MÁRIO FORTES & CLÁUDIA ÁVILA GOMES


ROMANTISMO, ULTRA-ROMANTISMO E... ALQUIMIA
NA PENA E NA REGALEIRA (1)

(...) Decidi reconstruir as ruínas do antigo castelo de Vorderhohenschangau, perto das cataratas de Pollat, no verdadeiro estilo dos velhos castelos dos cavaleiros germânicos, e devo confessar-te que me entusiasma a ideia de habitá-lo. (...)”
Correspondência de Luís II, rei da Baviera a Wagner, datada de 1868 (1)


De forma alguma inovadora, esta reconstrução extravagante, consequência da caprichosa decisão de Luís II, o rei louco da Baviera, foi precedida em cerca de três décadas pelo início das obras de uma das mais notáveis composições arquitectónicas e paisagistas do romantismo europeu - O Palácio e Real Parque da Pena.

Embora esta unidade indissociável, concebida pela vontade de D. Fernando II (2), Rei-consorte de Portugal, apresente afinidades indiscutíveis quanto à génese revivalista que presidiu à intervenção no Castelo de Vorderhohenschangau, distingue-se pelo vanguardismo e eclectismo inerentes à personalidade do seu criador. É lamentável, contudo, constatar que o desconhecimento da originalidade desta criação e da invulgaridade cultural do seu real e sereníssimo promotor, as impede de se destacarem internacionalmente e ocuparem o lugar proeminente que lhe é devido a nível da História de Arte.

Antecedentes

Não se pense, contudo, que esta obra realizada em Portugal permanece isolada no contexto europeu. Entre os vários antecedentes que remontam ao séc. XVIII encontra-se o castelo de Löwenburg, construído no parque do palácio de Wilhelmshöhe a instâncias do landgrave Guilherme IX de Hessen-Kassel em 1791, o qual teria a pretensão de fazer ressurgir “a época das superstições, da magia, dos espíritos e dos cavaleiros andantes” (3). Embora concebido como “ruína artística”, à semelhança de muitas das construções grandiosas que subsistiam do passado, dispunha no interior de todos os confortos de uma casa de campo aristocrática, tal como o Real Palácio da Pena.

Muitos outros príncipes e nobres promoveram a reconstrução de castelos medievais em ruínas e a respectiva re-utilização como acolhedoras residências de campo, e destes refira-se pela notabilidade das suas obras, Frederico Guilherme da Prússia.

Pode pensar-se que dezenas de construções revivalistas, muitas delas projectadas por Shinkel, serviam de mero refúgio para sonhos românticos onde estas personagens esqueceriam a recente revolução social e industrial, apurando, contudo, os requintes que esta última assegurava. Na verdade, na base desta atitude estaria a exaltação cultural, nomeadamente germânica, através da identificação destas estruturas como símbolos de liberdade nacional e testemunhos de um passado glorioso, referências indeléveis em épocas de crise que acabariam por ser usadas como modelos. Contudo, a maior parte destes castelos construídos ou reconstruídos no século XIX inseria-se em parques ou jardins de feição paisagista, cujos antecedentes imediatos remontam às paisagens bucólicas, nostálgicas, arcadianas e até mesmo épicas do Século das Luzes. Estes modelos idealizados foram amplamente divulgados em publicações, gravuras e desenhos, que então circulavam e admirados e estudados no decurso de viagens efectuadas por vários príncipes germânicos a Inglaterra, sendo reproduzidos com as devidas adaptações.

Diversas publicações temáticas, nomeadamente as promovidas por Goethe, Sckell, Gustav Meyer, e pelo príncipe Hermann Pückler-Muskau permitiram a divulgação de novos de conceitos, soluções estéticas e técnicas a nível da concepção da paisagem. Contudo, mesmo nas obras mais tardias persistiam algumas considerações paisagistas que, embora justificadas em pleno séc. XVIII, se revelaram como pouco coerentes enquanto fundamento e contexto para algumas das composições acasteladas.

Assim, estas paisagens, concebidas e construídas como interpretações idealizadas da Natureza e palco para as mais diversas actividades humanas, eram tão artificiais como os jardins ou parques barrocos, veículos de propaganda de um regime centralizado. E ainda tão pouco naturais como os fechados jardins rocaille, cenários onde se expressou o delírio social de uma época e os devaneios de uma sociedade em crise.

Nestes jardins e parques, resultado do cadinho cultural da Europa de finais do Antigo Regime e de princípios de uma Nova Ordem, coexistiam referências eclécticas a misteriosas civilizações do passado, à antiguidade clássica ou a períodos medievais relevantes: Arquitecturas e estatuárias foram dispersas por prados, enquadradas por orlas arbóreas e reflectidas em lagos naturalizados. Contudo, nestas composições não se procurava a coerência estilística ou cronológica, mas sim filosófica em torno de programas complexos, muitas vezes herméticos, em que se anunciavam as ideias contestatárias e progressistas da Revolução Francesa.

