EU E O PAI SOMOS UM: O ETERNO FEMININO NA NOVA RELIGIOSIDADE
ANTÓNIO DE MACEDO


I — Entreabrir o portal…

Num certo Inverno, em Jerusalém, durante a festa judaica da Reconsagração do Templo, passeava-se Jesus diante do pórtico de Salomão quando os judeus, aproximando-se, lhe perguntaram: «Até quando nos manténs em suspenso? Se és o Cristo (o Messias), diz-nos abertamente». Jesus respondeu-lhes: «Já vos disse, e não me acreditastes».

Este episódio vem relatado no capítulo 10 do Evangelho de João, Ritual de Mistérios Maiores, onde se dá conta do pequeno discurso — mas substancial e iluminante — que Jesus proferiu em continuidade, até que chegou à famosa frase: «Eu e o Pai somos um» (João 10, 30). Os judeus, escandalizados, pegaram em pedras para apedrejá-lo, ao que Ele contrapôs: «Fiz muitas obras boas a vosso favor; por qual delas me apedrejais?» Replicaram eles: «Não te apedrejamos pelas tuas boas obras, mas porque, sendo homem, te fazes Deus». O episódio prossegue com a resposta de Jesus e a conclusão da Sua prédica, mas, para o que nos importa apurar, quedemo-nos por aqui.

Duas notas se salientam: primeiro, o nível iniciático da «instrução» de Jesus não foi apreendido pelos ouvintes, que somente captaram o significado físico, ou literal; e segundo, a frase «Eu e o Pai somos um», central no conjunto da prédica, contém a chave que nos permite entreabrir o Portal da Nova Religiosidade, se soubermos atinar com o Espírito que vivifica o sentido da frase.

II — As três «leituras»

Penetrar no sentido dum texto pressupõe um certo tipo de «interpretação» desse texto, ou, mais simplesmente — um certo tipo de «leitura». Tratando-se neste caso dum texto bíblico, eu diria, duma forma breve e simplificada, que podemos considerar três «leituras» possíveis da Bíblia:

— Laica;
— Teológica;
— Esotérica.

Esta classificação simplificada corre o risco de parecer demasiadamente redutora, por isso me apresso a esclarecer que:

a) Incluo na «leitura laica» toda e qualquer leitura que considere os textos bíblicos apenas pelo seu lado textual-documental — e de preferência partindo dum princípio racional-agnóstico, de que pode servir de exemplo mais óbvio o divertido Dictionnaire Philosophique (1764), do iluminista Voltaire. Essa leitura, duma forma genérica e sobretudo nos tempos mais recentes, serve-se de toda uma aparelhagem de análise e de crítica de textos idêntica à que se pode aplicar a qualquer texto profano, antigo ou moderno, sem levar excessivamente em conta — ou mesmo nada — o lado «espiritual» dos conteúdos;

b) Designo por «leitura teológica» a que se opera na crença de que os textos bíblicos são a «palavra de Deus», e socorre-se de técnicas interpretacionais quer da tradição religiosa judaica (para o Antigo Testamento), quer da tradição das Igrejas cristãs (a Católica romana, as Protestantes e as Ortodoxas, para o Antigo Testamento e o Novo Testamento), sem excluir, mais modernamente, os mesmos instrumentos hermenêuticos, exegéticos, semióticos, etc. da «leitura laica», embora adaptando-os ao pressuposto de um «conteúdo revelacional» de origem divina;

c) Finalmente a «leitura esotérica». Que se poderá entender por uma «leitura esotérica da Bíblia»? Provavelmente haverá mais do que uma, tal como se deduz do facto de haver diversos «esoterismos». No entanto, procurando simplificar mais uma vez, embora correndo o risco duma certa imprecisão, podemos dizer, em primeira aproximação, que uma «leitura esotérica» da Bíblia tem de partir dumas quantas «regras do jogo» — por exemplo, convencionar que o ser humano não esgota a sua totalidade no corpo físico, mas tem uma parte espiritual que é a sua verdadeira essência consciente, eterna, e que subsiste nos mundos invisíveis após a morte; que existe um Deus, ou uma Grande Inteligência Cósmica, com quem o espírito do ser humano pode relacionar-se, harmonizar-se e até identificar-se; que a sucessão dos tempos quer históricos quer iniciáticos é coordenada por um plano geral do Espírito; que a Natureza e a Escritura se correlacionam não só como uma grande rede alegórica, susceptível de hermenêutica, mas também como geradoras de símbolos que tornam «transparente» uma realidade que fica além de qualquer expressão ou comunicação; etc. Por outro lado, admite que o texto examinado não esgota a totalidade dos seus significados numa «leitura literal», mas contém significados «ocultos» (sejam simbólicos ou iniciáticos) que carecem de ser devidamente descodificados.

III — Natural e sobrenatural

Em resumo: o teológico faz apelo ao «sobrenatural», ao passo que o esotérico considera que o chamado «sobrenatural» se inclui no «natural», isto é, o «sobrenatural» não é mais do que uma expressão (infeliz?) das Igrejas para caucionar, exotericamente, o inexplicável em termos físico-racionais. A Suma Teológica (1265-1273) de Tomás de Aquino é a expressão acabada desse mentalismo: no fundo, ao pretender captar Deus nos limites da razão humana, relega para a esfera do «mistério» — no sentido eclesiástico do termo, e não no sentido iniciático, mystêrion, como deveria ser — tudo aquilo que Deus é e decide para além do que à razão humana lhe é possível escrutinar e entender.

