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......................................JÚLIO DINIS.........

As Pupilas do Senhor Reitor

Capítulo 29

A esfolhada fez-se na eira espaçosa e desafogada de José das Dornas, e por formosíssima noite de luar claro como o dia. O ser alumiado pelo luar é uma circunstância que redobra o valor da festa.

Eu creio nas influências planetárias - perdoem-me a fragilidade astrológica os homens da ciência positiva. Bem sei que passou já de moda esta crença tão arraigada nos mais severos espíritos de outros tempos; mas por mim, ainda não pude resolver a romper com ela de todo.

Penso em que o moral e o físico da humanidade andam sob o império de forças multiplicadíssimas, muitas das quais ainda estão por descobrir ou estudar, e não vejo que se possa desde já excluir do rol delas a luz desse planeta pálido, tão querido aos amantes e poetas.

Digam-me por exemplo, se uma esfolhada ao meio dia pode ter nunca a índole jovial das que se fazem à claridade da Lua? - se nela se concedem beijos e abraços com tão poucos escrúpulos? - se a gente se ri com igual vontade e franqueza? E não me venham explicar isto só pelo efeito da meia obscuridade, que serena as repugnâncias dos tímidos, e excita a audácia dos arrojados; porque nunca vi elevaram-se ao mesmo grau de intensidade essas ruidosas alegrias e folguedos, quando a luz, ainda menos limpa de sombras, de uma só lâmpada ilumina o lugar do serão.

Forçosamente tem a Lua parte nisso. Não sei o que há na atmosfera em uma noite assim!

O espírito mais embotado para as suaves comoções da poesia, parece receber então um raio de lucidez e acreditar vagamente na existência de alguma coisa, acima dos prosaicos interesses da vida positiva; os corações mais fechados a arroubamentos de amor, sentem-se embrandecer, e de mais de um consta haver infringido, em noites dessas, velhos e porfiados protestos de isenção.

E negam a influência da Lua?! No coração dão-se fluxos e refluxos de sentimento, cuja teoria pode ter alguma coisa de comum com a do fluxo e refluxo dos mares. É uma velha crença esta, que me leva a supor a Lua favorável ao amor e indispensável à alegria das esfolhadas.

E do meu lado encontro José das Dornas, que esperou por uma noite de lua cheia, para celebrar a sua festa.

Um monte enorme de espigas ocupava o meio da eira. Abertas de par em par as portas do cabanal aguardavam as amplas canastras para onde se iam lançando as espigas esfolhadas.

Sentados em círculo, à volta daquela alta pirâmide, trabalhavam azafamados, parentes, criados, vizinhos, amigos e conhecidos, que sempre afluem aos serões desta natureza, ainda que não convidados.

Não havia lugares de distinção aí. Cada qual se sentava ao acaso, ou, quando muito, conforme as suas secretas preferências.

A mais completa igualdade se estabelecera na companhia, desde o princípio dos trabalhos.

José das Dornas, que sabia, como ninguém, manter, nas ocasiões devidas, a sua dignidade de chefe de família, dava, desta vez o exemplo a sem-cerimônia, praticando jovialmente, até com o mais novo dos seus criados; e estes usavam para ele de liberdades que, fora do tempo, lhes sairiam caras. Pedro, rapaz sempre atencioso e grave no seu trato para com os velhos, naquela noite, tendo por vizinha uma séria e madura matrona da aldeia, requebrava-se em galanteios para com ela, e afetava rendidos extremos, com grande riso dos circunstantes e de Clara, a qual, pela sua parte, fingia uns ciúmes igualmente aplaudidos da assembléia.

Uma velha, querendo aproveitar o seu tempo, tentou regular ali as suas contas com Nossa Senhora rezando uma das muitas coroas, de que lhe estava em dívida; e, a cada passo, rompia em vociferações contra duas raparigas entre as quais ficara e cuja palestra a fazia perder na fieira de padre-nossos e ave-marias da sua interminável reza.

Os arrufos da velha eram estímulo para risadas.

