A RELIGIÃO QUE ANDA NO AR, OU A DOR DO DIÁLOGO
JOSÉ AUGUSTO MOURÃO
(UNL-DCC)

«They know which way the wind is blowing" (Hillis Miller)

«Je suis persuadé qu'en lutant contre le gnosticisme, le deuxième évêque de Lyon a combattu, il y a exactement dix-huit siècles, la déviance Ia plus redoutable que rencontre aujourd'hui la foi chrétienne, du moins en Occident» (Decourtray)


No fim do século XIX e no começo XX, antes de 1914-1918, falava-se de "religiosidade vagabundeante" para designar uma nebulosa alternativa que pairava fora das Igrejas, de feição individualista e espiritualista, moderna a seu modo, pouco ou muito panteísta. O niilismo negativo e trágico diz que “a religião acabou”. Engana-se. A nostalgia do sagrado pervive e reaparece no meio das transformações em que o social se confunde com o religioso, em que a comunicação com a natureza e com o conhecimento cósmico dum bem universal se confunde com o próprio conhecimento de Deus. Aquilo que julgávamos extinto reaparece, reposiciona-se em configurações de co-presença nunca antes vistas. Os deuses voltaram a ocupar a crista da onda (como em Voltaire), esbatendo-se a diferença entre a epifania antiga e aquela que pode sobrevir na impostura da língua, na lógica da publicidade, nos jogos de computador ou no sexo de ler.

Uma sensibilidade gnóstica marca este fim de milénio. Um tipo de religiosidade deambula agora fora das instituições religiosas, centrada na experiência emocional, profundamente eclética - um caldo de psicologia transpessoal, com resíduos do último paradigma científico, da tradição esotérica, e com algo de misticismo oriental, cristão, etc.. É uma religiosidade que anuncia a entrada numa nova era religiosa e que deriva, em vários casos, ou para atitudes fundamentalistas ou para o unilateralismo ou para o confusionismo e o vago erigido em paradigma. O religioso interessa mais do que a teologia, suspeita de ligações à instituição e aos dogmas. Uma exegese de tipo esotérico está a substituir a leitura canónica dos textos bíblicos. A mística tornou-se um efeito de laboratório: biofeedback, isolamento sensorial, respiração holotrópica, hipnose, mantras, jejum, privação do sono e meditação transcendental são técnicas de controle e de vibração com uma unidade totalitária. O religioso interessa mais do que a irracionalidade e por consequência o abandono ao autoritarismo dogmático das igrejas, dos “comités” centrais ou dos chefes carismáticos. “O niilismo construtivo da hermenêutica deve defender-se não apenas do regresso nevrótico dos autoritarismos, mas igualmente do endurecimento metafísico da hostilidade para com as fundações (1).

Emancipação é o termo que melhor define o niilismo contemporâneo, se lemos este termo nietzscheano à luz de uma outra expressão do filósofo alemão: “Deus morreu, que vivam agora deuses”. Para G. Vattimo, a dissolução dos fundamentos é o que liberta, se ouvimos esta expressão à luz desta outra, evangélica: “a verdade libertar-vos-á” (2).

Se há ideologia que ainda atravessa o ar e os figurinos do pensamento, essa ideologia é o niilismo. 0 niilismo representa hoje a dissolução de qualquer fundamento último. As religiões deixaram de ser apólices de seguros, entraram no vórtice do tempo e fragmentaram-se, como a própria cultura.

O processo vem de longe. Duns Scot - o Doutor subtil - inaugurou a ruptura com a tradição realista de inspiração agostiniana e tomista ao separar a metafísica da teologia. O humanismo renascentista marcava já o início de um processo de secularização da vida e da cultura. Perderam-se entretanto várias formas do humano - o monaquismo, v.g. O humano está hoje a tomar as formal quiméricas do ciborgue e do clone. Um problema nos assaca: como descrever realisticamente o mundo se este está ainda por vir?

Escrevi já sobre aquilo a que chamei a ''proliferação de transcendências", como escrevi também sobre “Cibercultura e religião, o vento da tecnognose” (5). Aqui referir-me-ei tão só à aparição do novo paradigma cultural denominado “New Age” e aos seus efeitos na experiência do religioso em confronto com as religiões dominantes.

Existe um movimento teológico chamado Radical Orthodoxy que afirma que tanto a filosofia como a teologia devem desfazer-se da herança escotista e ochamista se querem evitar cair no niilismo. E porquê? Porque este pensamento (nominalista) favorece a saída da teologia e da metafísica, assegurando deste modo a passagem à modernidade secular e niilista (3). Para a Radical Orthodoxy, o sagrado interpenetra tudo. O conceito de fé perceptiva" de Merleau-Ponty permite a Ph. Blond, por exemplo, afirmar que só o cristianismo pode dar conta da relação entre a visibilidade e a invisibilidade, sem abolir qualquer destes pólos (4).