Assim, o «pecado original» cometido por Eva e Adão e que se perpetua na sua descendência, o «plano de salvação» decidido por Deus ao longo da história da humanidade, o nascimento virginal de Jesus por obra e graça do Espírito Santo, a identificação de Jesus com Deus, as «Três Pessoas» distintas da Santíssima Trindade em uma só natureza, a ressurreição corporal de Cristo e Sua ascensão corporal ao céu, a «ressurreição dos mortos» no último dia, etc. são processos que correspondem a factos esotericamente explicáveis em termos «naturais» — a matéria é espírito cristalizado! — e não ocorrências «miraculosas» e «sobrenaturais» deliberadas por um Deus caprichoso que transgride, quando assim o entende, as imutáveis leis universais que Ele mesmo criou, com a agravante de não querer que os humanos entendam «certas coisas» com a sã razão que o mesmo Deus lhes deu.

Retornando ao exemplo donde partimos, vejamos aonde nos conduziria a tripla leitura da frase de Cristo Jesus «Eu e o Pai somos um».

IV — Tríplice Deus, tríplice Espírito

1. Leitura laica — Parte do conhecimento crítico de que a língua falada na Palestina e na Síria no tempo de Jesus era o aramaico, língua semítica estreitamente aparentada com o hebraico, o siríaco e o fenício. Língua popular por excelência durante vários séculos, manteve-se durante a ocupação romana porque a potência ocupante não conseguiu, nessa área do Médio Oriente, popularizar o latim, somente falado pelos soldados e funcionários romanos e pelos judeus ligados à corte do Procurador da Roma imperial. Por sua vez o grego, muito espalhado no império, era sobretudo falado e entendido pelas classes cultas, pelos viajantes, pelos homens de negócios e pelos mercadores. Os textos do Novo Testamento — Evangelhos, Actos, Epístolas, Apocalipse — chegaram até nós redigidos em grego; as eventuais versões primitivas, aramaicas — se é que as houve! — perderam-se. Compreende-se a preferência pelo grego, a língua franca da época, tal como o inglês, hoje, na Internet: maior facilidade de divulgação. Ora acontece que os especialistas conseguem detectar, nos textos gregos desse tempo, certas construções idiomáticas típicas do aramaico que lhe estaria subjacente — os chamados «aramaísmos» —, como por exemplo: «Corta a tua mão direita» (Mateus 5, 30), que significa apenas «deixa de roubar»; ou «Permite-me que vá enterrar o meu pai» (Mateus 8, 21), que significa «Deixa-me ir tomar conta do meu velho pai até que morra»; ou ainda «Quem não tiver espada, venda o seu manto e compre uma» (Lucas 22, 36) que significa «Há um perigo iminente». Do mesmo modo, a frase «Eu e o Pai somos um» (João 10, 30) é um vulgar aramaísmo em que apenas se afirma uma concordância de pontos de vista entre duas pessoas, ou seja: Eu e o Pai estamos de acordo. Não se pode deduzir daqui que Jesus se identifica com Deus como Segunda Pessoa da Trindade. Pode muito bem ser apenas um simples humano que concorda e se identifica com as prescrições e os mandamentos divinos.

2. Leitura teológica — Os teólogos, pelo contrário, vêem nesta frase uma clara afirmação da identidade absoluta entre a «substância» do Pai e a «substância» do Filho, ou seja, a confirmação de que Jesus de Nazaré é igual a Deus. Trazem em abono desta interpretação outros passos da Bíblia em que os feitos e os ditos de Jesus se equiparam a actuações que, no Antigo Testamento, são atribuíveis a Jahvé. Por exemplo: Jahvé dá o pão (ou maná) como alimento (Êxodo 16, 8.15; Deuteronómio 8, 3), e Jesus dá o verdadeiro pão da vida (João 6, 11.32-35.51); Jahvé, por intermédio de Moisés, faz brotar água da rocha (Êxodo 17, 6), e Jesus dá a «água viva» que leva à «vida eterna» (João 4, 10-14); Jahvé dá mandamentos (Êxodo 31, 18; 34, 28; Deuteronómio 4, 13; 5, 22; 10, 4), e Jesus dá um «mandamento novo» (João 13, 34); etc. Ou seja: ao conceder dons e dádivas que no Antigo Testamento são exclusivos de Jahvé — pão, água, mandamentos, vida eterna, etc. —, Jesus parece estar a atribuir-se a mesma condição divina do próprio Deus.

