O MAGO, METÁFORA DO POETA
CLAUDIO WILLER

O texto a seguir, dividido em três capítulos, aproveita algo de um trabalho de maior envergadura, uma tese que estou preparando sobre relações entre poesia e ocultismo.

Abrange um período definido, da segunda metade do século XVIII até meados do século XX, que corresponde à vigência do Iluminismo e Enciclopedismo, à Idade Moderna e à contemporaneidade. Equivale, em literatura, ao que vai do romantismo à modernidade, passando pelo simbolismo. Nesse período há uma definição, em nossa civilização, do lugar da poesia, assim como do saber científico e dos conhecimentos ocultos, que é distinto daquele que teria em outras épocas e contextos. Para ser mais claro: há neoplatonismo e gnosticismo em Dante Alighieri, e em Baudelaire e nos simbolistas; mas só no segundo caso (de Baudelaire e dos simbolistas), pode ser interpretado como rebelião antiburguesa, contra o realismo e cientificismo, algo que não teria cabimento no tempo de Dante Alighieri.

Não serão consideradas diferenças entre termos como ocultismo, filosofia oculta e ciências ocultas (para Alexandrian, filosofia oculta teria sido iniciada por Agripa von Nettesheim no século XVI, enquanto a expressão ocultismo deveria ser utilizada com o sentido que lhe foi dado por Éliphas Lévi no século XIX). De qualquer modo, a expressão ocultismo é corrente na bibliografia (ver relação de títulos ao final) com um sentido amplo, equivalente a esoterismo.

Como este é um trabalho a ser veiculado inicialmente na internet, evitei notas de rodapé. Autores e títulos de obras são diretamente mencionados no texto, e, com a referência completa, na bibliografia ao final. Havendo tradução disponível em português do texto citado, a citação utilizará essa tradução, por sua vez devidamente registrada na bibliografia. Não havendo, a tradução é minha.

1. Poetas e magos

Entre os ensaios que examinam ou sugerem relações entre literatura e o saber oculto, é indispensável constar El Arco y la Lyra, O Arco e a Lira, de Octavio Paz, onde são apresentadas semelhanças e diferenças entre o poeta e o mago. Seus capítulos examinam, cada um deles, diferentes características da poesia, ou, melhor dizendo (e interpretando Octavio Paz, atribuindo-lhe intenções), componentes do valor poético. Serão comentados trechos do capítulo intitulado O Ritmo, porém comparando-os a outras passagens e obras de Octavio Paz, e a outros autores. Precedendo-o, no parágrafo final do capítulo sobre A Linguagem, há uma passagem freqüentemente citada:

O poeta, porém, não se serve das palavras. É seu servo. Ao servi-las, devolve-as à sua plena natureza, fá-las recuperar seu ser. Graças à poesia, a linguagem recupera seu estado original. (...) Purificar a linguagem, tarefa do poeta, significa devolver-lhe sua natureza original.

Há duas idéias evidentes nesse trecho.

Uma delas transparece na repetição da palavra original, remetendo a um estado originário, um illo tempore marcado pela unidade entre a palavra e a coisa, ou o signo e seu significado, perdida ao longo do curso da história.

Outra, correlata, conseqüência de haver um estado original da linguagem, é a da sua autonomia. Signos têm um anterioridade; portanto, uma existência própria, não se limitando a ser meras conseqüências ou reflexos de propriedades das coisas, ou das impressões provocadas pelas coisas sobre os sentidos.

Por isso, representa uma recusa do empirismo, situando-se no oposto diametral do positivismo, do cientificismo ou da defesa do realismo e naturalismo em literatura.

