NATURAL?! O QUE É ISSO?
ABERTO O COLÓQUIO
De 2.11.2003 a 21.05 2004
INICIATIVA DO PROJECTO LUSO-ESPANHOL
"NATURALISMO E CONHECIMENTO
DA HERPETOLOGIA INSULAR"
Subsidiado pelo CSIC (Madrid) e ICCTI (Lisboa)


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DA CÉLULA À LITERATURA
Natureza e cultura

Annabela Rita

Universidade de Lisboa
MRPB - Missão para o Relatório sobre o Processo de Bolonha

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A dicotomia natureza vs. cultura atravessa o nosso imaginário e a nossa reflexão teórica, sustentando muitas teorias científicas e conformando abundante elaboração estética ocidental. Neste último caso, regista-se, mesmo, a sua centralidade em alguns movimentos ou escolas, como acontece com o Romantismo, que reconhece e impõe o homem clivado entre essas duas dimensões, teatro de forças opostas e, às vezes, dilacerantes.

A modernidade cultural parece encontrar nessa dicotomia um dos seus principais alicerces conceptuais, seja para valorizar a cultura, como o faz o Iluminismo, seja para valorizar o pólo oposto, a natureza, como o Romantismo.

Concordando com essa polarização, Ciências e Artes iniciam o seu afastamento num cenário em que as diferentes disciplinas científicas também emergem e definem as suas fronteiras, o seu território. É a história da evolução (e revolução) científica que conduz a visão enciclopédica e integradora dos grandes intelectuais da Renascença à sua progressiva fragmentação e especialização contemporâneas, vividas até ao ponto em que cada disciplina começou a experimentar a nostalgia da alteridade reflexiva, aspirando à interdisciplinaridade e à transdisciplinaridade.

A distância crescente entre as Ciências e as Artes é, pois, expressiva do reconhecimento dessa diferença entre natureza e cultura. E a Arte maximiza essa distância quando se quer definir como um discurso de segundo nível, conformado e informado por códigos estéticos que lhe tecem a história, dominado por cânones que elabora e que o elaboram, modelizado por uma memória que lhe constrói a identidade, oscilante entre continuidade e descontinuidade, matéria da Teoria e da história da Arte.

No caso da Literatura, a problemática complexifica-se com a reflexão linguística: o signo é arbitrário, assente na convenção social.

Ora, quando o fosso mais se alarga e parece intransponível, uma ponte subtil começa a estabelecer novas e inesperadas ligações entre esses dois territórios. Tanto quanto me parece, pelo menos.

A Epistemologia, ramo eminentemente especializado e teórico da Filosofia que ao Conhecimento se dedica é, talvez, a principal obreira dessa reintegração. E realiza-a através de dois dos conceitos mais especializados e emblemáticos de cada um deles: a célula e a narrativa.

Autores como Gregory Bateson baseiam a sua reflexão sobre o conhecimento na experiência de investigação da Biologia e da Micro-Biologia em obras notáveis e estimulantes como Natureza e Espírito (1), que nos iniciam num novo modo de inteligir o mundo. Com ele, há toda uma revolução nos domínios da biologia, da antropologia, da psiquiatria, da cibernética, etc. e das relações entre eles.

Observando a natureza, desde a pata de um crustáceo ao crescimento de um caracol ou à evolução de uma espécie, Bateson persuade-se de que há um padrão que liga toda a realidade, sintonizando-a no todo e entre as partes, conectando-a, padrão que explica a vida biológica e a vida do pensamento: o padrão relacional . Da relação entre a tal pinça do crustáceo, o resto do corpo e a outra pinça, mas também, entre o animal e o seu contexto, a sua evolução, os outros animais, etc.. Enfim, essa relação contemplaria em si a comparação, a simetria e a assimetria, a transformação, o movimento, etc.. Relação que o pensamento inteligiria e que seria, mesmo, o seu modo de inteligir tudo.

Transitando, agora, para a Literatura, p. ex., teremos também de reconhecer a nuclearidade desse padrão relacional, matriz da vida ficcional : a narrativa, a história. Em cadeia, portanto, o biológico prolonga-se e reflecte-se no pensamento que mais esteticamente se exprime no literário .

Vale a pena acompanhar a exposição de Bateson, que o livro demonstrara e argumenta:

"Existe uma história de que eu já me servi, e que irei usar novamente: Um homem queria conhecer o espírito, não através da natureza, mas através do seu grande computador pessoal. Perguntou-lhe (sem dúvida no seu melhor Fortran), "Computas que algum dia pensarás como um ser humano?" A máquina começou a trabalhar de modo a analisar os seus próprios hábitos de computador. Finalmente imprimiu a sua resposta numa folha de papel, como estas máquinas costumam fazer. O homem correu a apanhar a resposta, e encontrou, cuidadosamente dactilografadas as palavras:

"Isso lembra-me uma história."

Uma história é um pequeno nó ou complexo daquela espécie de conexão, a que nós chamamos relevância . Na década de 60, os estudantes lutaram pela "Relevância", e suponho que qualquer A é relevante para qualquer B, se ambos, A e B, forem partes ou componentes da mesma "história".