3. Leitura esotérica — Toma em consideração duas vertentes: uma externa e outra interna. Do ponto de vista externo leva em conta as eventuais deturpações que os textos escriturísticos sofreram nas sucessivas cópias que chegaram até nós, e não desdenha os estudos que têm sido feitos com o fim de descortinar o texto-base anterior às alterações introduzidas; do ponto de vista interno articula os conteúdos doutros passos da Escritura com o conhecimento e a sabedoria (Gnôsis e Sophia) transmitidos pela tradição iniciática e pelas correntes esotéricas do Ocidente heleno-judaico-cristão. Segundo esta perspectiva, se conjugarmos a frase «Eu e o Pai somos um» com um outro dito de Jesus no mesmo Evangelho de João, mas desta vez no Sermão da Ceia, onde Jesus afirma: «O Pai é maior do que eu» (João 14, 28), constatamos que ambas as frases, longe de se contradizerem, se esclarecem mutuamente à luz duma leitura esotérica, não-sobrenatural. A última afirmação, feita para Iniciados, assevera a inequívoca diferença entre Jesus e Deus, mas, ao mesmo tempo, ao conjugar-se com a frase anterior da real identidade ou melhor, unuidade, de Cristo e do Pai, alumia-nos com a seguinte «leitura»: Jesus, não sendo idêntico a Deus-Pai, mas conhecendo-O por contacto directo pela infusão Crística que recebeu no Baptismo (Cristo-Jesus tornou-se o único ser com um leque de veículos físico-anímico-espirituais que vão desde o mundo material até ao Mundo de Deus), tem autoridade e conhecimento para afirmar que «o Eu» — o Eu Superior, o eterno Espírito de todo o ser humano — é «uno com o Pai», ou seja, idêntico à essência divina: o tríplice Espírito dos seres humanos, que é uma criação perfeita, é uma réplica do tríplice aspecto da Divindade: Pai, Filho e Espírito Santo. O que é confirmado por Paulo, o Iniciado: «Não sabeis que sois templo de Deus, e o Espírito de Deus habita em vós?» (1 Coríntios 3, 16).

V — Corrupções «ortodoxas» da Escritura

Esclareça-se que esta tradição esotérica não é tão fantasiosa como pode parecer à primeira vista. É um facto bem conhecido dos especialistas modernos, conhecedores da enorme quantidade de documentos escriturísticos existentes, desde os mais antigos papiros manuscritos até à profusão de cópias e versões em diferentes linguas antigas, que a Escritura — e, neste caso concreto, o Novo Testamento — sofreu adulterações e corrupções introduzidas pelos copistas duma certa facção das comunidades jesuânicas para se conformar à Cristologia do que se convencionou chamar a «ortodoxia» que finalmente deu origem à Igreja de Roma. A maior parte das passagens do Novo Testamento em que parece afirmar-se que Jesus de Nazaré é Deus, foi obra de «ajeitamentos teológicos», tal como as passagens que de início inequivocamente explicitavam que Jesus, nascido naturalmente de José e de Maria, só se tornou «especial» no momento do Baptismo.

Esta última distinção é importante. Há provas documentais, desde muito cedo, de que certas comunidades cristãs do primeiro e do segundo séculos sabiam que Jesus não se identificava com Deus (por exemplo, Theodotus, os Ebionitas, Cerinthus, etc.), mas que o Espírito Divino — o Espírito Santo — o havia infundido no momento do Baptismo com uma qualidade elevadíssima que o tornou «Filho de Deus», «Salvador do Mundo», em suma: «Cristo». Em contrapartida, as comunidades pré-ortodoxas e ortodoxas defenderam por razões mais políticas e de força, que religiosas, que Jesus sempre foi «Deus» desde o Seu nascimento, e até antes, procedendo os seus copistas às alterações apropriadas dos textos para fazerem vingar essa Cristologia. (Anote-se que uso aqui o termo «ortodoxia» não no sentido de rectidão de conteúdos, mas no de dominância da facção que «venceu» as polémicas dos três primeiro séculos e se tornou na Igreja de Roma).

Vejamos o seguinte exemplo flagrante. O texto do Evangelho de Lucas, na versão oficial da Igreja, refere o Baptismo de Jesus do seguinte modo: após ter sido Jesus baptizado no Jordão, por João o Baptista, e estando em oração, abriu-se o céu e desceu o Espírito Santo sob a forma duma pomba e ouviu-se uma voz do céu: «Tu és o meu filho amado; em ti me agradei» (segundo o texto da Vulgata Latina oficializado pelo Concílio de Trento: «Tu es filius meus dilectus, in te complacui mihi» — Lucas 3, 22). Os especialistas laicos, porém, estudando as variantes do texto grego que chegaram até nós, concluíram que a versão primitiva, original, seria: «Tu és meu filho, hoje te dei à luz [gr. sêmeron gegennêka se]». Ou seja, a versão oficial, adulterada, escamoteia que Jesus se tornou «Filho de Deus» apenas no momento do Baptismo, e por conseguinte não havia nascido «divino». O tempo verbal gegennêka é o perfeito do verbo gennaô, gerar, parir, dar a luz, e aquela frase remete para o Salmo 2, que contém a fórmula consagratória com que os reis de Israel eram «ungidos» por Jahvé: «Ungi o meu rei na montanha sagrada de Sião […] Tu és meu filho, hoje te engendrei» (Salmo 2, 6-7). O «ungido» era dito em hebraico mashiah (transliterado Messias), e traduz-se em grego pelo adjectivo christos (do verbo chriô, ungir).

