O OUTRO DENTRO DE MIM LÁ FORA - FLORIANO MARTINS

É comum o poeta ser indagado acerca de seu método de criação. Há uma curiosidade natural em saber como nos desentranhamos de nós mesmos. Contudo, paira uma certa confusão em torno do termo (método), pois não se trata precisamente de um caminho prefixado. Há casos em que se nota certa prefiguração, mas em muitos outros o demônio da escrita faz perder a respiração de quem por acaso creia em um domínio completo da criação. Poetas que tratam do assunto como método acabam justificando a previsibilidade da própria obra.

Imaginemos uma entidade qualquer que tenha que partir do vazio, da ausência completa de forma e entendimento sobre o que seja, para ir compondo um cenário que a legitime. Não toma emprestada a ninguém a ordem que busca fundar. Quanto mais se concentra em si mesma mais se sente a manejar formas. Chega então ao fim do poema, e a leitura o enche de terror e angústia: todos aqueles objetos e afazeres da linguagem estavam já em tantos outros poemas que li. Como posso ser igual a mim mesmo sem os considerar? O poeta está lá fora e está aqui dentro. Há algo que o habilita a percorrer essas trilhas invisíveis. Trata-se da dor? O outro que tenho em mim e que por vezes está em outra parte somente conecta-se com aquele que me desconhece sendo parte de mim quando a dor se instala entre nós? Como considerar a alteridade em um cenário onde cada um de nós perdeu a confiança em si mesmo? Que outro nós somos em cada um que nos habita? Uma equívoca consciência da dor acaso nos leva a perceber o mundo segundo zonas de interesse? Quando sou eu em mim ou no outro que me deseja?

Se vamos indagar ao poeta em nossos dias decerto concluiremos que o assunto se desfez, que a poesia não mais se opõe a nada e que a linguagem poética caracteriza-se tão-somente por um jogo de efeitos, a eficácia de um ludismo vicioso. Benjamin Péret disse certa vez que não há outra maneira de se ser poeta senão lançando-se sem cessar ao desconhecido. O conhecimento na poesia é um reconhecimento, uma identificação. Péret não disse nada de novo. Apenas disse. É fundamental saber dizer. Importa mais do que a obsessão por dizer o inaudito. Não há por que fantasiar o outro. Como estamos a falar de poetas, a obra acaba por denunciar essas confusões de linguagem. Onde encontro o outro em mim se já determino meu fim?

Talvez a primeira pergunta seja: de que maneira nós confundimos imaginário e realidade? Se o outro que imaginamos ser está propenso a tornar-se real, o enigma que propicia essa transmudação deve ser visto como uma ponte e não como um passe de mágica, um ilusionismo. Trata-se melhor de um rito de passagem. Ao se reduzir algo apenas ao domínio da imagem, a tendência é leva-lo ao desaparecimento. René Magritte recusava a idéia da arte mostrando algo imaginário. Para ele, o que se deveria mostrar era a realidade completa, “a realidade com seu mistério, sem separá-la de seu mistério”. Portanto, aquilo que busco, aquilo com que sonho, já é parte de mim. Da mesma forma que as visões são parte entranhável da realidade.

Por onde caminho quando me entrego ao compasso do desconhecido ou do apenas sonhado? Nada na criação faz sentido se não vem dizer-me quem eu sou. Não que o outro não possa converter-se em um ponto de fuga. O essencial a ser considerado é a intensidade da entrega. Os desdobramentos são inúmeros e em momento algum negam valor ao princípio da alteridade. Deve manter-se o curso do que hoje, em nossa sociedade, é tido, quando menos, como desmedido, aquela exigência anotada por Octavio Paz de “encontrar o ponto de interseção entre o movimento e a essência”.

Em que se distingue o outro que tem em si o poeta do que poderia ser encontrado nos becos existenciais de qualquer um de nós? Acaso a idéia de Lautréamont de que a poesia deve ser feita por todos restringia-se tão-somente a um domínio de sobreposição ou acumulação de versos e imagens? Lautréamont falava do extravio de nossos vícios razoáveis, da dissolução do ego no caudal sangüíneo de um rio dos seres. O verbo terá que ser mágico e não comportará acomodação a efeito algum. O poeta deve estar presente em todas as cerimônias que lhe definem uma poética. Misturar-se a seus versos com a mesma intensidade com que supõe a vida abuse de si.

Quantos somos em nós no cotidiano e por que razão nós buscaríamos a poesia? Ao mesmo tempo, quantos de nós um poeta consegue ser e por qual razão sua poesia não nos toca? Sem cair no equívoco recorrente dos estatutos ideológicos associados à poesia e sua decorrente entrada na ilusão do grande cartel de espetáculos, o poeta em nosso tempo segue devedor de uma cumplicidade que não seja manipulação. Todas as ideologias abusaram da propaganda. No entanto, a única propaganda recriminável é a do outro. Para nós que estamos a conviver com o que não parece ir além de um espetáculo, fica a pergunta: quem é o outro do poeta em nós?

O fato é que a poesia foi para bem longe de nós. A obsessão pelo domínio de uma linguagem é a mesma em qualquer instância. O domínio é inequivocamente o território da grandiloqüência. Uma espécie inconciliável de isolamento. Há uma observação do Georges Hugnet que deve ser aqui considerada: “O poema é uma restituição à imensa voz que ressoa para todos. Não é um jogo de sociedade mais ou menos elegante, mas sim o jogo trágico do que não tem nome e um crime contínuo do medíocre orgulho da personalidade”. Poucas vezes encontrei uma definição tão precisa. Os poetas acabaram por associar-se ao culto da personalidade. Reclamam hoje que não têm voz em uma sociedade marcada essencialmente pelo mercado das almas, mas esquecem que a dissociação entre ser e linguagem levada a termo por muitos deles é a única raiz desse abismo do qual se ressentem.

Que ouro nós perseguimos? Com que espécie de transmudação nós sonhamos hoje? Ao que parece, ao menos por efeito, o mundo ainda se move. Diante de nós sempre passa uma vaca voando, os corpos desfeitos do amor, a lousa fria dos dias. Mas o que ainda pretendemos de nós? Discutir qualquer paralelo ou percepção alquímica, para mim, deve ser prato servido com um molho existencial. Esqueçamos os vícios terminológicos. Quantos estamos aqui, percebendo a necessidade de sair de si para dar chance ao outro? Sair dos vícios de linguagem, sobretudo. Até que ponto a poesia foi possuída por uma idéia de ausência do humano, tornando a linguagem um ser à parte?