Octavio Paz não é um pensador religioso. A “outra” linguagem, originária, não está situada em um tempo mítico, um Paraíso anterior à Queda, porém na História, em nossa cronologia, e até mesmo em nosso tempo, nas culturas ditas primitivas, nas sociedades tribais. Tanto é que, em outro de seus ensaios, Conjunções e Disjunções, cujo tema central é a sublimação, busca evidência antropológica para mostrar como era a linguagem na Antiguidade, ou, para ele, as antiguidades, posto que são várias:

As culturas chamadas primitivas criaram um sistema de metáforas e de símbolos que, como mostrou Lévi-Strauss, constituem um verdadeiro código de símbolos, ao mesmo tempo sensíveis e intelectuais: uma linguagem. A função da linguagem é significar e comunicar os significados, mas nós, homens modernos, reduzimos o signo à mera significação intelectual e a comunicação à transmissão da informação. Esquecemos que os signos são coisas sensíveis e que operam sobre os sentidos. O perfume transmite uma informação que é inseparável da sensação. O mesmo sucede com o sabor, o som e outras expressões e impressões sensoriais. O rigor da “lógica sensível” dos primitivos nos fascina por sua precisão intelectual: não é menos extraordinária a riqueza das percepções: onde um nariz moderno não distingue senão um cheiro vago, um selvagem percebe uma gama definida de aromas. O mais assombroso é o método, a maneira de associar todos esses signos até tecer com eles séries de objetos simbólicos: o mundo convertido numa linguagem sensível. Dupla maravilha: falar com o corpo e converter a linguagem em um corpo.

Tomando este trecho como poética, interpretando-o como pensamento sobre a criação literária, temos, é evidente, a fundamentação das sinestesias baudelairianas. E mais: resumida, aí está toda a crítica simbolista e decadentista a uma decadência da linguagem, entendida como perda de seus sentidos originais, da sua dimensão sensível, em favor da utilização instrumental, empobrecendo-a.

Adotar essa postura, e mais, falar em purificar a linguagem, remete a Mallarmé, representante, quando não o avatar na tradição literária ocidental, da defesa da autonomia da linguagem poética. Subentende seu tornar mais puras as palavras da tribo.

Referindo-se ao autor de Igitur e Um lance de dados, qualificado como o mais elevado dos poetas herméticos, que ainda retornaria à sua obra ensaística, reconhecido como influência marcante e figura referencial, Paz afirma, em O Arco e a Lira, que:

Jamais as palavras estiveram mais carregadas e cheias de si mesmas; tanto que mal as reconhecemos, como essas flores tropicais negras à força de serem tão encarnadas. Cada palavra é vertiginosa, tamanha é a sua claridade.

Daí, da postulação da autonomia da linguagem, vem a importância dada ao ritmo, entendido como visão de mundo e não só como medida; e, por isso, como elemento constitutivo do poema e não apenas seu atributo. O ritmo precede o poema:

O poeta encanta a linguagem por meio do ritmo. Uma imagem suscita outra. Assim, a função predominante do ritmo distingue o poema de todas as outras formas literárias. O poema é um conjunto de frases, uma ordem verbal, fundados no ritmo.

A defesa da autonomia da linguagem está a um passo da atribuição de valor mágico. O autor de O Arco e a Lira dá esse passo:

Ninguém pode se furtar à crença no poder mágico das palavras. (...) A confiança ante a linguagem é a atitude espontânea e original do homem: as coisas são seu nome. A fé no poder das palavras é uma reminiscência de nossas crenças mais antigas: a natureza está animada; cada objeto possui uma vida própria; as palavras, que são os duplos do mundo objetivo, são também animadas. (...) Algumas palavras se atraem, outras se repelem, e todas se correspondem. A fala é um conjunto de seres vivos, movidos por ritmos semelhantes aos que regem os astros e as plantas.

Falar em natureza animada já é celebração nostálgica da unidade, do Paraíso Perdido, recuperação do paganismo, do mundo íntegro, indiviso, impregnado pelo sagrado de outros períodos históricos ou de culturas e civilizações distintas da nossa.

Afirmar a correspondência entre palavras, e mais, de seus ritmos com aqueles que regem a natureza e o cosmos, é entender a analogia não apenas como um modo de pensar ou de expressar-se, mas como princípio geral:

A operação poética não é diferente do conjuro, do feitiço e de outros processos de magia. A atitude do poeta tem muita semelhança com a do mago. Ambos usam o princípio da analogia; ambos agem com fins utilitários e imediatos; não se perguntam o que é o idioma ou a natureza, mas servem-se deles para seus próprios fins. Não é difícil acrescentar outra característica: magos e poetas, diferentemente de filósofos, técnicos e sábios, extraem seus poderes de si mesmos.