As vezes saltava ao meio do círculo uma criança com grandes bigodes, feitos de barba de milho, e a idéia era logo apoiada e imitada por todas as outras, com grande embaraço ao bom e pronto andamento da tarefa do serão. As mães ralhavam, rindo; os pais faziam os mesmo; e disfarçadamente punham, ao alcance dos pequenos, novos instrumentos para idênticos delitos.

As raparigas e rapazes tiravam uns aos outros o gorgulho, que por acaso encontravam nas espigas, o que introduzia grande alvoroço na assembléia, e enchia os ares de gritos e de vozerias atroadoras.

E ia assim animado o serão, quando uma circunstância, para quase todos inesperada, veio subitamente esfriar esta fervura.

Esta circunstância foi a chegada de Daniel.

Eram nove horas quando ele apareceu na eira, ainda em trajos de jornada, pois voltava, naquele momento, de uma excursão distante.

Saudando alegremente a companhia, Daniel pediu para si um lugar no círculo dos serandeiros.

José das Dornas, Pedro e Clara, que havia já muito o aguardavam com impaciência, sorriam entre si, ao verem o embaraço em que todos ficaram com aquele reforço.

A reputação que Daniel adquirira não era de fato para lhe preparar um lisonjeiro acolhimento.

Os homens franziam as sobrancelhas e exprimiam em rosnados apartes, o seu desagrado; as mulheres de idade fitavam no recém-chegado um olhar, como o que lhes merecia um lobisomem; as raparigas acotovelavam-se, cochichavam umas com as outras; sufocavam os risos e olhavam às furtadelas para Daniel; porém, não houve quem se afastasse para dar lugar; antes apertavam uns contra os outros, para lhe evitarem a vizinhança.

Daniel repetiu a reclamação, e, ao mesmo tempo, corria com os olhos as diferentes figuras ali reunidas, como a procurar aquela cuja proximidade mais agradável lhe pudesse ser.

O tácito indeferimento do seu pedido continuou porém. Os risinhos mal abafados, as murmurações a meia voz e o som do esfolhar das espigas, tarefa em que todos pareciam com dobrada vontade empenhados, era o que se ouvia, em seguida à requisição que ele pela segunda vez fizera.

- Então que é isso? - dizia José das Dornas, meio a rir, meio despeitado. - Que diabo! Não haverá ai lugar para mais um? Olhem que o rapaz não está empestado.

Houve um movimento geral, como para conceder o lugar requerido, movimento simulado porém, que, longe de abrir brecha no círculo, ainda mais o estreitou.

Daniel principiava a preparar-se para conquistar terreno, que lhe negavam, e com esse intuito fitava já um espaço entre duas galantes raparigas, que naquele momento falavam ao ouvido e riam, quando escutou a voz de Clara, que lhe dizia do outro lado da eira:

- Venha para aqui, Senhor Daniel, se lhe agrada a companhia.

E, arredando-se de uma velha meia mouca e cega, que tinha à direita, Clara ofereceu a Daniel o lugar que ele pedia.

A este não desagradou a colocação e apressou-se a tomar assento, junto de sua futura cunhada.

Uma tal solução foi para todos satisfatória - a não termos de executar talvez muitas das raparigas, que mais repugnância tinham mostrado em conceder junto de si o lugar perdido, mas que não desestimariam vê-lo usurpado - contradições da natureza essencialmente feminina.

Daniel compreendeu a necessidade de angariar simpatias na assembléia, que o olhava desconfiada.

Principiou por distribuir cigarros por alguns dos circunstantes, que fumavam, e chamando-os a cada um pelos seus nomes - para o que interrogava primeiro disfarçadamente Clara - a todos dirigiu um cumprimento, que algum tanto os abrandou.

Às velhas ofereceu uma animada descrição vocal da procissão de Cinzas, no Porto, descrição modelo, embora não primasse em exatidão, nem no número de andores, nem na designação dos santos. No fogo do seu raptus inventivo, chegou a falar em um certo SãoMacário, bispo, com grande espanto duma velha, cujas reminiscências da procissão dos franciscanos nada lhe diziam de tal santo. Daniel inventou-lhe uma biografia, digna de Ribadaneira. As velhas abrandaram-lhe a acrimônia dos seus olhares.

E os rapazes? Para com estes experimentou Daniel a receita de Orfeu para abrandar as pedras; tentou a música.