No caso da Pena, as opções estéticas foram completamente distintas: O extravagante palácio ou castelo foi levantado sobre um íngreme penhasco da Serra de Sintra, aproveitando as ruínas de um antigo cenóbio hieronimita. Nesta paisagem granítica e rochosa prevalecia a agressividade da Natureza sobre a expressão humana extremamente contida, enquanto condição relevada no decurso do projecto e da obra.

D. Fernando, na envolvente do Palácio da Pena, procurou replicar cenários germânicos através da plantação de uma densa floresta, talvez sagrada (4), à semelhança das que teria conhecido em jovem em caçadas na Thuringia e explorar as potencialidades da paisagem serrana dominada por penhas e penhascos graníticos. Esta opção, que Jung teria associado à emergência das potências de um arquétipo no horizonte da consciência, não é de todo original, pois há composições precursoras. Relembre-se os vários jardins de rochas que foram construídos ao longo de séculos e destaque-se Sanspareil (5), realizado a instâncias da margravina Sofia Guilhermina de Bayreuth em pleno séc. XVIII. Nesta obra, e segundo os pressupostos setecentistas, o conjunto dos vários acidentes rochosos naturais, penhascos e grutas e os restos do bosque que os envolvia teve que ser entendido como cenário das aventuras aparentemente iniciáticas de Telémaco, Filho de Ulisses, descritas por Fénelon (6), para ser pelo menos assumido como jardim. Embora nestes exemplos se destaque algum interesse pela Natureza enquanto “Idealizada”, pouco se traduz e explica quanto à génese do Parque da Pena.

O sublime, a montanha e o mar

Nos antecedentes mais evidentes, talvez mais do que nos romances historicistas e medievalistas de finais de setecentos (7), inclui-se a descoberta de paisagens até então ignoradas pelos modelos barrocos, adversos à itinerância e à apreciação dos valores naturais, e que, de forma pontual, se descobrem em composições como Hafod e Hawkstone.

Neste contexto, é notória a importância da descoberta da montanha, a qual decorreu em simultâneo com a descoberta de mundos exóticos bem mais distantes (BROC, 1989: 45-60). Na obra notável Itinera per Helvetias Alpinas regiones, realizada por Scheuchzer, professor de Física da Universidade de Zurich, denota-se o novo interesse por plantas, rochas e glaciares enquanto pormenores desconhecidos da paisagem que percorreu entre 1702 e 1711.

Pouco depois, este novo interesse é reafirmado por outro escritor. Haller, médico naturalista e artista, com o seu grande poema de 49 estrofes, Die Alpen, de 1733, introduziu a montanha na literatura, a qual mais tarde se revelaria nas restantes artes. Documenta-se o interesse gradual pelas paisagens diversificadas da montanha, onde tanto coexistiam cenários pitorescos como outros desoladores de caos de blocos, em tempos refúgios de eremitas e pequenas comunidades de religiosos. Interesse este, que viria a suportar as futuras exposições de Schlegel quanto a uma suposta relação de sublimidade entre o gótico e a Natureza.

Edmund Burk, em 1757, publica A Philosophical Enquiry into the Origin of our Ideas of Sublime and Beautiful, obra na qual suporta este novo estado de espírito e realça a importância das várias sensações, as quais poderiam ir do prazer ao medo ou espanto e que algumas décadas depois foram transpostas para a paisagem.

Também na pintura de época vai transparecendo esta nova imagem da paisagem, na qual se expressa não só a insegurança e a fragilidade humana tantas vezes contextualizadas nos cenários de montanha de Gaspar David Friederich, como o “horror sublime” ou o “sublime horror” de terramotos, noites de tempestade, cataratas e naufrágios que viria a ser pintado por Turner e gradualmente incorporado em cenários desde aí criados.

Desta forma e com muitos outros contributos elegeram-se as bases das estéticas que vieram a integrar o movimento romântico, nas quais as distinções efectuadas entre o belo, o elevado e o sublime suportaram também teorias a nível da concepção de parques e jardins. Na concepção da paisagem, tal como na pintura, na poesia e nas restantes artes de oitocentos, procurou-se a consagração dos sentidos e o explorar ou sublimar das emoções.

