MÁRIO RUFINO - O HOMEM DE VIDRO
I
A noite já tinha pousado sobre as casas quando chegou Manuel. Fatigado, entrou e pousou a pasta, pendurou o casaco e o cachecol e reparou que estava envolvido pelo silêncio. Nada se movia. Nada se ouvia. Dirigiu-se ao quarto da criança, entreabriu a porta e, vendo que ela estava a dormir, voltou a fechá-la. Na cozinha, na porta do microondas, estava colado um post-it com uma mensagem telegráfica: « jantar aqui. Criança esperou outra vez. Eu também. Inutilmente.».

Irritado, aqueceu o hambúrguer e foi-se sentar no sofá defronte da televisão.

Enquanto que com uma mão comia, com a outra mudava de canal, não descobrindo nada que quisesse ver até ter acabado a refeição.

Desligou-a. Ao seu lado, inteiro e imaculado, estava o jornal com dois dias de abandono. Alcançou-o e abriu-o nas páginas do meio.

Tinha pensado levá-lo para ler enquanto estivesse parado naquele trânsito infernal. Mas não se lembrou. Pegou no cachecol, vestiu o casaco, agarrou na pasta e despachando a mulher com um beijo, o filho com outro, meteu a sande do pequeno-almoço, embrulhada em papel celofane, no bolso. Abriu a porta e levou uma chapada de vento frio que os tímidos raios de sol não aqueciam. Viu a respiração sair-lhe pelas ventas e a paisagem branca de geada. Eram sete e meia da manhã.

Passou as páginas rapidamente, os olhos começavam a fechar, espreitou o relógio, eram perto das vinte e duas horas e pensou em ir-se deitar. Mas foi lento porque os olhos não esperaram e cerraram-se. Adormeceu na sala de estar. Ficou sentado, de cabeça pendente, ainda de gravata, calçado, como se fosse sair naquele momento. Por vezes, quando assim adormecia, passado algum tempo, acordava sobressaltado, murmurando, onde estou, onde estou, sem saber se tinha chegado a casa ou se estava de saída. E então olhava em busca de salvação para o relógio que lhe ditava a ida para a cama ou para o trabalho. Mas ainda não chegou esse momento. Primeiro, sem ele reparar, a mulher levantou-se do seu leito e foi tapá-lo com um cobertor, tendo-lhe primeiro tirado a gravata e os sapatos. Nos movimentos habituais, fechou a porta da sala, passou pela cozinha para vêr se ele tinha comido, espreitou o filho e foi-se novamente deitar.

Duas horas depois, Manuel acordou sem saber onde estava. Em pânico, pensou que se atrasara, não sentiu a sande no bolso e os olhos procuraram ansiosamente a mulher.

Passado o torpor, sentiu o jornal no colo de letras apontadas.

Não sentiu a gravata, nem que estava sem ela. Descalço, caminhou para o quarto, despiu-se, e sem banho, mal jantado e cansado, tombou sobre a cama. No outro lado, a mulher murmurou mas ele já não ouviu.

II

De manhã, abriu os olhos; acordou dominado por uma letargia dolorosa. O corpo, outrora sedento de repouso, estava saturado de imobilidade, como um copo que vazio tornara-se pequeno para o que em si fora entornado.

Lentamente, foi recuperando todos os sentidos. O ar pareceu-lhe viciado e a luz estranhamente forte; tentando levantar-se, lembrou-se, ao longo do movimento, do sonho que teve, sem conseguir especificar, no entanto, quanto tempo teria durado. Recordou-se que sentira-se frio e ferido por um núcleo que cuspia gumes gélidos que o rasgavam de dentro para fora, causando hemorragias e espalhando um vírus, gangrenando o corpo, do osso à pele; sentira o rasganço da carne, a rotura dos vasos sanguíneos, permitindo a extravasão do sangue para a massa outrora muscular.

Sonhou não se ver; sentiu ser para si, invisível. Mas, rapidamente, um som agudo produzido em si, devolveu-lhe a sensação de existência fisica de uma forma que só a dor sabe fazer.

Dentes aguçados rasparam a sua carne, chiando pela casa. Farejado, sentiu a língua passar-lhe pela mão arrancando-lhe o dedo mindinho que se estilhaçou pelo chão. Amarrado pelo pavor, viu aqueles olhos muito abertos e admirados virem ao seu encontro; o nariz cheirou-o sofregamente; uma pata arranhou-o no peito. Um silvo rasgou o ar e o cão bateu em retirada.