Achou à mão uma viola, e tirou alguns harpejos e executou umas variações sobre motivos da Cana-Verde, que atraíram a si as simpatias dos que tinham no coração verdadeiros instintos artísticos.

Para as raparigas não procurou arte de se fazer valer, porque estava ele persuadido - não sei se com fundamentos - que qualquer que fossem as aparências, não lhe deviam ter elas muito má vontade, sabendo-o um dos mais entusiastas admiradores do sexo.

Apesar de tudo não se animava o serão. Reinava ainda certo constrangimento, a conversa fazia-se por grupos, e em voz quase baixa, e mantinha-se, por assim dizer, desencadeada.

Os únicos a falarem alto, além de Daniel, que por muito tempo fez, como costuma-se dizer, a despesa da conversação, eram, às vezes, Pedro , José das Dornas e Clara.

Esta ria ao ver a dificuldade com que Daniel conseguia esfolhar uma espiga, enquanto ela aviava uma dúzia.

- Que desastrado! - dizia Clara. - Nesse andar tem que fazer.

- Então como é que se arranja esta coisa?

- Assim, ora repare. Pega-se num prego...

- Mas o que é do prego?

- Então não sabia pedi-lo? Aí tem um. Mas pega-se num prego, e atravessa-se o folhelho assim, e depois...

A execução substituiu o resto do preceito. Em um momento estava a espiga esfolhada e na canastra.

- Está pronto - acrescentou Clara.

- Vamos a ver se eu sei - disse Daniel.- Seguro o prego, pronto... Atravesso o folhelho, ou folhido , ou lá o que é... Até aqui vai bem. E depois... e depois... e depois...

Esta repetição era devido à dificuldade que ele encontrou a executar a última parte da operação.

Clara não se fartava de rir, e as outras raparigas riam também com ela. Algumas faziam ouvir o seu epigrama, com menos rebuços já.

Ainda assim, não se declarara abertamente a confiança, nem se generalizara a conversa. O que cada um tinha a dizer, comunicava-o ao vizinho mais próximo; este se julgava a coisa digna de referência, transmitia-o ao imediato, de maneira que todos vinham a saber, mas sucessivamente, e pouco a pouco; cada qual ria por sua vez, e sem aquelas súbitas, unânimes e estrepitosas manifestações de alacridade, desafiadas por um bom dito, ao soar imprevista e simultaneamente aos ouvidos de uma assembléia inteira.

Havia em todos vontade de modificar esta feição séria e retraída do serão; mas ninguém tinha coragem de empreender a revolta.

De mais a mais, nem uma só espiga vermelha aparecia a oferecer pretexto à realização desse desejo tácito de todos.

Clara foi a única, nestas condições, a quem sobraram ânimos para fazer alguma coisa decisiva. Levantando a voz argentina e sonora, que todos os presentes conheciam bem, principiou a cantar:

Andava a pobre cabreira

O seu rebanho a guardar

Todas as vozes de raparigas, como por impulso comum, juntaram-se em coro, e terminaram na mesma toada a quadra:

Desde que rompia o dia

Até a noite fechar

Clara continuou:

De pequenina nos montes

E prosseguiu o coro:

Nunca teve outro brincar

Nas canseiras do trabalho

Seus dias vira passar

A letra e a música desta cantiga ou xácara popular comoveram intimamente Daniel, despertando-lhe memórias amortecidas, avivando-lhe imagens quase apagadas, entre as quais uma, mais suave que todas, o enleava. Era a da pequena Guida, da sua companheira de infância, a que tantas vezes ouvira aquela simples canção, que falava também de uma guardadora de rebanhos, como ela era. Na voz de Clara alguma coisa julgou Daniel descobrir da inocente criança que recebera então as primícias do seu coração infantil, mas apaixonado já. Esta primeira analogia fez-lhe notar que no olhar também, no gesto e no rir a havia igualmente, e isto obrigava Daniel a fitar em Clara olhos mais observadores que nunca.

Dentro em pouco esqueceu-se do que primeiro o levara à contemplação, e, sem já pensar na pequena guardadora de rebanhos, continuava a olhar para Clara com uma atenção não encoberta.