Portanto, na versão original, Jesus só se tornou «Cristo» quando, no Baptismo, recebeu a infusão do divino Espírito Santo. O que é confirmado em outros lugares do Novo Testamento, que também sofreram alguns «retoques»: um deles é o trecho no qual se refere «como, depois do baptismo que João pregou, Deus ungiu [gr. echrisen] Jesus de Nazaré com Espírito Santo e poder» (Actos 10, 37-38), o que Lhe permitiu espalhar o bem, fazer curas e expulsar demónios. A forma echrisen é o tempo aoristo do mesmo verbo chriô, ungir, que deu origem a christos, como vimos atrás.

Já agora vejamos mais um outro caso, em dois passos paralelos de Marcos e Mateus que têm causado engulhos à ortodoxia dogmática. O Evangelho de Mateus, durante o Cristianismo primitivo, teve uma divulgação muitíssimo maior que o de Marcos, uma vez que este era acentuadamente iniciático e de circulação mais restrita. Não surpreende portanto que os escribas pré-ortodoxos e ortodoxos se tivessem empenhado em «corrigir» o de Mateus, mais do que o de Marcos, nas passagens onde os «hereges» pudessem ir buscar argumentos para apoiar a ideia de que Jesus de Nazaré não era Deus. A propósito do «fim dos tempos», lemos em Mateus: «Quanto àquele dia e hora ninguém sabe, nem os anjos dos céus, nem o Filho [gr. oude o Uios], mas apenas o Pai» (Mateus 24, 36). Ora, se o próprio Filho não sabe, é porque não é divino nem está dentro dos segredos do Pai… A expressão nem o Filho [gr. oude ‘o ‘Uios] acha-se suprimida em muitos dos manuscritos existentes, sobretudo os da tradição bizantina, e foi essa versão «expurgada» que Jerónimo utilizou para a sua tradução em latim (Vulgata Latina), texto oficial da Igreja católica: «De die autem ille et hora nemo scit, neque angeli caelorum, nisi solus Pater». Pelas razões apontadas o passo paralelo de Marcos (13, 32), praticamente idêntico, não foi tão expurgado pelos copistas ortodoxos — Marcos foi de longe o Evangelho menos copiado e divulgado, logo menos susceptível de causar «danos» —, e Jerónimo traduziu o versículo tal e qual, incluindo a expressão melindrosa «neque Filius» («nem o Filho»), que os teólogos mainstream reinterpretam de forma curiosa, para não dizer sofística: «Jesus, enquanto homem, sabia tudo o que era necessário para realizar a Sua missão messiânica; isso não inclui, porém, que conhecesse todos os planos de Deus» (Frei Alcindo Costa, formado pelo Instituto Bíblico de Roma, em nota ao Novo Testamento, Difusora Bíblica, p. 51 n.).

Com efeito, já as primitivas comunidades iniciáticas cristãs tinham realçado o facto de que Jesus só começou a fazer «milagres» depois do Baptismo, ou seja, a partir do momento em que foi infundido pelo Espírito Santo e se tornou «Cristo-Jesus».

VI — Em Água e em Espírito

Esta infusão do Espírito Santo é fulcral para se compreender como o Baptismo «em Espírito Santo», indispensável para além do simples Baptismo em Água, é determinante na Nova Religiosidade, que se distingue sobretudo — ainda que não só — por duas características fundamentais: uma espiritualidade individual positiva, que contacta imediatamente o Divino prescindindo dos «funcionários de Deus» como intermediários institucionalizados, e o papel transcendental da Eterna Complementaridade Feminina da Divindade. O carácter unitivo dos dois Baptismos (Água e Espírito, ou Água e Fogo: o Espírito Santo revelou-se como línguas de Fogo no Pentecostes: Actos 2, 3-4), é atestado em alguns passos do Novo Testamento. Por exemplo, João o Baptista diz aos seus seguidores: «Eu baptizo-vos em Água, para o arrependimento [gr. metanoia, mudança de mente]; aquele que há-de vir depois de mim […] baptizar-vos-á em Espírito Santo e em Fogo» (Mateus 3, 11). Jesus confirma-o por outras palavras, nas «instruções iniciáticas» que, uma noite e em segredo, transmitiu ao candidato aos Novos Mistérios Cristãos, o velho Nicodemos. Entre essas «instruções» destaca-se a seguinte: «Em verdade, em verdade te digo, quem não nascer de Água e de Espírito não pode entrar no Reino de Deus» (João 3, 5).

A Água e o Espírito [Santo] associam-se assim num dos simbolismos do pólo Feminino da Divindade.

VII — A Tripla Deusa: tradição helénica

Duas tradições concorrem para a instauração e aceitação da dupla polaridade masculina/feminina do Ser Supremo: a helénica e a judaica, devedoras por sua vez das influências babilónica e egípcia. Esta última, desde os mais remotos testemunhos papiráceos que nos chegaram, refere a existência duma Tripla Deusa complementar do grande deus Nu, o deus do céu, o fecundador, o aspersor das águas celestes.