O paralelo entre poeta e mago é quase um corolário, a conseqüência de uma poética e uma filosofia. Também o é a argumentação de que ambas, poesia e magia, decorrem da ascese, de uma transformação interior:

Toda operação mágica requer uma força interior, conseguida através de um penoso esforço de purificação. As fontes do poder mágico são duplas: as fórmulas e demais métodos de encantamento, e a força psíquica do encantador, a afinação espiritual que lhe permite fazer concordar seu ritmo com o do cosmos. O mesmo se verifica com o poeta. A linguagem do poema está nele e só nele se revela. A revelação poética pressupõe uma busca interior. Busca que em nada se assemelha à análise ou à introspecção; mais que busca, atividade psíquica capaz de provocar a passagem propícia ao surgimento de imagens.

Criação poética, ou, para usar os termos de Octavio Paz, revelação poética (título de outro dos capítulos de O Arco e a Lira), é uma operação do sujeito, resultado de uma atividade psíquica, mas que acaba chegando, através de um movimento paradoxal, uma dialética especial, à anulação do sujeito.

Portanto, a aproximação não é apenas entre magos e poetas, mas também entre poetas e magos e os místicos. Ao fazer tais paralelos, aponta limites e mostra diferenças:

O poeta não é um mago, porém sua concepção da linguagem como society of life – segundo define Cassirer a visão mágica do cosmo – o aproxima da magia. Embora o poema não seja feitiço nem conjuro, à maneira de bruxarias e sortilégios o poeta desperta as forças secretas do idioma.

Um componente da analogia entre poeta e mago, de interesse para presente argumentação, é a afinidade na rebelião luciferiana. Ou prometeico-luciferiana, pois nela o anjo caído e o doador do fogo são identificados.

A valorização do anjo rebelde está em crenças gnósticas e em seus reflexos no ocultismo do século XIX, lembrando que um dos livros de Stanislas de Guaïta é intitulado Le Temple de Satan. Reingressa na literatura de modo mais evidente através de William Blake, autor indispensável no presente contexto (porém antecipada, na ótica do próprio Blake, por O Paraíso Perdido de Milton). De forma mais evidente, está em suas ilustrações para O Paraíso Perdido, com representações de um Lúcifer apolíneo, olímpico, como se tomasse o lugar do Cristo de Miguelangelo; e em O Casamento do Céu e do Inferno, ao intitular aforismos e descrições de visões de Provérbios do Inferno e A voz do Diabo.

Com plena consciência desses arquétipos e de um tal background, Octavio Paz observa que:

Com freqüência se compara o mago com o rebelde. A sedução que sua figura ainda exerce sobre nós provém de ter sido ele o primeiro que disse não aos deuses e sim à vontade humana. Todas as outras rebeliões – aquelas, precisamente, pelas quais o homem chegou a ser homem – partem dessa primeira rebelião. Na figura do feiticeiro há uma tensão trágica ausente no homem de ciência e no filósofo. (...) A magia é uma empresa perigosa e sacrílega, uma afirmação do poder humano diante do sobrenatural. Separado do rebanho humano, de frente para os deuses, o mago está só.

O empreendimento do mago seria estéril, além de solitário, pois teria como finalidade o poder, o domínio sobre os homens e o mundo, nisso diferindo da rebelião prometeica, que é uma doação.

A solidão do mago é solidão sem retorno. Sua rebelião é estéril porque a magia – isto é, a busca do poder pelo poder – acaba se aniquilando a si mesma. Outro não é o drama da sociedade moderna.

Na poesia, o exemplo da solidão, da posição auto-reflexiva, auto-referente, seria, ainda segundo Octavio Paz, o projeto poético de Mallarmé:

A tensão da linguagem poética de Mallarmé se consome nela mesma. Seu mito não é filantrópico; não é Prometeu, aquele que dá fogo aos homens, mas Igitur – aquele que se contempla a si mesmo. Sua claridade acaba por incendiá-lo. A flecha se volta contra aquele que a atira, quando o alvo é a nossa própria imagem interrogadora.

