Procurar textos
 
 

 

 

 







...
MARIZA MAGALHÃES

 

 

 

 


Os frutos da terra
.

A cada despertar em manhãs sempre semelhantes, jamais lhe ocorria destino tão diverso do presumido pela lógica.

Esta manhã era a de uma segunda-feira e anunciava-se tão luminosa quanto um domingo de páscoa. Ele acordara antes do sol romper a barreira da noite e, anpós saborear por breves instantes a mornidão das cobertas, levantara-se. Era um homem feliz, nada.

Saiu do quarto, manso, de modo a não despertar o bebê, apenas adivinhado na penumbra do amanhecer, nem perturbou a mulher encolhida sobre si mesma, ressonando de leve. Ergueu a tramela e abriu a porta da cozinha, preparando-se para enfrentar o frio de gelo da água do poço. Bem longe, o céu tingia-se do inconfundível vermelho matutino, e uma ou outra ave siluetava-se contra um resquício de noite.

Evitando ruídos, foi baixando o balde de alumínio até ouvir o chap característico do encontro metálico com a água. Sopesou o balde, calculando-o cheio, puxou a corda até a beira do poço e segurou a alça de arame grosso, sentindo retesarem-se os músculos enquanto carregava a água até o lavatório. Pela parede de madeira percebeu um débil som, como se o bebê tivesse dado com o bracinho ou a perna na parede. Susteve os gestos e pôs-se à escuta. Nada mais ouvindo, despejou a água na pileta e lavou o rosto, sentindo-se revigorar e despertando de vez.

Acostumados aos hábitos do homem, os animais já faziam um certo rebuliço no quintal. Um cão magro, pernas muito compridas, erguia o lombo num "U" às avessas. Sacudia-se todo e vinha encostar-se, abanando o rabo, nas pernas do dono, ignorando os protestos de um gato pardo a arrepiar-se todo. Uma vaca emitia um brando mugido, como se a querer acompanhar o relincho de um cavalo, ali perto.

Aos poucos, o sol banhava a terra com um vermelho-amarelo pálido expondo os sulcos recentes do arado, suas cicatrizes frescas. Um pintassilgo ensaiou um trinado e, fechando as asas, partiu como uma seta ao encontro das nuvens de um róseo pálido, desaparecendo no céu. A terra, naquele início de dia, era viva, plena, e o homem sentiu a mesma plenitude.

Num impulso, recolheu amorosamente um pequeno quinhão daquele manancial marrom avermelhado, tão rico e produtivo. Podia senti-lo nas mãos vigorosas. Abriu os dedos, com vagar e deixou aquela terrosa vida voltar ao leito. Aspirou com força o ar cálido do vapor do sereno sendo expulso pelo tênue calor da manhã e espreguiçou-se satisfeito. Amava aquele chão e tudo aquilo que porventura produzisse, sentindo-se, ele mesmo, também um fruto da terra. Dispôs-se a carregar a apanhar lenha para ferver o leite do bebê, esquentar a água para o café, cozinhar um gordo pedaço de linguiça para, de mistura ao arroz, prontinho na marmita, preparar-se para lavrar a terra acolá e semear alhures.

Ao lado do puxado da cozinha, sob um telhado meio esburacado de zinco, a lenha jazia empilhada caprichosamente. Guardava-a o ano inteiro, ao abrigo da chuva e do sereno, sempre pronta para o uso.

Era feliz, o homem. Não tinha muita terra, mas até onde a vista alcançava, tudo era seu. Gostava de imaginar o término da propriedade, bem na comissura do horizonte, acolá onde tudo era um verde imenso, um tapete interrompido, aqui e ali, por uma árvore frondosa.

Aquele seria o melhor ano de colheita, a plantação brotava como se impelida por generosa força situada abaixo do solo. Abaixou-se, formou uma pirâmide de lenha seca, envolveu-a com os braços fortes e depositou-a, sem ruído, na soleira da porta da cozinha, repetindo a operação. Seria, aquele, o último montículo, faltava apenas uma acha de madeira para completar a cota. Optou, então, por uma mais grossa, bem seca, e apanhou-a.