No entretanto Clara continuava cantando:

Sentada no alto da serra

Pôs-se a cabreira a chorar.

E as raparigas todas seguiam:

Por que chorava a cabreira

Agora haveis de...

- Milho rei! milho rei! milho rei! - rompeu uma voz, e esta tríplice exclamação tudo pôs em desordem; interrompeu o canto, e arrebatou Daniel à doce contemplação em que se deixara cair.

Aquele grito partira de José das Dornas, que fora o primeiro a cujas mãos concedera a sorte, enfim, uma espiga vermelha.

A festa mudou súbita e completamente de caráter.

À exclamação do lavrador respondeu grande alarido na assembléia. De todos os lados se pedia o cumprimento da lei da esfolhadas. Cabia pois a José das Dornas fazer a primeira distribuição de abraços.

O alegre lavrador não se fez rogar.

Seguiu-se então um espetáculo iminentemente cômico. José das Dornas ergueu-se do lugar onde estava para correr um por um, todos os outros, e, com profusão de abraços, dar o exemplo de observância à lei reguladora da festa.

Todo este cerimonial foi acompanhado das gargalhadas dos espectadores, e entremeado de observações jocosas do oficiante, o qual fazia valer sobremaneira o ato, graças ao gênio folgazão que Deus lhe dera.

A cada rapariga que abraçava, José das Dornas, prolongando mais o abraço, dizia com visagens e gestos, que faziam estalar de riso os circunstantes.

- Na minha idade, aos sessenta anos, só o milho rei me podia dar destas fortunas! Ainda bem que a sorte mo trouxe às mãos.

Ao abraçar os homens, exclamava ele, com certo ar de desconsolação, comicamente expressivo.

- Que belo abraço desperdicei agora!

Passando pelos filhos, abraçou-os também, dizendo-lhes:

- Rapazes, tenham paciência. Eu sei que são destes abraços que vós quereis. Mas é lei, é lei. Os outros virão a seu tempo.

A um criado disse, meneando a cabeça:

- Ah! maroto! Ser obrigado a abraçar-te, quando tanta vontade tinha de te apalpar de outra maneira as costas! Ora vá, que talvez te não gabes de outra.

O certo é que, depois disso, começou a animar-se a esfolhada. As espigas vermelhas como se atraídas pelo bom colhimento feito à primeira, apareceram sucessivamente a diferentes mãos, e cada uma que aparecia dava lugar a episódios graciosos e a prolongada hilaridade.

Às vezes era uma rapariga tímida e acanhada, que não queria cumprir a sentença; e então todas as vozes se reuniam a exigi-la; e ela a recusar-se, e os vizinhos a empurrá-la, e todos a aplaudirem a rapariga, sorrindo e enleada de confusão, a correr a roda, e alta vozeria a celebrar com ovações a vitória sobre a rebelde; outras, era um velho ou velha, a que faziam tropeçar, ou abaixar-se para dar o abraço, e que depois cobriam desapiedadamente de montes e folhelho com aprovação e coadjuvação geral da parte jovem dos serandeiros; outras, um rapaz destemido, que, pela terceira vez, reclamava abraços, e contra o qual se tramava uma conspiração mulheril, a contestar-lhe a legalidade das pretensões, acusando-o de fraude e de trazer de casa as espigas vermelhas, de que se valia; animava-se então a discussão, mas afinal sempre se davam os abraços.

Todos porém, aceitavam as excepcionais liberdades desta noite de tradicional folgança, com a consciência de que não poderiam nunca fazê-las valer a justificar ulteriores e mais arrojadas aspirações.

Havia porém um espectador e ator destas cenas noturnas que, por circunstâncias fáceis de prever, não estava muito de ânimo a receber com a mesma frieza as concessões do estilo.

Era Daniel.

Havia muitos anos que ele não tomara parte nestes serões, de forma que, aos participar dos privilégios que, só em ocasiões tais, lhe podiam ser concedidos, não conservava no mesmo grau que os seus companheiros a tranqüilidade de espírito e a frieza de ânimo com que os outros contavam, ao sair dali, dormir um sono sossegado e livre de pesadelos.

Todos poderiam receber de uma rapariga um abraço e esquecê-lo logo depois; Daniel é que dificilmente conseguiria afazer-se a isso.