A Idade Nova

O paradigma antigo regia-se pelas propostas de mundo contidas nas Escrituras judeo-cristãs. 0 aparecimento do novo paradigma desenha-se já no começo do século XIX, na passagem do racionalismo ao romantismo. Se a experiência da presença dos deuses era em Hölderlin e alguns eruditos, pura, já em F. Schlegel, essa mesma experiência, com o seu desejo de englobar o Oriente, se torna gasosa, e ambígua em Nietzsche. E porquê? Porque vem ligada à perversão de uma comunidade holística – que se torna terrível no mundo tecnológico -, a vontade do povo alemão. A própria esperança num regresso de Dionísio através da música esfarela-se e a paródia acaba por ganhar. Em último caso, experiência vai confundir-se com o sentimento que tem Nietzsche da sua própria divindade. A “revolução” da “New Age" aparece como a etapa final duma evolução. Há autores que situam a sua eclosão em Inglaterra, no final dos anos cinquenta. O despertar da Teosofia abre caminho para esta deriva que comporta todavia alguns princípios comuns:

- uma concepção holista, monista ou unitária do universo; como corolário: o homem é divino por natureza;
- um relativismo ético e religioso;
- uma concepção da reincarnação;
- um milenarismo optimista".

David Spangler (6), cita as principais características da visão Idade Nova, a saber:

- holística (globalizante, porque existe uma única realidade-energia);
- ecológica (a Terra-Gaia é nossa mãe, cada um de nós é um neurónio do sistema nervoso central da Terra, Gaia é a alternativa a Deus Pai; o Deus da New Age é uma energia impessoal, imanente ao mundo);
- andrógina (o arco íris e o Yin/Yang são dois símbolos New Age que indicam a complementaridade dos contrários, v.g. masculino e feminino;
- mística (vendo o sagrado em toda a parte);
- planetária (os homens devem ancorar-se à sua própria cultura e abrir-se ao universal).

Escolhos não faltam: a espiritualidade “nova idade” traz consigo uma metafísica e uma psicologia; a primeira é uma clara nova forma de gnose – Jesus é apenas uma das muitas manifestações históricas do Cristo universal e cósmico; a segunda resume-se a uma experiência de transformação. Narcisismo espiritual? Negação da história? União mística ou união virtual? Tudo é Deus e tudo é espírito de Deus? Fundir-nos-emos no eu cósmico? (7)

Da New Age à cibercultura

Os movimentos religiosos contemporâneos parecem resultar de algo que esteve sempre presente em todos os movimentos reformadores: uma dispositio novi ordinis. De acordo com a Confissão de Augburg (1530), "The anabaptists and others who teach we can attain to the Holy Spirit without the bodily word of the gospel and through our own preparation, thoughts and work are condemned" (artigo 5). O critério decisivo da doutrina da Igreja é visto na adesão teológica à “bodely Word” (na versão Latina do texto, verbum externum). Aquele que separa a fé do medium desta palavra incarnada está a promulgar uma doutrina que o coloca fora da Igreja. A Igreja como institutio Dei, só existe por causa do Espírito e a palavra incarnada. A natureza externa do evangelho está indissoluvelmente ligada à própria matéria do evangelho (8).

Em causa está, fundamentalmente, uma concepção do Espírito como força de apropriação subjectiva da verdade. O Espírito é princípio de autoridade na comunidade, de acordo com 1 Cor 14, em que cada membro tem o direito de falar e todos os outros ouvem e fazem uma apreciação crítica. A própria unanimidade é considerada como um sinal da acção do Espírito (Act 15, 23).

No libelo de Hergot, o impressor a que já fizemos alusão, é o Espírito Santo que ensina a verdade, que não se encontra nos Livros. 0 Espírito vem em ajuda dos homens não instruídos contra os escribas e os exegetas que não acreditam em nada e apenas pensam na sua própria utilidade (9). A revolução vem de baixo, mas é inspirada pelo alto. Os executantes desta “newen Wandlung" serão homens do grau mais baixo da escala social, “das gemeyne Volk'' e os guias serão homens inspirados por Deus. Na tábua 12 do livro das figuras a terceira idade do Espírito trará uma nova ordem. Nesta ordem todos são iguais. Não há dúvida que bastas razões havia para que os movimentos revolucionários modernos se tenham apropriado do ideal que reveste este libelo.

Parece claro que o movimento religioso que dá pelo nome de “new age” faz da experiência e da livre interpretação da Escritura os seus mais notórios alicerces. Alan Purves chama a atenção para a alteração profunda que as novas tecnologias da informação podem introduzir no campo da leitura (10). A ciberliteratura traz consigo o fim do texto, a disseminação da escrita, a partilha do texto e do sentido que faz com que o autor se tenha transformado em gerador de textos automáticos. Esta máquina activa, não determinista, permite ao leitor gerar o seu próprio texto, independentemente da intenção do actor. O abandono da narrativa, o ódio à ideia de “intenção”, o abandono da ideia de autoridade, senão mesmo de autoria ameaçam o mundo do “Great Code” outrora ferreamente guardado por exegetas e demais autoridades. “O sentido do texto não está aqui”. Haverá melhor Boa Nova para o Texto a vir?