Seu cérebro custou a perceber a diferença de textura numa parte qualquer daquele lenho e quando, num arrepio de pavor, deu-se conta, agiu com a rapidez permitida pelo medo. Tentou, num gesto desesperado, soltar a madeira e sua carga viva de morte, mas não conseguiu.

A cobra, antes acomodada no amontoado de lenha, desvencilhou-se, então, e serpenteou mais além, ocultando-se novamente. Tomado de ódio, o homem passou a desfazer a pilha atrás do réptil, precisava capturá-lo. Almejava descobrir se havia outras e ainda estava absorto pensando em frutos da terra como aquele, nem sempre bem-vindos e, em seu cérebro, uma espécie de alarme emitia um som constante sobre o animal, ainda ali, em algum lugar por baixo das poucas achas de lenha restantes.

O homem rebuscava seu íntimo na tentativa de obter a calma indispensável, a tensão acumulando-se na pilha de lenha no canto atrás de si. Um quase imperceptível movimento foi captado pelo canto do olho mas ele não esboçou qualquer gesto.

Antes, observava tudo, febril, em busca de uma saída, uma idéia, qualquer coisa, e permanecia, mesmo confuso, no seu posto, guardando a morte sob a pilha de madeira. Era uma imagem calma. Depois tudo começou a acontecer num mesmo ritmo. Primeiro o ruído dos passos pesados e o grito da mulher, em seguida o choro assustado do bebê. Por último, o pulsar cadenciado de seu próprio coração, empenhado numa luta de vida e morte, ecoando nas paredes de seu cérebro e reverberando pelo corpo inteiro num eco de agonia.

O homem girou sobre si mesmo e, em um salto rápido, já à porta da casa, empurrou a lenha antes empilhada com o pé. Chegou a ver o corisco do lombo brilhante escorregando quase a seu lado, escapulindo-se por debaixo dos móveis, e pulou de lado, caindo em meio ao fragor da madeira de mistura aos baldes de alumínio e arreios dependurados do lado de fora.

Lá de dentro vinham o choro entrecortado da criança e os gritos sufocados da mulher. Na passada apanhou a foice. Em gestos precisos, mas com algo de insano, tirou a mulher e o filho de dentro da casa. Ato contínuo, pôs tudo abaixo, em frenesi, sem o menor cuidado, esquecida a preocupação com o silêncio e consciente de estar comprometido com a morte. Todavia, apesar de seu esforço e de sua tresloucada busca, o animal parecia ter desaparecido, eclipsando-se, talvez, devido à sensação de pânico causada pela letal presença humana.

Cedendo ao súbito cansaço, o homem deixou-se escorregar, vencido, e ali encontrava-se, resfolegando, quando viu. Finalmente a encontrara: lá estava a serpente. Lanhada, confusa e visivelmente tomada pelo pânico e pela cólera.

Os cabelos dele eriçaram-se desde a nuca, percorrendo os braços e atingindo mãos e pernas. Ali dentro da casa silenciosa e vazia, arrastando-se, gorda e lustrosa, outra serpente, exatamente igual à primeira, armava o bote como se a firmar seu apoio à outra. O homem, corpo inundado por um suor de chumbo, retesou-se todo para lutar. E quando a foice desceu, célere, um risco de furor cortando o ar, as duas serpentes atacaram.

Na rua a mulher, presa de uma crise convulsiva de horror, ouviu o choque da foice de encontro à parede de madeira. No silêncio que sucedeu a luta, apenas seu choro manso fazia-se ouvir até que, finalmente, a porta abriu-se devagar e o rosto lívido do homem assomou exibindo um esgar de agônica vitória e suas algozes pendentes na extremidade do braço intumescido.