De novo nos confrontamos com a noção de conexão a mais do que um nível:

Primeiro, a conexão entre A e B, pelo facto de ambos serem componentes da mesma história.

E a seguir, a conexão entre as pessoas em que pensamos, em termos de histórias. (Porque de facto o computador tinha razão. É assim, realmente, que as pessoas pensam.)"

E conclui:

"Quero demonstrar agora que, seja qual for o significado da palavra história , na história que vos contei, o facto de se pensar em termos históricos não isola os seres humanos como qualquer coisa de separada das estrelas do mar, das anémonas, dos coqueiros ou dos narcisos. Mais exactamente, se o mundo está relacionado, se eu estou fundamentalmente certo no que digo, então, pensar em termos de histórias , tem de ser repartido com todo o espírito ou espíritos, sejam os nossos, os das florestas de sequóia ou os das anémonas do mar." (2)

Quando, neste novo horizonte do saber, epistemólogos de vertente mais filosófica, como Richard Rorty (4) ou Karl R. Popper (3), desenvolvem a sua reflexão sobre o conhecimento, questionando as suas condições, a sua legitimidade e os seus modelos, são já susceptíveis de serem reconduzidos a essa perspectiva compreensiva e integradora onde o biológico e o ficcional se reflectem e onde a própria Retórica abandona as suas tradicionais funções prescritivas ou descritivas da Arte de Bem Falar e/ou de Persuadir para se revelar estratégica na compreensão do modo de processamento dessa relação bio-ficcional , no pensamento, como no discurso verbal, seja ele quotidiano ou estético.

Neste quadro, já não surpreenderão obras como Genética e Política, de R. C. Lewontin, Steven Rose e Leon J. Kamin, investigadores reconhecidos da Genética, da Neurologia e da Psicologia, respectivamente, que, reconhecendo íntimas relações entre a ideologia e a ciência, recusam uma perspectiva determinista (que a decifração do código genético pareceu, inicialmente, vir confirmar, supondo relações de causalidade entre o ADN e o indivíduo), defendendo que "a nossa biologia é que nos torna livres", "criaturas que vão continuamente recriando o seu próprio meio ambiente psíquico e material, e cuja vida individual é o produto de uma extraordinária multiplicidade de vias causais que se entrecruzam" (5).

E que dizer d' O Homem Neuronal, de Jean-Pierre Changeux, que sintetiza a revolução científica mais significativa e mais recente, essa reintegração compreensiva do conhecimento especializado, lançando, segundo muitos, as "bases essenciais de uma 'biologia moderna do espírito'":

"Explica a anatomia do sistema nervoso, os processos de conhecimento e aprendizagem, os da formulação da linguagem e da elaboração das representações mentais." (6)?

Porque será que, curiosamente, ainda me ocorre sem surpresa a perenidade dos discursos religiosos, também com a função de religare , como que correspondendo, afinal, a uma necessidade da natureza e do espírito ?

O tempo favoreceu, pois, a constituição e o desenvolvimento formais de diferentes saberes, a perspectivação sectorial, fragmentada, analítica, mas o itinerário da especialização parece, assim, promover, por fim, o seu reencontro e o reencontro, até, do que polarizou como inconciliável: a Ciência e a Religião. Títulos como "Os sonhos do embrião" (7) sinalizam esse reencontro e modalizam-no afectiva e imaginativamente, deslizando com subtileza para os domínios do onírico. Conclusões como a de Natureza e Espírito, de Bateson, confirmam-no, transferindo-o para o centro do nosso quotidiano (uma conversa com uma criança), ao mesmo tempo que o nimbam de mitológico e de maravilhoso:

"Filha: E o próximo livro?

Pai: Irá começar a partir de um mapa da região onde os anjos temem pisar.

Filha: Um mapa vulgar?

Pai: Talvez. Mas não sei o que se seguirá ao mapa nem o que o irá envolver numa questão mais vasta e difícil." (8)

E desafios como o deste colóquio, original até na coloquialidade do título, provocam e formalizam institucionalmente tal encontro...

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Notas

(1) Gregory Bateson. Natureza e Espírito , Lisboa, Dom Quixote, 1987.

(2) Ibidem, p.22.

(3) Cf., em especial, o seu A Filosofia e o Espelho da Natureza , Lisboa, Dom Quixote, 1988.

(4) Cf., em especial, O Realismo e o objectivo da Ciência , Lisboa, Dom Quixote, 1987, vol. I da sua trilogia Pós-Escrito à Lógica da Descoberta Científica (1983).

(5) R. C. Lewontin, Steven Rose e Leon J. Kamin. Genética e Política , Lisboa, Europa-América, s.d. (1987), p. 306.

(6) Lisboa, Dom Quixote, 1985. Cit. da badana da obra.

(7) Jean-Pierre Changeux. Ibidem , p. 223.

(8) Op. cit ., p. 188.