Essa Tripla Deusa é a manifestação do triplo aspecto feminino: Neith, virgem caçadora e tecedeira, como mais tarde Ártemis (virgem caçadora) e Atena (virgem guerreira e tecedeira) entre os Gregos; Nut, o princípio feminino de Nu, a massa aquosa donde se formaram os deuses e ao mesmo tempo a deusa dos céus por onde veleja o barco do deus-Sol; e finalmente Ísis, esposa e mãe. Este triplo princípio feminino, Neith/Nut/Ísis, consolidou-se nas tradições do Médio Oriente desde tempos imemoriais até ser destronado pelo patriarcalismo tardio de Amon-Râ, Zeus-Dyews e Jahvé.

 

O ramo helénico e o ramo judaico «resolveram» de modos diferentes o problema da recuperação da divinal polaridade feminina após a «masculinização dos céus».

O panteão feminino grego absorveu, sobretudo a partir da Frígia, da Síria e da Babilónia, o lado simultaneamente «terreno» e «lunar/aquoso» da «Grande Deusa Mãe» e da «divina Virgem». Hesíodo, na sua Teogonia, associa a Tripla Deusa às três gerações de deuses: Gaia (com Ouranos) deu origem à primeira geração de deuses; Nyx (com Erebos) deu origem à segunda geração de deuses; Tethys (com Okeanos) deu origem à terceira geração de deuses. Por fim esse «triplo Eterno Feminino» conglobou-se, nos Mistérios, em deusas como Cibele, cujo nome se associa à Montanha Sagrada (a que estabelece a ligação da terra e do céu), Deméter, a deusa maternal da terra, dos cereais e das colheitas, ou ainda da sua filha Perséfone, a jovem deusa renovadamente virgem que faz irromper a luxuriante vegetação e passa seis meses de cada ano (durante a estação invernosa) no mundo subterrâneo do Hades.

É um culto acentuadamente ctónico (do gr. chthôn, chthônos, terra, solo, região) com efeitos práticos no mundo visível, desde oráculos a curas, em que a feminina Água, associada à feminina Terra, também desempenha o seu papel. Assim, no santuário de Delfos, a Pítia e os sacerdotes que a assessoravam banhavam-se primeiro na Fonte Castália, em seguida ela bebia água da Fonte Sagrada de Cassotis e só depois entrava no templo. Um vez lá dentro descia a uma cela na cave (o elemento ctónico: o mergulhar no seio da Terra-Mãe), sentava-se numa trípode e mascava folhas de loureiro. Os sacerdotes então interpretavam as suas palavras, em geral ininteligíveis, como uma mensagem divina. Acreditava-se que estes oráculos detinham «poderes ctónicos», ou seja, poderes que emanavam das próprias energias telúricas. No templo de Asclépio, em Epidauro, os doentes adormeciam em contacto com a terra, a fim de serem curados durante os sonhos, e no santuário de Trofónio, em Lebadeia, os consulentes adormeciam num buraco escavado no chão para obterem respostas às suas perguntas ou alívio aos seus males.

VIII — A Tripla Deusa: tradição judaica

Portanto, a tripla polaridade feminina da divindade, no ramo helénico e áreas afins, mediterrânicas, onde abundam nascentes e fontes, correlaciona-se com a Terra e com o elemento Água; por sua vez no ramo judaico, cuja história se processou nas cálidas e secas regiões do Médio Oriente — e povos limítrofes —, o pólo feminino da divindade tende a correlacionar-se com o Céu e com o elemento Ar.

1. Ruah — A primeira manifestação da divina polaridade feminina, judaica, está nas implicaçãoes envolvidas na própria palavra «espírito» que em hebraico, ruah, é do género feminino. Ruah também se pode traduzir por sopro, vento (elemento Ar), e a primeira vez que aparece na Bíblia hebraica é logo no princípio:

«Ve ruah-Elohim merahephet al pnei-hamaim» (Génesis 1, 2).

Ru’ah-Elohim pode traduzir-se por «Espírito de Deus» (ou dos Elohim) ou por «Sopro de Deus» (ou dos Elohim); a tradução corrente deste versículo costuma ser: «E o Espírito de Deus planava sobre as águas» («Et Spiritus Dei ferebatur super acquas», segundo a Vulgata Latina), mas também se pode traduzir: «E o vento dos Elohim deslizava (ou: agitava-se) sobre a face das águas».

Vento ou espírito, o elemento Ar e o género feminino estão indissoluvelmente ligados à Divindade da tradição hebraica no seu aspecto ru’ah. Essa vertente especificamente divina é acentuada na expressão compósita Ru’ah ha-Kodesh, «o Espírito Santo», como vemos por exemplo em Isaías: «Mas revoltaram-se, ofenderam o Espírito Santo [hebr. Ru’ah ha-Kodesh] [de Jahvé]; desde então tornou-se inimigo deles e fez-lhes guerra» (Isaías 63, 10). É o feminino Espírito de inspiração e profecia, como lemos num tratado talmúdico: «Quando os últimos dos profetas, Ageu, Zacarias e Malaquias morreram, o Espírito Santo [hebr. Ru’ah ha-Kodesh] ausentou-se de Israel» (Yoma 9b). Embora o rígido monoteísmo judaico sempre visse com desconfiança — e mesmo rejeitasse — a acepção da Ru’ah ha-Kodesh como uma «hipóstase» ou uma entidade separada de Deus, essa tendência individuante porém, na literatura talmúdica e rabínica, pós-bíblica, manifestou-se em vários tratados, como por exemplo quando a Ru’ah ha-Kodesh se exprime por palavras (Pesahim 117a), ou actua como conselheira de defesa em nome de Israel (Leviticus Rabbah 6, 1), ou ainda quando abandona Israel para regressar a Deus (Ecclesiastes Rabbah 12, 7).

