imperturbável e seu olhar límpido causa-lhe um estremecimento de repulsa e ódio. Quem ela pensa que é para desafiar-me? Casara-se quando pensava ter ficado solteirona e, durante cinco anos, tentara ter filhos. Ao final desse tempo já desistira e até mesmo habituara-se à idéia de viverem apenas os dois, tinham uma vida confortável, um pequeno grupo de amigos e e era difícil passar-se um fim-de-semana sem receberem um convite qualquer. Então ela nascera. Magra, excessivamente miúda, saúde frágil, feia. Odiara-a no momento em que a vira suja de sangue, um animal nojento e pegajoso surgindo em meio a dores atrozes do corpo deformado. Nem a amamentara, seu mamilo - e seus seios haviam sido tão belos - ficaram cobertos de dolorosas fissuras. Todavia, a razão maior era seu asco, sua repulsa por aquela coisa enrugada e disforme ali, sugando seu peito.

Vigia-a por trás do olhar cruel, o ódio chegando em ondas no peito ressequido, enquanto a filha levanta a ponta do véu de renda branca para tomar a hóstia das mãos do padre. E um frêmito de irritação a percorre. Como pode ser tão odiosa. Após a missa as senhoras reúnem-se na porta e ela junta-se ao grupo. Conversa alegre e descontraída até a chegada da filha e o posterior comentário de uma das mulheres sobre o quanto a moça está bonita e esbelta. A partir dali uma sombra vela seus olhos e a voz delata a súbita exasperação. Em segundos bate em retirada com a filha atrás, em pânico, o medo evidente no rosto afogueado e quase a correr a fim de acompanhar-lhe os passos furiosos.

No outro dia os pintinhos desapareciam do galinheiro; enviados para a chácara, segundo a mãe, de Alcides, o galo, nem sinal. Na mesa, a canja fumegante. Seu rosto não denuncia nenhuma emoção, e a mãe, astuta e sem perder um só gesto, observava-a enquanto remexia o caldo, os olhos escuros e plácidos imersos no nada. Terminada a refeição levantou-se devagar e passou a recolher os pratos sem emitir qualquer som, com o rabo do olho percebia a mãe a perscrutá-la. Esquentou a água para o chá habitual, levou as xícaras e o açúcar na bandeja depositando-os com suavidade sobre a mesa e retornou à cozinha para buscar também o café. A sola de borracha do chinelo atinge-a nas costas. Por um momento, fica sem fôlego e sem entender o acontecido. Pega o café solúvel e larga-o na mesa, hesitante, as costas latejando. A mãe ordena que busque o chinelo e a manda para o quarto. Lá, entrega-se finalmente às lágrimas mas com certa resignação vinda de uma desesperada certeza: um dia tudo aquilo passaria.

Os dias haviam se arrastado, é bem verdade, entre uma miséria e outra proporcionada pela mãe e por seus próprios escapismos. Não a entende, não sabe o que dizer-lhe ou como agir. No início vivia pedindo perdão por razões que não entendia, apenas como forma de obter sossego, mas a mãe a humilhava e maltratava ainda mais. Depois apenas chorava enquanto a mãe ria, e ria sem parar com escárnio e satisfação mas aquele prazer também esgotou-se e os ataques de riso transformaram-se em súbitas crises de fúria, durante as quais ela batia-lhe ordenando parasse de chorar. Suas lágrimas a irritavam, agastavam-na. De maneira que ao longo dos seus dezenove anos de vida foi sempre buscando simulatórios para proteger-se, malabarismos para sobreviver ao ódio. E, como um desesperado Houdini fugitivo de mórbidas paixões, superou a própria capacidade de sobrevivência durante um tempo, julgara, muito próximo da eternidade. Casou-se, numa derradeira tentativa de libertar-se. No dia da cerimônia permitiu ao riso nervoso e à lágrima aprisionada passarem pelo rosto apaziguado e límpido. Sentia-se livre e seu riso doloroso, soou como feliz, emocionado. A mãe desatava um pranto de júbilo e isto, por um terrível momento a assustou, temeu uma ira repentina destruindo a decoração da igreja, mandando os convidados embora, expulsando o noivo, desfazendo os laços com que amarrara a suposta liberdade e ficou apreensiva. Mas, não. E sua vida mudou de curso. Teve o primeiro filho, o segundo e o último e nenhum deles obteve a menor sombra de amor daquela avó desconhecida. O desejo de que os filhos não se desviassem do melhor caminho, terminassem seus estudos, fossem alguém; chegara a tornar-se obssessivo. Representavam sua única chance de não sentir-se errada. Para isto viveu. E as marcas, se impossíveis de apagar, tornaram-se indolores, mas nunca esmaecidas pelo olvido. Às vezes lembrava com amargura e cobria-se de tristeza, dissolvia-se em lágrimas. Aliviada a comporta da dor, voltava às atividades do cotidiano.

Quando prestes a não pensar no assunto, a mãe surgia das trevas de seu esquecimento e, via de regra, com um presente numa data especial qualquer e ali quedava-se abraçada a ela implorando que entendesse seus erros. Nessas ocasiões, mantinha-se apática, braços caídos, rosto de estátua, alma de fantoche. Em pouco tempo a mãe olvidava seus propósitos, morria o tempo do perdão.

Um dia, sob um céu de chumbo ergueu a mão e decidiu: nunca mais sofreria pelos motivos relacionados à sua mãe. Assim, afastou-se de quem julgava a causa de suas dores. E sucederam-se estações, surgiram novos brotos e jovens árvores, enquanto outras mais antigas perdiam o viço, seus filhos começaram a questionar seus conhecimentos e expor novas idéias, seus olhos passaram a espelhar uma tristeza antiga e refletiram isto no branco do cabelo. Guardara toda a mágoa em um baú de sangue.

Mas o tempo transcorreu com a fatuidade de nuvens em dias de tormenta. Inesperadamente foi chamada, a mãe, em estado grave, jazia num hospital. Relutou, acossada pela aflição. Contudo, não pretendia vê-la nem mesmo num caixão. Ainda assim, cedeu ao chamado. Preparara-se para remexer na ferida de súbito reaberta. Ali estava ela. Seus olhos não haviam perdido de todo o brilho astuto, mas agonizavam sob bolsas flácidas de uma carne pálida e sem vida. A voz perdera a inflexão, a testa não mais revelava tirania e o conjunto todo, num simulacro de morte, clamava por perdão, clemência. Ficou ali parada, contemplando aquela velha desconhecida a murmurar coisas incompreensíveis. Só mesmo quando aquela minúscula pérola surgiu daqueles olhos, flagelados pela decrepitude, devastados pela doença e rolou pelo cabelo branco, até a fronha, logrou reconhecer seus novos grilhões. Então sentou-se e chorou perdidamente.