Paz pode estar se referindo à crise de Mallarmé em 1866, que se seguiu à criação de seus primeiros e enigmáticos poemas em prosa, como O Demônio da Analogia, quando o poeta teve a visão abissal do Nada e declarou que via seu pensamento se pensando a si próprio. Mas esse poema em prosa, O Demônio da Analogia, pode ser interpretado como crítica ou alerta desta auto-consunção, antecipando Igitur. Nele, Mallarmé advertiria com relação ao solipsismo nas experiências místicas ou místico-poéticas, a perda ou errância sem chegar a lugar algum em um labirinto de símbolos, uma vez perdidos seus referentes externos.

Examinar em detalhe as afirmações de Paz sobre poesia e magia justifica-se por várias razões. Em poucos textos tratando de literatura a questão foi posta com tal clareza e tão bem sintetizada. Contudo, reconhecer sua estatura não implica adotá-lo irrestritamente. Especialmente, no que diz sobre a solidão do mago e o caráter especular de seu empreendimento. Historicamente, a atuação de magos, e mais, de movimentos fundados ou encabeçados por magos, ou que se apresentaram como fundamentados no Oculto, proclamaram a comunhão, a fraternidade a traduzir-se na ação coletiva; enfim, tudo o que, para citar um expoente do gênero, Éliphas Lévi em seu Dogma e Ritual de Alta Magia, corresponderia à egrégora, requisito para a realização da magia, ou, ao menos, para o acesso ao conhecimento oculto.

A coexistência do pensamento mágico e modos de sociabilidade é evidente em maçons, rosacruzes e tantos outros grupos, ordens, seitas e fraternidades. O mesmo vale para os poetas. O próprio Mallarmé acabou, perto do fim de sua vida, em 1896, sendo proclamado Príncipe dos Poetas, com status, portanto, de celebridade. Está ligado a algo coletivo, o simbolismo, associado por sua vez à interlocução com outros autores (no caso de Mallarmé, basta lembrar seu diálogo com Villiers de L’Isle Adam), e ao círculo literário que comparecia às reuniões em sua casa, os célebres mardis.

Vultos como Lautréamont, os “malditos” Rimbaud e Corbière e o brasileiro Souzândrade destacam-se pelo isolamento ligado ao que seus empreendimentos poéticos tiveram de avançado e transgressivo, e também a traços e idiossincrasias pessoais (a exemplo das provocações sistematicamente encenadas por Baudelaire), e não necessariamente à condição de magos ou ocultistas, ou à identidade com o Oculto.

O mesmo vale para místicos e magos que são pilares do pensamento analógico na tradição ocidental, como Paracelso e Jacob Boehme. O médico e mágico sofreu expulsões e perseguições por ser idiossincrático e entrar em choque com autoridades e potentados locais; o místico foi confinado e viveu recluso, em virtual exílio por suas idéias serem tidas como heréticas; portanto, sofreu banimento político.

Reciprocamente, poetas-magos, efetivamente praticantes ou iniciados, tiveram atuação pública, e até política. Foi o caso de Yeats, do militante nativista irlandês da juventude ao senador da Irlanda na maturidade; ou de André Breton e demais surrealistas, ao quererem unir pensamento mágico e posições políticas; ou ainda, no âmbito brasileiro, de alguém como o simbolista paranaense Dario Velloso, estudioso de ocultismo, rosacruz, discípulo de Péladan, Guaïta e Papus, e também personalidade pública, defensor pioneiro de nossos índios, além de socialista, anticlerical, pacifista e educador voltado para uma modernização pedagógica. Isso, sem entrar naqueles paradoxos tipicamente brasileiros, como o representando por Medeiros e Albuquerque, jurista eminente que chegou a Ministro da Justiça, autor da primeira legislação brasileira de Direito Autoral, e também difusor do simbolismo entre nós, beletrista e, como tal, satanista baudelairiano.

Ao tomar Mallarmé como referência, a aproximação entre o poeta e o mago em O Arco e a Lira permite observações adicionais. O autor de Igitur não praticava magia, ao que consta. Embora fosse divulgado através das livrarias e editoras dos ocultistas, figurando na Librairie de l’Art Indépendant junto com outros expoentes de um simbolismo literário, sequer freqüentava os salões ocultistas e cenáculos de Péladan e Guaïta, nisso diferindo de autores que conviveram com ele e compareciam seus mardis.

