JOSÉ GAMA:
A CABANA DO SANTO,
entre os Índios Carijós

 

INDEX

1. Introdução
2. Os dados da questão
3. Algumas reflexões
4. Conclusão
Referências bibliográficas

3. Algumas reflexões

As práticas seleccionadas aqui descritas, que interpretamos como expressão duma autêntica religiosidade, tiveram outra leitura pelos missionários jesuítas, como sabemos. Os textos não deixam lugar a dúvidas, se acaso alguma pudesse surgir. “Eles não têm lei nem ídolos a que adorem, não têm mais que alguns abusões e ninharias, que ainda hoje em dia se acham dentro do reino de Portugal, como são feiticeiros, adivinhadores e benzedores, e crer em sonhos e ter muitos agoiros, mas isto são coisas que facilmente se lhe podem tirar pondo-os em necessidade.” (LEITE, 1956, p. 446-447) Tudo se reduz, portanto, a superstições e magia, que é necessário combater como tais. Parece não haver lugar para outra significação destas práticas, por mais generalizadas que estivessem entre os índios, e traduzissem o seu modo de viver próprio, a nível individual e a nível colectivo.

As primeiras reacções dos missionários jesuítas reflectem os preconceitos culturais dos colonizadores europeus, que agiam em nome de uma consciência de superioridade que não se aplicava apenas às questões religiosas e às actividades mais directamente ligadas à evangelização. É verdade que não atingiu neles, missionários jesuítas, os extremos de desumanidade e de violência que marcaram muitos outros comportamentos contemporâneos. Em nome da humanidade e da dignidade humana, como suportes indispensáveis duma verdadeira evangelização, assumiram mesmo o papel de defensores e protectores das populações indígenas, contra os exageros das atrocidades praticadas em nome do desenvolvimento da terra e do lucro dos seus novos detentores. E nos métodos catequéticos e pastorais adoptados, sempre manifestaram um espírito de abertura e de aceitação de costumes e de hábitos que não punham em causa os valores cristãos, mas que escandalizaram figuras destacadas, como o famoso Bispo D. Pedro Fernandes Sardinha.

No entanto, esta avaliação geral dum povo “sem lei, sem fé e sem rei”, em estágio de incultura que não atingia ainda os níveis mínimos duma civilização capaz de produzir algo digno de respeito e de atenção, corresponde, na verdade, a uma incapacidade civilizacional de reconhecimento de valores culturais diferentes das suas próprias matizes. De facto, não se verifica grande progresso nessa atitude, pois tratava-se de uma matriz cultural que só muito recentemente se auto-problematizou como paradigma universal. E, por isso, soaria a algo incompreensível e até mesmo herético, aos ouvidos dos missionários desses tempos, afirmações recentes como esta, que reconhece afinal uma proximidade bem mais profunda e insuspeitada entre a vida nova que os povos dos dois mundos, o Novo e o Velho, procuravam: “A Terra sem Males do povo Guarani corresponde à utopia cristã de construção do Reino, profetizado por Jesus Cristo.” (MURARO, 2006, p. 474) Ou então, o reconhecimento (tardio!...) de que o “modo de ser Guarani encontra as suas explicações na religiosidade”, que “influencia a visão do mundo do grupo e orienta o comportamento social dos indivíduos”, no passado e no presente (séc. XXI!). (MURARO, 2006, p. 467) No passado imperou o espírito colonizador, hoje renasce a busca e a afirmação duma identidade que resistiu à fúria do tempo e às atrocidades dos homens.

Hoje, adquire um significado muito particular a busca de uma compreensão da identidade de cada povo a partir da sua própria cultura, situada no seu contexto próprio. Os processos comparativos têm um valor metodológico e heurístico, mas sem hierarquias das culturas na determinação do seu valor. A diversidade das manifestações culturais e religiosas, os meios usados e os hábitos que os expressam não significam necessariamente oposição ou divergência fundamental quanto ao sentido mais profundo de compreensão e vivência do humano. O que aparecia como primitivo e rudimentar no modo de ser e de viver dos índios do Brasil, aos olhos do europeu do séc. XVI, e que deveria ser corrigido e substituído, emerge agora aos olhos do historiador e do antropólogo com outra força e outra dimensão. A permanência duma consciência de identidade dos povos guarani, como exemplo mais estudado nos últimos tempos, vai muito além dos estudos arqueológicos e culturais da acção missionária dos europeus, que há muito tempo partiram… (ABOU, 1995, cf. p. 11).

Voltados para o futuro, num mundo globalizado, os povos indígenas não querem ficar isolados, mas também não querem perder a sua identidade própria. A “passagem” do branco europeu, que faz parte duma história que deixou traços fortes e importantes, não pode ser o elemento decisivo e determinante dessa identidade, apesar de obrigatório no contexto da reflexão actual. No diálogo e no reencontro de culturas, as tradições dos índios brasileiros (e americanos, em geral) começam a ocupar o lugar de destaque que lhe foi recusado durante muito tempo, num plano de plena igualdade com outras tradições culturais.

O lugar simbólico da cabana do santo, no meio da aldeia, recupera assim também o significado central numa mundividência que tem os seus próprios pontos de referência e de convergência ritual.

 

José Gama . UCP – Faculdade de Filosofia de Braga

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Última Actualização:
16-Jun-2006




 

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