Almeida Garrett........................Almeida Garrett......

VIAGENS NA MINHA TERRA

Capítulo XXVI
Modo de ler os autores antigos, e os modernos também. — Horácio da Sacravia. — Duarte Nunes iconoclasta da nosso história. — A polícia e os barcos de vapor. — Os vândalos do feliz sistema que nos rege.— Shakespeare lido em Inglaterra a um bom fogo, com um copo de old-sack sobre a banca. - Sir John Falstaff se foi maior homem que Sancho Pança?— Grande e imponente descoberta arqueológica sobre S. Tiago, S. Jorge e Sir John Falstaff. – Prova-se a vinda deste último a Portugal. — O entusiasta britânico no túmulo de Heloisa e Abelardo no Père-Lachaise.— Bentham e Camões. — Chega o Autor à sua janela, e pasmosa miragem poética produzida por umas oitavas dos Lusíadas. — De como enfim prosseguem estas viagens para Santarém, e que feito será de Joaninha.

Se eu for algum dia a Roma, hei de entrar na cidade eterna com o meu Tito Lívio e o meu Tácito nas algibeiras do meu paletó de viagem. Ali, sentado naquelas rumas imortais, sei que hei de entender melhor a sua história, que o texto dos grandes escritores se me há de ilustrar com os monumentos de arte que os viram escrever, e que uns recordam, outros presenciaram os feitos memoráveis, o progresso e a decadência daquela civilização pasmosa.

E Juvenal e Horácio? o meu Horácio, o meu velho e fiel amigo Horácio!... Deve Ser um prazer régio ir lendo pela Sacravia fora aquela deliciosa sátira, creio que a nona do liv. I, Ibam forte sacra via, sicut meus est mos Nescio quid meditans nugarum...

Deve ser maior prazer ainda, muito maior do que beijar o pé ao Papa. Parece-me a mim; mas como eu nunca fui a Roma...

E não é preciso. Pegue qualquer na bela Crônica del rei D. Fernando, a que Duarte Nunes menos estragou...

O Duarte Nunes foi um reformador iconoclasta das nossas crônicas antigas, truncou tocas as imagens, raspou toda a poesia daquelas venerandas e deliciosas Sagas portuguesas... Em ponto histórico pouco mais eram do que Sagas, verdade seja, mas, como tais, lindas. E o Duarte Nunes, que era um pobre gramaticão sem gosto nem graça, foi-se às filigranas e arrendados de finíssimo lavor gótico daqueles monumentos, quebrou-lhos; ficaram só os traços históricos que eram muito pouca e muito incerta coisa: e cuidou que tinha arranjado uma história, tendo apenas destruído um poema. Ficamos sem Niebelungen, podendo-o ter, e não obtivemos história porque se não podia obter assim.

Pois digo: pegue qualquer na bela Crônica del rei D. Fernando, obedeça á lei concorrendo com o seu cruzado-novo para o aumento e glória da benemérita companhia que tem o exclusivo desses caranguejos de vapor que andam e desandam no rio, entre num dos referidos caranguejos, em que, além da porcaria e mau cheiro, não há perigo nenhum senão o de rebentar toda aquela câmara ótica que anda por arames, e que em qualquer pais civilizado, onde a polícia fizesse alguma coisa mais do que imaginar conspirações, há muito estaria condenada a ir ali caranguejar para as Lamas á sua vontade. Mas, enfim, cá não há doutros nem haverá tão cedo, graças ao muito que agora, dizem, que se cuida dos interesses materiais do pais: e portanto tome o seu lugar, passe o mesmo que eu passei; chegue-me a Santarém, descanse e ponha-se-me a ler a Crônica: verá se não é outra coisa, verá se diante daquelas preciosas relíquias, ainda mutiladas, deformadas como elas estão por tantos e tão sucessivos bárbaros, estragadas enfim pelos piores e mais vândalos de todos os vândalos, as autoridades administrativas e municipais do feliz sistema quê nos rege, ainda assim mesmo não vê erguer-se diante de seus olhos os homens, as cenas dos tempos que foram; se não ouve falar as pedras, bradar as inscrições, levantar-se as estátuas dos túmulos; e reviver-lhe a pintura toda, reverdecer-lhe toda a poesia daquelas idades maravilhosas!

Tenho-o experimentado muitas vezes: é infalível. Nunca tinha entendido Shakespeare enquanto o não li em Warwick ao pé do Avon, debaixo de um carvalho secular, à luz daquele sol baço e branco do nublado céu de Albion... ou à noite com os pés no fender, a chaleira a ferver no fogão, e sobre a banca o cristal antigo de um bom copo lapidado a luzir-me alambreado com os doces e perfumados resplendores do old-sack; enquanto o fogão e os ponderosos castiçais de cobre brunido projetam no antigo teto almofadado, nos pardos compartimentos de carvalho que forram o aposento, aquelas fortes sombras vacilantes de que as velhas fazem visões e almas do outro mundo, de que os poetas - poetas como Shakespeare - fazem sombras de Banco, bruxas de Macbeth, e até a rotunda pança e o arrastante espadagão do meu particular amigo Sir John Falstaft o inventor das legitimas conseqüências, o fundador da grande escola dos restauradores caturras, dos poltrões pugnazes que salvam a pátria de parola e que ninguém os atura em tendo as costas quentes.