É difícil demonstrar que obras herméticas ou ocultistas houvessem sido uma fonte direta de sua criação e de suas idéias sobre o Livro, o Nada, a Palavra Pura. No ensaio de P.-O. Walzer, no volume da coleção Poètes d’aujourd’hui dedicado a Mallarmé, na passagem que relata sua crise de 1866, é citada uma carta de Villiers de l’Isle Adam na qual o autor de Axel indica para leitura o Dogma e Ritual de Alta Magia de Éliphas Lévi. Ora, se Villiers a indicava, é porque Mallarmé não a conhecia, apesar do enorme prestígio de Lévi, figura central do ocultismo no século XIX.

Portanto, há indícios de que o autor de Um lance de dados não precisou de uma formação hermética para vislumbrar o Nada e ver seu pensamento pensando-se a si mesmo, nem para criar textos herméticos como Le démon de l’analogie, já escrito naquela época, ou desenvolver o projeto de Hérodiade. Nada devem, diretamente, a essa fonte. Indiretamente, talvez sim, pelo modo como o ambiente cultural francês da época estava impregnado de idéias ocultistas. No entanto, há diferença com relação a Baudelaire e suas correspondências, ou ao modo como Nerval bebeu, desde a infância, em fontes esotéricas.

E mais: nessa mesma carta, Villiers se refere às leituras de Hegel que Mallarmé já estaria fazendo, o que permite a Walzer tentar uma aproximação entre o absoluto hegeliano e mallarmaico. Sabe-se que Hegel foi matéria de estudo de Mallarmé e de outros simbolistas, e, antes, de românticos e de Baudelaire. Segundo seus biógrafos Pichois e Ziegler, Baudelaire e o grupo de jovens poetas que ele freqüentava eram leitores do autor da Fenomenologia do Espírito. E aquilo que, genericamente, pode ser denominado de “filosofia romântica”, de Schelling a Novalis, exerceu influência marcante sobre o pensamento e a poética de sucessivas gerações românticas e pós-românticas.

Enfim, na gênese da criação de Baudelaire, no período de formação e criação de seus primeiros poemas importantes, entre 1841 e 46, é como se houvesse, somando-se a sua cultura propriamente literária, uma combinação de leituras de pensadores herméticos, notadamente Swedenborg e Wronski, de prosadores que adotaram o princípio da analogia, como Hofmann e Balzac, e de filósofos, tudo isso combinado com as experiências alucinógenas relatadas em O Clube dos Haxixins de Théophile Gautier e em Os Paraísos Artificiais do próprio Baudelaire. Daí (acompanhando a argumentação desenvolvida em Pichois e Ziegler e também em La mystique de Baudelaire de Jean Pommier) nasce a poesia das correspondências universais e a poética do primado da imaginação sobre as demais faculdades.

Portanto, há muitos modos de relação entre poesia e saber oculto, poetas e magos. Mallarmé se insere em uma categoria distinta daquela representada por Yeats, este sim, um iniciado, um praticante sistemático; ou por Pessoa, com seu interesse pela Ordem Rosa + Cruz, sua atividade como tradutor dos teosofistas Blavastky e Leadbetter, sua interlocução com Crowley, talvez fonte importante de seu neopaganismo e objeto de sua admiração (conforme declarou em carta a João Gaspar Simões) e seu conhecimento de astrologia e simbologia hermética. Não mantinha nem mesmo a proximidade com o ocultismo de Baudelaire e Victor Hugo, em seus diálogos com Éliphas Lévi.

