CONFERÊNCIA DE ENCERRAMENTO. 15.10.2003

JOSÉ MANUEL ANES

O SAGRADO, COMO CENTRO ORGANIZADOR: UMA PERSPECTIVA TRANSDISCIPLINAR (*)


0 – Introdução

Este artigo pretende propor um modelo para o sagrado de modo a dar conta da sua força de unificação presente no Homem e na Sociedade mas que ao mesmo tempo não se esgote num sagrado estritamente religioso. De facto, o que nós desejamos definir é um modelo de um sagrado, digamos generalizado, de molde a incluir não somente as formas religiosas e mágico-religiosas, mas também um sagrado «secular» que, pelo facto de estar no mundo, disfarçado, não deixa no entanto de apresentar algumas características do outro sagrado, o religioso e o mágico-religioso – por exemplo, recordando-nos da obra de Mafesolli (Le temps des tribus), as “tribos” do nosso “tempo” (a política, o desporto, a discoteca, etc.,).

Como é sabido, as definições do sagrado levantaram algumas reservas da parte de alguns pensadores e cientistas sociais et humanos (e não apenas os materialistas e os racionalistas) em função das questões seguintes:

a) questões relativas ao carácter metafísico da definição: por exemplo, a definição de Mircea Eliade está baseada num conceito do sagrado como hierofania, a manifestação de uma entidade sagrada: Natureza, Deus, etc., o que implicaria, entre outras coisas, a crença em Deus;

b) questões relativas à não universalidade da oposição sagrado/profano (ver E. Durkheim ): em certas sociedades primitivas toda a realidade estaria imersa no sagrado e não haveria espaço para o profano; ao mesmo tempo, surgiram propostas para novas dicotomias relativas ao sagrado, por exemplo a do puro/impuro (ou pureza/poluição) de Mary Douglas.

Haverá, pois, um modelo que integre estas diversas situações e que dê conta desta força de reunificação característica de todo o sagrado, dessa “dimensão unificadora da experiência”, de que Gregory Bateson nos falava?

O sagrado tradicional é sacrificial em grande medida, pois é a morte real ou simbólica que, segundo R. Girard , sacraliza a vítima emissária, afastando-a, distanciando-a em relação ao mundo quotidiano.

1 - A definição do Sagrado, hoje.

A noção de “centro organizador” (René Thom), desenvolvida por Lucien Scubla no contexto da Antropologia do Simbólico, para aproximação do seu «objecto total», parece ser um bom modelo do Sagrado, quer para o sagrado religioso, quer para o secular, tanto para o sagrado das «religiões históricas», como para o sagrado «primitivo», tanto para o sagrado «domesticado» das grandes instituições religiosas, como para o sagrado «selvagem» dos «novos movimentos religiosos» e «mágico-religiosos» e das «seitas».

Para o autor de Lire Lévi-Strauss, é uma boa “hipótese de trabalho” a “existência, em todas as sociedades”, de “um ser ou objecto (natural ou articial) que reune e concentra nele um conjunto de traços tão numerosos e tão diversos, mas geralmente incompatíveis e separados”. Este “ser” ou “objecto” poderia, segundo Scubla, “servir de modelo reduzido, ou melhor de germe, de toda a natureza e de toda a cultura” e, além disso, seria “geralmente investido duma função ritual de primeiro plano tendendo a erigi-lo em fecho de abóboda de toda a organização social .

Este sagrado generalizado que decorre, na minha perspectiva, da hipótese de Scubla (prefiro para tal a expressão «centro organizador» à de «objecto total»), parece ter com efeito uma grande universalidade pois “reune e concentra” nele não somente as explicações do monde que lhe dão sentido – aspectos cognitivos que Rappaport denominava de «Postulados Sagrados Últimos» - mas também mobilizações vitais, internas e externas, do indivíduo e da sociedade às quais Bateson foi muito sensível na sua perspectiva bio-antropológica e que R. Otto, na sua aproximação psico-espiritual do sagrado denominou de experiência “misteriosa” do “numinoso”, ao mesmo tempo «tremendo» e «fascinante»” .

Vejamos pois si as definições e as características do Sagrado podem ter lugar nesta definição de Thom/Scubla. Quanto às características de “numinoso”, “mysterium” e “totalmente outro” (Otto), são elas que determinam e reforçam, neste quadro, uma “crença numa realidade superior que daria sentido à ordem do mundo” , quer dizer, o “modelo reduzido, ou melhor (…) germe, de toda a natureza e de toda a cultura”, como escreveu Scubla. Esta “realidade superior” – baseada na alteridade e na ruptura com o mundo quotidiano – pode ser quer a Natureza quer o Cosmos, o Além ou Deus, ou mesmo a sociedade humana (cf. Durkheim).

Por outro lado, si atravessarmos os autores que reflectiram sobre o sagrado (de Durkheim e Otto a Eliade, Caillois, Bastide e Girard), poderemos inventariar e resumir as seguintes características principais ambivalentes et antinómicas (“conjunto de traços de tal modo numerosos e tão diversos, mas geralmente incompatíveis e separados”, como diz Scubla):

sagrado/profano;
transgressão/respeito,reverência;
impuro/puro;
temível, perigoso/fascinante, benfeitor;
interior/exterior (que têm a ver com a delimitação e a separação);
interdito/permitido;
violência/dom (mas sempre reciprocidade – mimética?);
morte/vida;
natureza/cultura;
caos/ordem.