Oh Falstaff, Falstaff! eu não sei se tu és maior homem que Sancho Pança. Creio que não. Mas maior pança tens, mais capacidade na pança tens. Quando nossos avós renegaram de S. Tiago por castelhano perro, e invocaram a S. Jorge, tu vieste, ó Falstaff, em sua comi­tiva de Inglaterra, e aqui tomaste assento, aqui ficaste, e foste o patriarca dessa imensa progênie de Falstaffs que por aí anda.

Este importante ponto da nossa história, da demissão de S. Tiago e da vinda de S. Jorge de Inglaterra com Sir John Falstaff por seu homem de ferro — esta grande descoberta arqueológica que tanta coisa moderna explica, como a fiz eu? Indo aos sítios mesmos, estudando ali os antigos exemplares: que é a minha doutrina,

Em tudo, para tudo é assim,
Chegou um dia um inglês a Paris: inglês legitimo e cru, virgem de toda a corrupção continental; calça de ganga, sapato grosso, cabelo de cenoira, chapéu filado na cova-do­ladrão. Era entusiasta de Heloísa e Abelardo, foi-se ao Père-Lachaise, chegou ao túmulo dos dois amantes, tirou um livrinho da algibeira, pôs-se a ler aquelas cartas do Paracleto que têm endoidecido muito menos excêntricas cabeças que a do meu inglês puro-sangue. Não é nada; excitou-se a tal ponto que entrou a correr como um perdido, bradando por um cônego da Sé que lhe acudisse, que se queria identificar com o seu modelo, purificar a sua paixão, ser enfim um completo — ou um incompleto Abelardo.

Eu não sou suscetível de tamanho entusiasmo, sobretudo desde que dei a minha demissão de poeta e cai na prosa. Mas aqui têm o que me sucedeu o outro dia. Tinha estado às voltas com o meu Bentham, que é um grande homem por fim de contas o tal quacre, e são grandes livros os que ele escreveu: cansou-me a cabeça, peguei no Camões e fui para a janela. As minhas janelas agora são as primeiras janelas de Lisboa, dão em cheio por todo esse Tejo. Era uma destas brilhantes manhãs de inverno, como as não há senão em Lisboa. Abri os Lusíadas à ventura, deparei com o canto IV e pus-me a ler aquelas belíssimas estâncias

E já no porto da ínclita Ulisséia...

Pouco a pouco amotinou-se-me o sangue, senti baterem-me as artérias da fronte... as letras fugiam-me do livro, levantei os olhos, dei com eles na pobre nau Vasco da Gama que aí esta em monumento-caricatura da nossa glória naval... E eu não vi nada disso, vi o Tejo, vi a bandeira portuguesa flutuando com a brisa da manhã, a torre de Belém ao longe... e sonhei, sonhei que era português, que Portugal era outra vez Portugal.

Tal força deu o prestigio da cena as imagens que aqueles versos evocavam!

Senão quando, a nau que salva a uns escaleres que chegam... Era o ministro da marinha que ia a bordo.

Fechei o livro, acendi o meu charuto, e fui tratar das minhas camélias.

Andei três dias com ódio à letra redonda.

Mas de tudo isto o que se tira, a que vem tudo isto para as minhas viagens ou para o episódio do vale de Santarém em que há tantos capítulos nos temos demorado?

Vem e vem muito: vem para mostrar que a história, lida ou contada nos próprios sítios em que se passou, tem outra graça e outra força; vem para te eu dar o motivo porque nestas minhas viagens, leitor amigo, me fiquei parado naquele vale a ouvir do meu companheiro de jornada e a escrever, para teu aproveitamento, a interessante história da menina dos rouxinóis, da menina dos olhos verdes, da nossa boa Joaninha.

Sim, aqui tenho estado estendido no chão, asmulinhas pastando na relva, os arneiros fumando tranqüilamente sentados, e as últimas horas de uma longa e calmosa tarde de julho a cair e a refrescar com a aragem precursora da noite.

Mas basta de vale, que é tarde. Olá! venham as mulinhas e montemos. Picar para Santarém, que no ínclito alcáçar del rei D. Afonso Henriques nos espera um bom jantar de amigo — e não é só a vaca e riso de Fr. Bartolomeu dos Mártires, mas um verdadeiro jantar de amigo, muito menos austero e muito mais risonho.

—Por quê? já se acabou a história de Carlos e de Joaninha? — diz talvez a amável leitora.

— Não, minha senhora — responde o autor mui lisonjeado da pergunta. — Não, minha senhora, a história não acabou, quase se pode dizer que ainda ela agora começa; mas houve mutação de cena. Vamos a Santarém, que lá se passa o segundo ato.