Além de que, a noite era de luar; daquele luar de que falei, magnético, inebriante, que exalta a imaginação, que a inquieta, e nos predispõe a sonhar! E então uma imaginação como a de Daniel.

Havia de mais a mais uma outra circunstância, que concorria para produzir nele estes efeitos excepcionais. As raparigas não lhe concediam os abraços, marcados pelo estatuto da festa, com a mesma pronta familiaridade, com que os outros os obtinham. Não obstante ter cessado já o constrangimento do princípio da noite, e não pesarem em ninguém as primeiras prevenções contra o cantor das trigueiras, contudo, na ocasião crítica, no momento do abraço, havia nas menos tímidas um ar de pudica hesitação, nas faces adivinhavam-se-lhes um rubor, no baixar dos olhos uma eloqüência, que centuplicavam o valor dos tais abraços e, forçoso é confessá-lo, alteravam-lhe também um pouco a significação.

Quando se concede ou se recebe um abraço, corando, é porque palpita o coração; e cada palpitação do coração é um fenômeno cheio de grandes mistérios, que perturbam o pensamento de quem neles considera.

O de Daniel não estava muito sereno já, quando chegou a vez de Clara de cumprir a sentença também.

Levantou-se imediatamente a irmã de Margarida, e, com o desembaraço que lhe era próprio, começou pela esquerda a sua "via sacra", como ela, rindo, lhe chamou. pela ordem que levava, devia ser Daniel o último, a quem tinha de abraçar. Ao chegar junto dele, parte da natural audácia a abandonou.

Já antes notara ela alguma coisa de particular nos olhares e nas maneiras do irmão do seu noivo, que tinha diminuído a familiaridade, com que ao princípio o acolhera, e diminuindo na proporção em que nas outras crescia.

Foi quase a tremer que ela o abraçou.

Daniel percebeu-lhe a agitação, e sorriu.

Clara, sentando-se outra vez junto dele, sentia-se constrangida e não ousava erguer os olhos.

Daniel achava deliciosa aquela súbita timidez, e começou logo a formar castelos no ar, quase esquecido de que era a prometida esposa de seu irmão, de quem nunca mais desviou os olhos, nem distraiu as atenções.

Apareceu afinal, a ele também, uma espiga de milho vermelho.

Daniel mostrou-a, sorrindo, a Clara.

- Visitou-me enfim a ventura - disse-lhe ele. - Graças a Deus! porém mais feliz seria se me fosse permitido cumprir da sentença só aquela parte que não me obriga a levantar.

Clara quis responder-lhe, mas nada lhe ocorreu, que dissesse.

Nisto, uma criança que estava próximo deles, denunciou à assembléia que o Senhor Daniel tinha achado um milho rei.

Agora, já todos foram unânimes a exigir, em grandes brados, que pagasse ele também o tributo estabelecido.

Daniel não procurou eximir-se; abraçou porém a todos à pressa e distraidamente, até chegar à Clara. A essa, apertou-a ao peito de maneira a redobrar o enleio em que se achava já a rapariga.

Desse momento por diante, Daniel ficou inteiramente dominado por a sua irreprimível imaginação.

Feliz mente as atenções de todos estavam atraídas pelas peripécias da esfolhada, que a não ser isso, teriam dado que falar as maneiras do estouvado rapaz em todo o resto da noite.

Clara sentia uma acanhamento nela pouco habitual, procurava vencê-lo, para refrear a imprudente exaltação do seu vizinho, mas todos os seus esforços eram baldados. Nem parecia a mesma, de tímida que estava.

Daniel, por mais de uma vez, serviu-se das fraudes usadas pelos serandeiros e freqüentadores de esfolhadas, para renovar os abraços; e isto sem procurar ocultar-se de Clara.

Esta, não lhe denunciando o artifício, deixava assim imprudentemente estabelecer-se, entre ambos, certa cumplicidade, que estimulava Daniel.

A isto sucederam-se frases de galanteio, ditas a meia voz, e olhares que a não deixavam; por acaso encontravam-se-lhes às vezes as mãos, e Clara sentia que Daniel lhas apertava nas suas.