Já agora esclareça-se, parenteticamente, que em teoria das religiões o termo «hipóstase» designa a personificação duma propriedade ou dum aspecto da Divindade suprema; em Teologia cristã a «hipóstase» é a «pessoa» por oposição à «essência», por isso se diz que Deus tem três hipóstases distintas (Pai, Filho e Espírito Santo) e uma só Natureza; em Teologia judaica o termo «hipóstase» designa a individuação das propriedades e formas operativas de Jahvé, de modo que o Deus inacessível possa manifestar-se aos humanos duma forma sensível, enquanto Ele permanece invisível e inalcançável nos céus.

2. Shekhinah — Essa manifestação do inacessível em forma sensível é a Shekhinah, a segunda polaridade feminina de Deus, a que estabelece a ligação entre o puro mundo Espiritual-Divinal e o mundo material, sendo portanto a que mais directamente se manifesta aos humanos. Esta palavra vem duma raiz hebraica que significa «habitar», «permanecer», «estar presente», portanto a Shekhinah é o que a literatura rabínica designa por «imanência numinosa» de Deus no mundo, ou seja, é a «Divina Presença» em termos espácio-temporais. Por exemplo, quando Moisés diz aos Israelitas «Jahvé vosso Deus é o único atrás de quem deveis caminhar» (Deuteronómio 13, 5), lemos o seguinte comentário num tratado talmúdico: «Como é possível para um homem caminhar atrás da Shekhinah? […] Antes se deve entender que devemos seguir [imitar] as virtudes do Santíssimo, abençoado seja» (Sotah 14a), ou ainda: «Não podeis ver a minha face, disse Jahvé, porque nenhum humano me pode ver e sobreviver» (Êxodo 33, 20), que o Targum aramaico interpreta do seguinte modo: «Não podeis ver a face da minha Shekhinah…». Esta «presença» irradiante assimila-se à luz, como se fosse um ser de luz criado por Deus. Por isso se diz que quando os profetas tinham a visão de Deus, na realidade o que viam não era Deus, mas a sua Shekhinah.

Num certo número de tratados talmúdicos (por exemplo Pesahim, Shabbat, Sukkah, Sotah, Sanhedrin, etc.) as duas entidades femininas Ruah ha-Kodesh e Shekhinah, apesar de conceptualmente distintas, são frequentemente tomadas como sinónimos. No primeiro tratado cabalístico conhecido, o Sepher ha-Bahir [«Livro do Resplendor»], da segunda metade do século XII mas incorporando materiais místicos e ocultos muito mais antigos, o seu anónimo autor classifica pela primeira vez as «10 emanações divinas», que a Cabala judaica deu depois a conhecer, amplamente, sob o nome de Sephiroth. No Sepher ha-Bahir a Shekhinah identifica-se com a última Sephirah, a décima, Malkhuth, «o Reino» ou «a Realeza», e é descrita como a «Filha», ou a «Princesa», o divino princípio feminino no mundo. Certos cabalistas consideram que as quatro letras do tetragrama sagrado, YHVH (yod-he-vau-he), têm as seguintes conotações:

Yod - corresponde ao Pai
He - corresponde à Mãe
Vau - corresponde ao Filho
He - corresponde à Filha.

Ou seja, a letra he, nas suas duas posições no tetragrama sagrado, reúne em si o duplo aspecto Maternal/Filial (ou Maternal/Virginal) do Princípio Feminino da Divindade, o mesmo que na tradição grega era representado pela Deusa Mãe Deméter e por sua Filha Perséfone.

3. Hochmah — Finalmente, o terceiro aspecto feminino da Divindade é Hochmah, «Sabedoria», também considerada um reflexo da Luz Eterna. A Hochmah é uma entidade de primordial importância no pensamento teológico e filosófico judaico, e, no Livro dos Provérbios, onde intervém não poucas vezes, é apresentada como a primeira das criações de Jahvé, e a Sua favorita (Provérbios 8, 22). Todo o capítulo 28 do Livro de Job é um «Hino de Louvor à Sabedoria», considerada superior ao ouro, ao coral, às mais finas pérolas. Na Cabala judaica, pertence ao Triângulo Superior da Árvore Sefirótica (Suprema Transcendência da Divindade); é inseparável de Deus mas actua no mundo quase como uma personalidade distinta, prefigurando, de certo modo, o conceito neotestamentário da relação entre o «Filho» (Cristo-Jesus) e o «Pai».

IX — A Tripla Deusa: tradição cristã

A saudosa Natália Correia, com a exuberância que lhe era peculiar, e como boa açoriana e simultaneamente sacerdotisa do ancestral-renovado culto feminino, não poucas vezes dissertou — pelo menos no «Botequim», tanto quanto me recordo, e lhe ouvi —, sobre a transcendência Paraclética do Espírito de Verdade de Deus, que ela insistia em designar por Espírita Santa!