O sonho não era filho do sono. Nem sonho que fora sonhado mas realidade que fora recordada. Estaria o sonho dentro dele ou ele dentro do sonho, terá pensado. Os globos oculares rodaram nas suas órbitas e viram o seu mundo. As paredes estavam vestidas de esponjas, multiformes e multicolores, reforçadas nas esquinas. Um manto de retalhos num imperfeito patchwork. O quarto despojado dos seus móveis reteve somente a cama onde Manuel estava deitado; uma pequena amálgama de esponjas, de vários tamanhos e cores, cobriam o que deveria ser uma mesa-de-cabeceira, onde uma pequena vela se equilibrava à vários anos sem uso.

A janela estava fechada e os estores corridos fragmentavam a luz solar. Quando olhou directamente para a janela foi trespassado da íris à nuca pelos raios solares.

Fechou os olhos mas de nada valeu.

Entregou-se à imobilidade, rendendo-se, momentaneamente, ao desprezo que o corpo mantia sobre a vontade. Pelo canto do olho viu algo caido no chão; num esforço instável, movimentou o braço, esticou a mão e os dedos, carpo, metacarpo e falanges transparentes. A clavicula quase cedeu; uma costela estilhaçou-se.

Recolheu o envelope, amarelado pelo tempo, e ao tentar abri-lo rasgou-o ao meio, esvoaçando metade para um lado e metade para outro. Olhou espantado através das mãos. Nove dedos, contou ele.

Pensou como poderia ele voltar a ter a carta inteira se em nada podia tocar. Pensou. A sua memória estava aguçada como nunca esteve. As luvas. Abriu a cómoda para as retirar mas ali não estavam . Juraria que as tinha deixado naquele sitio. Ele não sabe que a sua mulher tirou-as de lá, estavam velhas, e comprou outras.

Onde estarão as luvas, pensou.

Devagar, rodou os seus olhos de vidro, incolores, encaixados nas orbitas. Com cautela mexeu o pescoço. Foi movendo cada músculo como se se pudesse partir. Os cabelos era pequenos filamentos transparentes, assim como as sobrancelhas. As pequenas e frágeis pestanas partiriam a qualquer movimento mais rápido ou mesmo expostos a uma brisa.Os lábios não os tinha e os dentes eram de predador, afiadíssimos. Na sua face que outrora fora rósea, não havia cor nem expressão.

Movimentou os dedos, os ossos não estavam partidos; viu as suas unhas, pequenas fímbrias cristalinas. Flectiu os joelhos, sentiu as rótulas; olhou para as pernas e viu a fina e insegura fibula que poderia partir-se a qualquer sopro.

A luz atravessava-o sem pudor.

Tentou olhar em sua volta; reparou que não sentia os seus músculos a contrair-se; olhou para o seu tronco e dentro dele viu, através da sua carne cristalina, os ossos também transparentes e baços. Cuidadosamente, rodou o seu pescoço em pequenos movimentos e viu a sua caixa tóracica e as suas costelas, partidas e inteiras; desviou o olhar quando chegou ao esterno. Estava exposto aos seus olhos. Levantou os braços ao céu; vigilante, inspeccionou o úmero, a tróclea, o rádio e a ulna. Estava tudo inteiro.Baixou-os novamente. Quando roçou o dedo no lençol, sentiu no dedo mindinho que ainda lhe restava um tecido mais áspero; eram as luvas. Dois dias demorou para as vestir.

Sentou-se. Cerca de um mês depois conseguiu alcançar o envelope. Outro mês demorou a voltar à cama.

Não podia começar com maior sobressalto; de acordo com a data, a carta tinha sido escrita havia oitenta anos. Olhou e voltou a olhar para esta, pensou estar a perceber mal, mas concluiu que os números não deixavam dúvidas, estavam bem desenhados, era um dois não era um oito, era um zero não era um três. Avançou pela folha e a leitura fez-se conturbada e irracional.

«O que terá acontecido, não o sei. Vários médicos vieram cá a casa, mas não souberam explicar. Perguntaram se terias tomado algo para dormir. Eu não vi. Mas já dormias há 20 dias; qual o comprimido que te faria dormir tanto? Nenhum.»

No chão estavam caixas de medicamentos com as letras comidas.

«Tentámos acordar-te mas não conseguimos. Demos-te vários medicamentos, mas tu nunca reagiste»

Um pesadelo. Isto só pode ser um pesadelo. Onde já se viu ou ouviu um homem dormir oitenta anos e acordar assim, transparente, em vidro?! - Pensou.

A carta era longa, várias páginas, numerada, escrita de uma só face.

«Serei eu a compor este tempo em que dormes, tentando preencher estas folhas em branco com as palavras que não ouves, relato do que não vês, porque tudo muda quando são outros olhos; a história é a mesma e mais parece outra; e é tudo pobre quando se pinta a uma só cor, monocromático, falso.»

Sentiu o peito inquieto, tão inquieto que teve medo que rebentasse, espalhando-se pelo chão. Não aguentou mais; tinha lido várias páginas e teve de parar. A comoção impedia-o de continuar. Mas estava tanto por responder; tanto por perguntar.