A pobre rapariga, inquieta, irresoluta, senão fascinada, nem tentava fugir-lhe nem ousava repreendê-lo; sentia-se triste, no meio de uma festa em que todos riam. Triste, ela!

Pela meia noite terminou a esfolhada. Seguiram-se as danças. Clara não quis dançar; veio sentar-se junto de José das Dornas. Daniel sentou-se outra vez do lado dela.

Dentro em pouco o lavrador dormia. Daniel falava. Falou sem cessar., mas ele próprio dificilmente poderia dizer em quê. Clara escutava-o em silêncio, quase atordoada pelas comoções da noite.

Aquela maneira de conversar, o que ele dizia, e as palavras de que usava, tudo lhe era desconhecido; impressionavam-na e agradavam-lhe, como uma novidade. Ela mal poderia explicar o estado do seu espírito naquele momento.

Alguma coisa a obrigava a escutar Daniel, enquanto outra a mandava desconfiar daquelas palavras, que lhe soavam bem, como música melodiosa.

- Mas, Clarinha, repare que ainda não teve uma palavra que me dissesse! - segredou-lhe Daniel, por fim, com afetuosa inflexão de voz

- E que quer que eu lhe diga?

- Pois não se lembra de nada?

- De nada. A minha cabeça não tem neste momento muito para me dar.

- Oh! mas não lhe peça nada também, peça antes ao seu coração.

- Que posso eu pedir ao meu coração que lhe sirva? - perguntou Clara, procurando sorrir, mas com visível constrangimento.

- Se ele não tiver que dar, que se dê a si próprio - respondeu Daniel em voz baixa.

- Senhor Daniel! - exclamou Clara, conseguindo, enfim, por um maior esforço, vencer o seu enleio, e pondo-se subitamente a pé.

Pedro, que lhe escutara a voz, aproximou-se dos dois.

A vista do irmão fez cair Daniel em si, e alentou-lhe a razão no eterno combate que sustentava com a fantasia.

Curvou a cabeça e sentiu quase uns assomos de remorsos por o seu estouvado procedimento naquela noite.

- Que tens, Clarinha? - perguntava nesse tempo Pedro à sua noiva. - Parece-me que te ouvi...

Clara ainda agitada, apertou o braço de Pedro, como se a procurar proteção, talvez contra si mesma.

- Que tens? dize! continuou Pedro, já mais inquieto.

- Não é nada.

- Mas tu gritaste.

- Não; é que... a falar a verdade, não sei o que sinto.

A inquietação de Pedro aumentava.

- Mas então... Dói-te alguma coisa?

- Não... Olha, sabes? Queria ver-me em casa. Se soubesse nem tinha vindo.

- Nesse caso vamos acompanhar-te.

Daniel aproximou-se.

- Está doente, Clarinha?

A vista de Daniel exacerbou o estado nervoso, em que se achava Clara.

- Por amor de Deus! Deixe-me! - exclamou ela, com um grito, cheio de impaciência, quase febril.

Esse grito chamou as atenções.

Todos se aproximaram dela.

- Que é?

- Que foi?

- Deu-lhe alguma coisa?

- Está mal?

- O Clara, então, isso o que é?

- Que tens, filha?

E cada qual perguntava a seu modo, e cada qual a seu modo respondia e dava um conselho e uma conjetura.

Amigas obsequiosas preparavam-se para desaperta-la. Houve algumas que a quiseram obrigar a beber água fria! outras esforçavam-se para lhe untar as fontes com vinagre.

- Aquilo são bichas - dizia uma velha muito entendida em diagnósticos.

- É flato - sustentava em divergência com esta, outra colega.

- Com vinagre passa-lhe - dizia a primeira

- Um gole de chá de cidreira, é um instante - emendava a segunda.

Clara sentia-se deveras mortificada, e tanto que a viam chorar.

- O melhor é acompanharmo-la a casa - disse José das Dornas - Isso não há de valer nada. Se não puder por seu pé, o João que vá aparelhar a ruça.

A primeira parte do alvitre foi posta em execução.

Clara partiu, servindo-lhe de escolta Pedro, Daniel e um moço da casa.

E a festa da esfolhada acabou assim.