Está certo: a Espírita Santa é a POMBA — que em hebraico se diz yonah e que a tradição hermética, fazendo tábua rasa das rigorosas pesquisas etimológico-científicas da Linguística, considera relacionada com a yin chinesa (princípio feminino, complementar do princípio masculino yang) e a yoni indiana (orgão sexual feminino, complementar do órgão sexual masculino linga). Trata-se duma «Cabala fonética» de que Fulcanelli foi um dos principais impulsionadores, e que, não obstante a sua rejeição por parte da linguística histórica, revela e torna «transparentes» os mais subtis e inesperados aspectos do REAL.

Vimos como a tradição helénica associava o pólo feminino da Divindade à Terra e ao elemento Água, e como a tradição judaica associava o pólo feminino da Divindade ao Céu e ao elemento Ar.

Por sua vez a tradição cristã, epítome e sequência das duas, congloba no pólo feminino da Divindade os elementos Ar e Água, juntamente com o Céu e a Terra, do seguinte modo:

Pomba — Espírito Santo/Inspiração Paraclética: Ar (Mente Superior), e Céu;

Virgem-Mãe — Associação complementar e indissolúvel entre o Pai Celestial e a Mãe Terrenal: Céu, e Terra;

SophiaÁgua (Coração, Desejos Sublimados), e Terra.

1. Pomba — O primeiro aspecto — POMBA — surge pela primeira vez, no Novo Testamento, no exacto momento do Baptismo de Jesus, e simboliza o divino Espírito Santo, que João designa por «Paracleto». O simbolismo da pomba associado ao princípio feminino da Divindade já vem de longe, e perdurou: tanto o encontramos na antiga Mesopotâmia e na Ásia Menor, em que o Princípio Feminino visível e invisível, substância e essência, era reverenciado nos templos sob a forma duma pomba, tal como continua a figurar, muito mais tarde, como por exemplo num tratado gnóstico do século III d. C., Pistis Sophia, onde vemos logo nas primeiras linhas do capítulo 1 que «o Mistério anterior a todos os Mistérios é o Pai sob a forma duma Pomba». Lemos no capítulo 8 do Génesis como Noé enviou um corvo (símbolo da negra natureza de desejos) e uma pomba (símbolo do luminoso «corpo anímico») para saber se as terras já tinham secado após o dilúvio. O corvo limitou-se a voar para cá e para lá até que as águas secaram, mas a pomba, à segunda tentativa, trouxe um raminho de oliveira (Génesis 8, 6-11). A oliveira, de tradição sagrada muito antiga — a oliveira e o azeite, atributos da deusa Atena, foram as suas dádivas sagradas à Ática —, associa-se ao ministério de Cristo e ao bálsamo da cura pelo espírito. Um dos motivos decorativos das colunas da catedral de S. Pedro, em Roma, é uma pomba com um raminho de oliveira: — o Espírito Santo com uma oferta de regeneração e cura. Este Espírito — ru’ah —, manifestação do pólo feminino da Divindade, conduz-nos ao segundo aspecto aludido acima:

2. Virgem/Mãe — Esse segundo aspecto — VIRGEM/MÃE —, recuperado desde muito cedo pela Igreja na sua Teologia Mariânica, é uma tónica recorrente num curioso manuscrito que o estudioso Edmond Bordeaux Székely diz ter encontrado nos Arquivos secretos do Vaticano e que traduziu do original aramaico para francês (1928). A respectiva edição policopiada deu origem à versão inglesa que foi publicada em 1937, em Londres, com o título The Essene Gospel of Peace. A ideia de Virgem/Mãe surge nesse apócrifo naturalmente associada à Terra, alternadamente Virgem e Mãe, e embora o texto — que é um longo discurso de Jesus em resposta a algumas questões que lhe são apresentadas pelo discípulos — não deixe de se referir, com frequência, ao «Heavenly Father» (Pai Celestial), insiste muito mais na reverência, amor, fidelidade e veneração que se deve à «Earthly Mother» (Mãe Terrenal), que nos doou amorosamente tudo de quanto o nosso corpo é feito e tudo o que possui. Em dado passo diz Jesus:

«O vosso Pai Celestial é amor.
A vossa Mãe Terrenal é amor.
O Filho do Homem é amor.

É pelo amor que o Pai Celestial e a Mãe Terrenal e o Filho do Homem se tornam um. Porque o espírito do Filho do Homem foi criado do espírito do Pai Celestial, e o seu corpo, do corpo da Mãe Terrenal.Tornai-vos, pois, perfeitos, como são perfeitos o espírito do vosso Pai Celestial e o corpo da vossa Mãe Terrenal».

Registe-se a relevância atribuída ao AMOR que «torna UM» não só o Pai e o Filho («Eu e o Pai somos um»!) mas também a Mãe.