É preciso pôr em evidência que no Homem, não pode haver mistura ou confusão entre esses termos, mas somente no sagrado que denominaremos de divino poderemos encontrar a união desses opostos . As mediações entre polaridades opostas – “coincidentia oppositorum” – constituem uma experiência espiritual sagrada que pode ser feita estaticamente ou dinamicamente – e neste último caso ela será realizada a través da experiência de morte e ressurreição (a qual segundo M. Bloch constitui a estructura mínima de todos os rituais).

O sagrado tradicional é sacrificial em grande medida, pois é a morte real ou simbólica que, segundo R. Girard , sacraliza a vítima emissária, afastando-a, distanciando-a em relação ao mundo quotidiano.

2 – O Sagrado, hoje.
Este modelo do “centro organizador” pode oferecer (mesmo visualemente, como procuraremos demonstrar) uma boa explicação à perda da força do sagrado no mundo moderno.

No sagrado tradicional existe uma sacralização dum “centro organizador” exterior (Deus, Cosmos, Natureza, Sociedade, etc.) o qual, graficamente (ver quadro), será o centre duma circunferência sobre a qual se alinham os “eus” individuais que reverenciam o centro e que estão distanciados sacrificialmente em relação a ele (ver a situação a) do quadro).

No sagrado moderno, verifica-se de um lado, uma diminuição do poder («sagrado») do centro organizador de cada sociedade, quer dizer, da “realidade superior que daria sentido à ordem do mundo… modele reduzido, ou melhor germe, de toda a natureza e de toda a cultura”. Contribuíram para esta situação o avanço das explicações científicas e a perca do poder e do prestígio das instituições religiosas que eram os únicos “centros organizadores” de cada sociedade e, também, o surgimento de vários centres organizadores (religiosos, científicos, políticos, etc.) em concorrência mútua, uns com os outros, como “modelos” et “germes” do sentido do mundo; o Homem passou a ter com uns e outros, pequenas distâncias sacrificiais (ver situação b) do quadro).

Surgiu entretanto, face aos “centros organizadores” religiosos tradicionais e em resultado destes deslocamentos, um novo-“velho” centro organizador que é o eu individual, o qual passou assim da periferia da circunferência para o seu centro, enquanto que esses centros organizadores passavam a gravitar no seu exterior; a distância sacrificial do eu ao “centro organizador” (agora ele próprio) se tornou nula (ver situação c) do quadro).

Deste modo, depois da decomposição do religioso que conduziu a uma diminuição da intensidade do (dos) centro(s) sagrado(s) sacrificiais, veio uma recomposição do religioso (sob outro aspecto) na qual o Homem passou a ser o centro dum novo sagrado (pouco ou não sacrificial)

3 – Conclusão (provisória)

a - Neste trabalho obrigatoriamente curto (devido à compreensíveis exigências do Editor), apresentamos uma proposta de modelo dum sagrado generalizado, baseada no conceito de «centro organizador» (R. Thom), metáfora revista e aplicada por L. Scubla à Antropologia do Simbólico (o seu «objecto total»).

b – Este conceito terá ainda, em nossa opinião, a utilidade de visualizar a evolução da situação do sagrado, desde o grande centro organizador do religioso das civilizações arcaicas (desde as religiões totémicas e naturais até às reveladas), passando pelo enfraquecimento deste devido à competição de outros centros organizadores (ciência, filosofia, política, etc.) até chegar à situação actual na qual – sobretudo no caso das «novas espiritualidades» – o Homem é o centro que organiza em seu redor, sincrèticamente e a través dum “bricollage” identitário, os outros centros, sacralizando e divinizando já não esses centros mas ele próprio, o seu Eu.

4 - Bibliografia

- Bateson, Gregory et Mary Catherine, La peur des anges, Paris: Seuil, 1989
- Bloch, Maurice, La violence du religieux, Paris: Éditions Odile Jacob, 1997
- Douglas Mary, Purity and Danger, Londres: Routldge, 1966
- Durkheim, Émile, Les formes élémentaires de la vie réligieuse, Paris: Le Livre de Poche, 1991
- Eliade, Mircea, Le sacré et le profane, Paris: Gallimard, 1965
- Girard, René, La violence et le sacré, Paris: Grasset, 1972, réed. Hachette, 1998
- Otto, Rudolf, Le sacré, Paris: Payot, 1969
- Rappaport, Roy, Ritual and Religion in the making of mankind, Cambridge: Cambridge University Press, 1999
- Rivière, Claude, Socio-anthropologie des religions, Paris: Armand Colin, 1007
- Scubla, Lucien, Lire Lévi-Strauss, Paris: Éditions Odile Jacob, 1998

(*) Este artigo foi-me solicitado (em francês) pelo Doutor Basarab Nicolescu, para um livro por ele organizado e que será publicado em Dezembro de 2003, nas Éditions du Rocher, em Paris, com o título Le sacrée aujourd’hui (reunindo contribuições de diversos autores).