Desta forma, só se pode ponderar quanto aos processos evolutivos de continuidade e de ruptura abrupta ou de descoberta, subjacentes à formalização das paisagens românticas e que se destacam de forma óbvia no Real Parque da Pena. Nesta obra paradigmática, o mar e a montanha participam do sublime, expoente no Romantismo (ROGER, 1989: 61-82), relevando-se a agressividade da paisagem face à fragilidade do Homem, que permanece como um resíduo quase omisso (8).

Assim, a solidão e a sublimidade foram assumidas como metáforas fundamentais românticas, muitas vezes acompanhadas pelo interesse mórbido sob a inevitabilidade do destino que transparece nas mais diversas paisagens de época.

A Pena

Quando se pretende criar um jardim, deve dirigir-se a atenção mais à Natureza que à Arte, na qual não se deve utilizar mais do que o necessário para reforçar a Natureza
Dézallier d’Argenville, 1709


Se a Serra de Sintra encantou D. Fernando pela sua localização, pelas suas panorâmicas sublimes tão ao gosto da época e pelas suas peculiaridades climáticas, não menos o encantou pela carga de mistério e lendas que desde tempos remotos a individualizavam nas imediações de Lisboa. Monumentos megalíticos e topónimos estranhos denunciavam a consagração desta zona a cultos celestes e terrenos (PEREIRA, CARNEIRO, 1999:11). Geógrafos da antiguidade a consideraram como Finisterra ou como Mons Sacer, o Monte Santo de Varrão e Columella ou ainda como o Monte da Lua de Ptolomeu. Acresciam-se a toda a esta carga mítica as referências ao passado islâmico que tanto atraía o futuro rei consorte e a um lendário passado medieval pelas histórias dos castelos de Colir e de Cintra narrado por João de Barros.

A envolvente correspondia na íntegra aos conceitos estéticos da época, dominados pela agressividade da paisagem de blocos graníticos, pelo horizonte marítimo, pela expressão das forças da Natureza e mais ainda pelo isolamento: O local escolhido e adquirido após a extinção das ordens religiosas participava não só de um antigo espaço de devoção cristã de origens também remotas, mas também das características topográficas e fisiográficas que assegurariam a construção magnífica no topo de um ermo penhasco.

Nas imediações, vários palácios e quintas, conventos e cercas, testemunhavam a história da região destacando-se pelos estilos e construções, híbridos de épocas passadas, que viriam a influenciar e a participar da obra ecléctica do palácio da Pena.

A concepção e construção decorre num período em que em Portugal se iniciava a reflexão sobre o Património Nacional, se relevava e realçava os testemunhos medievais através de estudos como os de Francisco Adolfo Varhnhagen e projectos revivalistas, como os de Cinatti e Rambois para os Jerónimos ou outros para o Convento de Cristo, abordagem que até certo ponto as justificava e inseria no contexto europeu. Relembre-se que estes últimos, chegados a Portugal logo após o fim da Guerra Civil, foram os responsáveis pela adaptação da cenografia nacional aos ideais românticos através da utilização de paisagens, de elementos arquitectónicos revivalistas, de cenas fantásticas e míticas.

Assim, foi fácil o recurso arquitectónico ao estilo compreendido como Nacional, o “Manuelino”, e a todos os eclectismos promovidos por D. Fernando. Contudo, o mesmo não se passou a nível da envolvente: A solução tradicional dos pátios, jardins fechados e demais espaços terraceados de produção e recreio, integrados na estrutura de uma quinta ou de um convento e adaptados ao relevo e às condições edafoclimáticas, dificilmente corresponderia às expectativas e exigências de enquadramento do palácio acastelado da Pena.

D. Fernando teve a oportunidade de admirar as principais criações paisagistas alemãs, nomeadamente as que envolviam as residências de infância de Rosenau e Coburgo, e outras contemporâneas como o Tiergarten em Berlim, entre as várias projectadas por Lenné. Teve também a possibilidade de consultar publicações temáticas relacionadas com os ensaios então realizados a nível da concepção de paisagens, pelo que se pode afirmar que na criação do Palácio e do Parque, tal como em tantos outros projectos e obras, se manifesta a aquisição de conhecimentos ao longo da sua diversificada formação como príncipe alemão.

Consequentemente, não é de estranhar que a composição da Pena se assumisse através de um modelo pouco conhecido em Portugal, o “parque”, e se afastasse das tipologias tradicionais das quintas, cercas ou tapadas. E que, em simultâneo, nela se recorresse pontualmente ao decalque de algumas soluções divulgadas em publicações temáticas, desenhos e gravuras da época. Contudo, pode constatar-se que esta solução dista tanto das soluções tradicionais portuguesas como das observáveis nos parques paisagistas ainda em voga na Europa, modelos que inspiraram Gerard Devisme (9) aquando da reformulação das suas quintas de Monserrate e de S. Domingos de Benfica, em pleno séc. XVIII.