É comum associar os “entusiastas” à "new age". “Spirit” tanto pode ser entendido num sentido Joaquimita como num sentido Montanista para indicar a marca de uma nova idade que transcende os estádios da salvação representados pela incarnação e pela Igreja. No método exegético que Joaquim de Flora pratica, a “concórdia" é a palavra-chave, a letra do Antigo Testamento, a do Novo Testamento e a inteligência espiritual em relação com a idade do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Este tipo de leitura enraíza o sentido dogmático na história, não evacuando “o carácter social duma revelação feita ao povo de Deus no curso duma história" (11). Por outras palavras, o cerigma neotestamentário é também um Testamento, uma letra, uma nova Escritura a interpretar. Em termos literários modernos, a questão coloca-se deste modo: como pensar simultaneamente a ligação necessária e o abismo inevitável entre a Escritura e nós, se a inteligibilidade dos textos depende da posição do leitor na história?

Coda

Devíamos ter o ouvido afinado para escutar aquilo que no nevoeiro da religiosidade vagabundeante se faz ouvir. O vento que sopra não conhece instituições nem projectos de nova evangelização, marca apenas uma nova sensibilidade, uma nostalgia também pela música dos sinos, pela marcação ritual da vida, pelos modos perdidos de humano. Não sei se as culturas da mundialização contrariam aquilo que mais profundamente marca a modernidade: a irrupção do indivíduo-sujeito que reivindica o direito de definir o fito dos seus projectos e da sua auto-poiése. Vem de Jung a crença num “deus interior”. A New Age tem uma concepção bem própria da “theosis” ou divinização, que consiste em reconhecer e em aceitar a nossa natureza divina (12). O social e a arte ocupam desde há muito o lugar da religião. “Os deuses manifestam-se, antes de mais, como acontecimentos mentais”, escreve R. Calasso (13). A única maneira de evitar uma redução à patologia encontra-se na literatura que os reintroduz no mundo e representa o lugar possível das epifanias. O nosso mundo é profundamente escotista. A “imanentização do mundo'' afasta Deus da criação e espacializa a cidade terrestre. A “estética de cinza" tem muito mais peso do que a “estética de ressuscitação" que alguns estetas cultivam. O realismo dos números devora a impulsão para criar mundos-outros. A economia do datum está a substituir a economia do dom. O processo de “nominalização” do mondo apaga os vestígios da passagem do Anjo no mondo visível. Que restará então dessa poeira (religiosa) que anda no ar?

NOTAS
1 Giani Vattimo, “Nihilisme et émancipation”, in LV, 257, 2003, p.10.

2 Ibidem, p. 9.

3 J. Milbank, The Word Made Strange. Theology, language, culture, Oxford, Blackwell, 1997; C. Pickstock, After Writing. On the liturgical consummation of philosophy, Oxford, Blackwell, 1998.

4 2 Ph. Blond, "Perception. From modem painting to the vision in Christ”, in Radical Orthodoxy. A new theology, ed. J. Milbank e al., Londres-New York, Routledge, 1999, p. 221.

5 José Augusto Mourão, “Do uso selvagem do sagrado. A religiosidade vagabundeante”, in RCL, nº 28, Outubro de 2000; “”Cibercultura e religião. O vento da tecnognose”, Cadernos ISTA, nº 11, 2001.

6 David Spangler, in Actualité des religions, nº 8, setembro 1999, p. 43.

7 Cf. La documentation catholique nº 2288, Une réflexion chrétienne sur le ‘Nouvel Âge.

8 Inge Lonning, "The Reformation and the Enthusiastic” in ed. M. Hans Küng e Jürgen Moltmann, Conflicts about the Holy Spirit, The Seabury Press, New York, 1979, p. 33. Ver, na mesma obra, John H. Yoder, “the Enthusiasts and the Refomnationn”, pp. 41-47.

9 Johann Hergot, Von der newen Wandlung eynes christlichen Lebens, ed. A. Goetze Schmitt, in Flugschriften aus der Reformationszeit, Halle 1953, p. 60.

10 Ver o ensaio de Alan C. Purves, Web of Text and the Web of God, The Guilford Press, New York, London, 1998.

10 B M.-D. Chenu, "Histoire et Allégorie au Xlle siècle", in La Parole de Dieu I. La foi dans l'intelligence, Paris, Cerf, 1964, p. 167.

12 Cf. Brendam Pelphrey, “I said You are Gods. Orthodox Christian Theosis and Deification in the New Religious Movements”, in Spirituality East and West, Easter 2000, nº 13.

13 Roberto Calasso, A Literatura e os Deuses, Gótica, Lisboa, 2003, p. 145.