Porque teria ficado assim?

«Começaste a empalidecer. Pensei que irias morrer. Deixei de chamar médicos; ninguém sabia dizer nada, tu não melhoravas e depois começaram a insinuar que eu te envenenava, que estava a tentar matar-te. Parei. Não vieram mais. Tinha medo.»

«Acordei e continuaste a dormir. Não estranhei, era Sábado e não precisavas de trabalhar. Mas continuaste e continuaste a dormir. Passou o almoço, passou o jantar, abanei-te, respiravas mas não acordavas. Dia após dia, semana após semana, e começou a romaria de médicos cá a casa.»

Lembrou-se que tinha adormecido no sofá enquanto lia o jornal. Ontem à noite, pensou ele; há oitenta anos, sabemos nós.

«Disseram-me tanto, percebi tão pouco; vi os teus músculos a rasgarem-se; mais tarde, explicaram-me o que se passava; defronte dos meus olhos, na tua carne, aconteceu o desnervamento e a decadência da tua actividade muscular; o falecimento dos miotábulos, sim, miotábulos, tive que escrever para não me esquecer; tudo incompreensível para mim, não fosse ver as tuas convulsões musculares, a tua carne a desaparecer, os teus tendões a puxarem os dedos sem tu dares ordem; mas ainda não acabou, o doutor disse-me mais; eu escrevi; ele continuou, depois aconteceu o terminus da síntese contínua de miofibras, a separação do retículo sarcoplasmático e do sistema tubular; fusão dos miócitos em mioblastos e ... ficaste assim. Vejo-te os ossos; respiras de forma leve e dormes profundamente.»

Ele continuou a ler, a tentar perceber o motivo.

«Perguntei por que razão ainda sobrevivias; disseram-me que a única razão que existia era a tua vontade de viver. O teu corpo estava morto, mas tu teimavas em não largar a vida».

Mas eu não quero morrer - respondeu Manuel

Nada fiz que mereça tal destino; Porquê eu?!; Tanta gente sem fazer nada ou a fazer mal e a morte é a mim que vem buscar?!!

«Estou a olhar para ti. Vejo-te. A ti e através de ti.»

Não morro!

«Penso se terá valido de algo, o tempo que desperdiçaste em busca de aprovação alheia. O teu patrão, os teus colegas de trabalho...bem... nenhum te veio ver. Recebi uma carta de demissão quando deixaste de comparecer. O que te valeu as horas que lá ficaste sem receberes nada??»

«Quem me tira da cabeça que foram eles??!!»

III

Pousou a carta. Demoradamente levantou-se e sentiu novamente o chão a ceder. Uma esponja cobria-o marcando cada passo que ele dava.

Um ano depois chegou à janela do quarto. O corpo oferecia desprezo ao tempo.

Muito lentamente, levantou os estores para poder ver a rua. Era dia. Um clarão branco invadiu-o multiplicando-se em inumeros feixes coloridos. Esperou para se habituar a tanta luz.

As pessoas passavam na rua, com destino, com amigos, com enganos e ilusões. E ele nada. Iam para o emprego, vinham do emprego, alegres, tristes, a correr, devagar. E ele parado. Conversavam, riam, choravam, iam de automóvel, autocarro, electrico. E ele no mesmo sitio.Viu as pessoas comerem castanhas, viu inalarem o seu fumo no Outono, molharem-se com a chuva de inverno, bronzearem-se com o sol no verão, rejuvenescerem na Primavera. E ele só.

Morto com manias de vivo.

O que terá acontecido ao meu filho???, pensou.

Encostado à parede almofadada, sentiu a esperança renascer-lhe. Sentiu ter apenas duas saídas: Ou esperar ou desistir.

Não estava disposto a desistir. Não queria morrer. Tinha direito à vida.

Resolveu esperar. O seu filho teria neste momento 83 anos...se fosse vivo. Só precisava de esperar que ele viesse. A sua mulher não tinha mencionado a morte do filho de ambos. A esperança deu-lhe nova motivação.

Decidiu deitar-se novamente. Esperarei sossegado, pensou Manuel.

Voltou as costas para janela e recomeçou a andar 12 meses depois de ter recolhido os estores. Foi andando e andando e imbuido nesta esperança não viu uma folha da carta que estava pousada no chão; escorregou e caiu.

A esponja amorteceu a queda. Arfando devido ao susto tentou levantar-se. Mas não conseguiu. O seu braço tinha sido amputado e jazia em vários pedaços, um metro defronte de si. Tentou levantar-se com o outro braço que estava inteiro; com o esforço partiu dois dedos.

Rodou lentamente o pescoço e viu que a sua perna estava partida. Mantinha agarrado ao corpo o fémur; o restante estava partido em dez pedaços.

Não queria morrer.

Resolveu esperar.

Fim