Em suma, há algo de intrinsecamente esotérico, por ser hermético e cifrado, resultado de uma revelação, na criação poética, que independe da ligação efetiva com o esoterismo histórico, ou seja, o hermetismo iniciático dos magos e ocultistas. Sabem-no, inclusive, especialistas na conexão poesia – hermetismo, a exemplo de David Guerdon, autor de Rimbaud, la clef alchimique, onde consta a seguinte observação:

Baudelaire acrescenta que aquilo que os poetas sabem, eles o aprenderam por si mesmos, eles não têm necessidade de ler filósofos para se instruir: resposta direta, mas abrupta aos métodos atuais de certos críticos que esquecem que a poesia é, antes de tudo, inspiração. Bem entendido, Baudelaire fala da imaginação criadora, e não da fantasia que não o interessa. “Para o sábio, imaginar é ver”, escreveu na mesma época o mago Éliphas Lévi.

Por isso, esse autor descarta, de modo muito inteligente, em sua decodificação alquímica da poesia de Rimbaud, a insolúvel questão do que o autor de Uma temporada no inferno teria estudado, ou não, nesse campo, e de quais obras alquímicas teriam de fato chegado a suas mãos. Há, sugere Guerdon, uma sincronia entre conhecimento poético e hermético, inspiração e revelação:

Em realidade, o problema das fontes esotéricas de Rimbaud tem menos importância do que parece. Temos confiança suficiente nos poetas para reencontrar neles as leis harmônicas das correspondências universais. Existe, acreditamos, uma sabedoria eterna, intangível, aquilo que chamam de Sophia perennis, a Tradição, a Gnose. Acede-se a ela por dois métodos: seja de maneira indireta pela iniciação (transmissão oral, freqüentemente através de um ritual), seja de maneira direta, pela intuição, a contemplação e a inspiração através do mundo e de seus símbolos. Essa última categoria agrupa os Videntes, os Gnósticos contemplativos e os poetas.

Certamente, Fernando Pessoa sabia disso, e o expressou com tamanha clareza em Natal:

Cega, a Ciência a inútil gleba lavra.
Louca, a Fé vive o sonho do seu culto.
Um novo deus é só uma palavra.
Não procures nem creias: tudo é oculto.

Baudelaire também sabia das analogias entre poetas e magos, e o disse em passagens como esta, de Fusées (Projéteis, na edição brasileira):

A escrita e a linguagem enquanto operações mágicas, sortilégio evocatório.

E, em Meu Coração a Nu, aproximou poesia e alquimia (antecipando Rimbaud e sua Alquimia do Verbo, texto no qual, por sua vez, reconheceria Baudelaire como vidente máximo):

Há uma religião universal, feita para os Alquimistas do Espírito: uma religião que emana do homem, considerado como um memento divino.

O esoterismo intrínseco, inerente à criação poética, é reconhecido por Octavio Paz em O Arco e a Lira, em passagens freqüentemente citadas:

O poema hermético proclama a grandeza da poesia e a miséria da história. (...) Cada vez que surge um grande poeta hermético ou movimento de poesia em rebelião contra os valores de uma sociedade determinada, deve-se suspeitar de que essa sociedade, e não a poesia, sofre de males incuráveis. (...) A solidão do poeta mostra a queda social. A criação, sempre na mesma altura, acusa a descida do nível histórico. Daí que às vezes nos pareçam mais elevados os poetas difíceis. Trata-se de um erro de perspectiva. Não são mais elevados; simplesmente, o mundo que os cerca é mais baixo.

Assim, ao pôr Mallarmé em cena, como nos trechos já citados, associando-o à defesa do hermetismo, Octavio Paz o trata como metáfora do mago. E vice-versa: o mago também aparece como metáfora do poeta. Simbolizam-se mutuamente.

O próprio Mallarmé autoriza esta interpretação, em seu comentário sobre Là-bas de Huysmans, intitulado Magie, ao referir-se a uma paridade secreta entre os velhos procedimentos e o sortilégio que permanecerá a poesia. E mais, ao dizer que o verso, traço incantatório, (...) abre uma similitude com as rondas, no meio da relva, da fada ou do mágico.

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Claudio Willer (São Paulo, 1940). Poeta, ensaísta e tradutor. Presidente da União Brasileira de Escritores, UBE. Co-director da Agulha, Revista de Cultura, onde pode encontrar o seu currículo: http://www.revista.agulha.nom.br/ageditores.htm
E também no dossier de Claudio Willer no TriploV: http://triplov.com/willer