Este parque, que atingiu cerca de 150 Ha, foi sendo adquirido e construído de forma gradual em torno do antigo convento jeronimita de Nossa Senhora da Pena, aproveitando as reminiscências da antiga cerca conventual. De 1839 à década de 60 desenvolveram-se os principais trabalhos de arruamentos, aquedutos e plantações constantes da planta do Real Parque da Pena, de 1856. As construções e plantações arrastaram-se até à morte do rei em 1885, tendo a manutenção sido assegurada até ao séc. XX sob a gestão de Elisa Hensler, que veio a ser Condessa d’Edla e segunda mulher de D. Fernando.

Na obra considerável da Pena sobrepõe-se a personalidade e a vontade do promotor às soluções de colaboradores reconhecidos como o barão de Eschwege (10) e eventuais ou pressupostos como o barão de Kessler e Wenceslau Cifka (11) e ainda às hipotéticas sugestões do jardineiro Morgado, entre outros nacionais. Assim, no parque persistem apontamentos cenográficos que podem relembrar as viagens então efectuadas pela Alemanha, Inglaterra e França, mais do que as realizadas a regiões consideradas exóticas como a Argélia e a Andaluzia.

A composição, que se arrasta por várias décadas e se adapta aos critérios estéticos de cada momento, compreende a plantação de uma vasta floresta que envolve não só a encosta do palácio bem como todas as linhas de cumeada, cruzando propriedades ou tapadas que viriam a manter ou receber designações de Encosta da Cruz Alta, Mata Dourada, Jardim Inglês e Encosta do Chá entre outras.

“Toda a magia surge do bosque, da natureza, do inconsciente. Se atinge captando as forças geradoras que palpitam no interior de todas as coisas: A erva, a fonte, o barulho das folhas, o canto dos pássaros... Se se atreverem a perder-vos no bosque como ascetas, para encontrar entre as frondas e as rugosidades do inconsciente, para reconhecer vosso rostro na superfície de um tanque escuro...alcançarieis, amigos, todos os poderes da magia.”
Garcia Font, 1998 (Trad. Aut.)

Ao longo dos vales principais, marcados pelas seculares reminiscências religiosas e pela construção mais recente do chalet designado como “da Condessa”, criaram-se lagos, plantaram-se jardins, colecções de camélias, feteiras, além de viveiros devidamente enquadrados por estufas e estufins, indispensáveis à replicação de plantas e manutenção de colecções. Ao sabor da época, foram plantados fetos arbóreos, rododendros, castanheiros, castanheiros da Índia, faias, aceres, nogueiras, cedros, freixos, carvalhos, pinheiros, tuias, criptomérias, sequóias, e muitas outras espécies também oriundas dos "Quatro Cantos do Mundo”.

Toda esta estrutura, que se assume em duplicado em torno do palácio e do chalet, apresenta-se unida pela rede de percursos e suportada pelos consideráveis aquedutos, que depois de receberem a água das captações ou minas tanto abasteciam as charcas indispensáveis à rega das vastas áreas plantadas, como asseguravam o caudal contínuo nas linhas de água e as dotações de água corrente nos edifícios.

São poucas as edificações levantadas na vasta área do parque, limitando-se apenas a um mirante como o Templo das Colunas, ou a uma fonte como a dos Passarinhos, além dos anexos exigidos por questões funcionais dos quais se destaca a Abegoaria. Nestas construções é óbvia a feição manuelina, orientalizante, arabizante ou mourisca, que dominou a construção do palácio, tal como o recurso à arquitectura de vanguarda europeia.

As construções mais numerosas compreendem pequenas fontes, mesas e bancos localizados em posições estratégicas do parque. Durante as primeiras décadas da obra, algumas destas pequenas construções de alvenaria rebocada sobressaíam da paisagem agreste por pintadas de forma algo suspeita a azul, vermelho e amarelo, e parcialmente revestidas a asfalto, material de eleição da época. Com o avançar do século XIX, as soluções construídas foram sendo depuradas deste artificialismo, afeiçoando-se à Natureza. A paisagem concebida em torno do chalet da Condessa, mais pitoresca, reflecte este período já tardio da Pena e afasta-se das pretensões iniciais do parque, talvez dominadas por fundamentos mais recônditos.

Assim, a Pena pode surpreender... tanto pela negativa, se admitida como adaptação falhada de um modelo paisagista, desprovida de profundidade e coerência, como pela positiva, se compreendida como composição inovadora cuja interpretação se baseia em princípios complexos e herméticos, talvez afins aos que vieram a ser exibidos sem pudor na Quinta da Regaleira.