Não é só neste Evangelho essénio que o pólo feminino da Divindade se identifica com a Mãe, incluso a própria Mãe mistérica de Jesus: outros manuscritos antigos também o atestam. Por exemplo, há um curioso indício transmitido pelo Evangelho dito dos Hebreus, usado por algumas comunidades iniciáticas cristãs como os Nazarenos e os Ebionitas, e do qual só restam fragmentos que nos foram conservados em citações feitas pelos Padres da Igreja. Supõe-se que tenha tido a sua origem nos princípios do século II d. C. Segundo o testemunho de Jerónimo (Dial. adversus pelagianos, III, 2) teria sido originalmente escrito em aramaico, e nele se afirma que o Espírito Santo, além de ser feminino — ru’ah em hebraico é feminino —, é, ainda por cima, a Mãe de Jesus!

«Há pouco a minha mãe, o Espírito Santo [gr. ‘agion pneuma] tomou-me por um dos cabelos e levou-me ao monte sublime do Tabor…» (É um paralelo de Mateus 4, 1 e vem citado no Comentário ao Evangelho de João, de Orígenes: In Io. 2, 6).

Ou, noutra versão, que nos foi transmitida por Jerónimo no seu II Comentário sobre Miquéias (Comm. II in Mich. 7, 6):

«Há pouco tomou-me a minha mãe, o Espírito Santo [lat. Sanctus Spiritus], por um dos meus cabelos…».

Jerónimo surpreende-se, pois a ser assim, «a alma, que é esposa do Verbo, tem por sogra o Espírito Santo»! («Et animam, quae sponsa sermonis est, habere socrum Sanctum Spiritum, qui apud Hebraeos genere dicitur feminino, ruah» — id., ibid.).

No Evangelho da Paz dos Essénios esta ruah corresponde ao Espírito da Terra, perfeita e imaculada por todo o Amor que tem para doar.

No final do Livro Primeiro de The Essene Gospel of Peace, Jesus ensina duas orações: uma, muito semelhante ao «Pai Nosso» que conhecemos, em veneração ao Pai Celestial; e outra em veneração à Mãe Terrenal e que é a seguinte:

«Mãe nossa que estás na Terra, santificado seja o teu nome. Venha a nós o teu reino e faça-se em nós a tua vontade, tal como em ti se faz. Tal como envias os teus anjos diariamente, envia-no-los a nós também. Perdoa os nossos pecados, tal como expiamos os pecados que cometemos contra ti. Não nos deixes cair na doença, mas liberta-nos de todo o mal, porque teus são a Terra, o corpo e a saúde. Amen».

Eis-nos perante o mistério do Eterno Feminino corporizado na Terra Lucida, a Terra de Luz que um dia o ser humano reconstruirá (redescobrirá), redimido em Cristo, mediante o vínculo de fé na sagrada e irresistível união do Cristo e da Sophia.

Daqui passamos naturalmente ao terceiro aspecto referido acima:

3. Sophia — O terceiro aspecto do pólo feminino da Divindade na tradição mistérica cristã — SOPHIA — surge não só na continuidade do Antigo Testamento, sobretudo no Livro dos Provérbios e no Livro de Job, como vimos acima a propósito da Hochmah («Sabedoria»), mas também num livro veterotestamentário que a tradição judaica considera apócrifo e que a tradição da Igreja aceitou como «deuterocanónico», redigido em grego cerca do ano 50 a. C.: o Livro da Sabedoria. Neste livro a Sabedoria personificada (Sophia) é tida como o agente da actividade divina no mundo, participando de certo modo da própria natureza divina. O livro foi composto como se o seu autor tivesse sido Salomão, que em dado paso diz:

«Rezei, e o entendimento foi-me dado; supliquei, e o Espírito da Sabedoria veio até mim. […] Amei-a mais do que à saúde ou à beleza, preferi-a à própria luz, porque o seu resplendor nunca fenece. Em sua companhia todos os bens vieram até mim, e as suas mãos trouxeram-me incalculáveis riquezas.De todas estas coisas me alegrei, porque foi a Sabedoria que as trouxe; mas eu ignorava ainda que ela fosse sua Mãe» (Sabedoria 7, 7.10-12).

No tratado gnóstico a que fiz referência acima, Pistis Sophia, e que se supõe ter sido composto no século III d. C., Jesus ressuscitado faz revelações aos Seus discípulos sobre a queda e a redenção duma das emanações da Divindade, a Sophia (ou Pistis Sophia : «Fé-Sabedoria»). Aqui a principal preocupação é saber quem finalmente será salvo. Os que se salvarem devem renunciar ao mundo e seguir a ética pura do amor e da compaixão, a fim de se identificarem com Jesus e se transformarem em raios da Luz Divina.

No Judaísmo — sobretudo intertestamentário — abundaram especulações filosófico-teológicas sobre a Sabedoria celestial (Hochmah, Sophia) uma entidade celeste ao lado de Deus que se apresenta à humanidade não só como mediadora da obra de criação mas também como mediadora do conhecimento de Deus. Ireneu Lugdunense, ou de Lião, apologeta e feroz anti-herético que floresceu na segunda metade do século II, resume o ponto de vista duma seita gnóstica do seu tempo observando que o homem-Jesus, nascido duma Virgem e o mais sábio, mais puro e mais justo de todos os seres humanos, foi escolhido para que, no momento do Baptismo, nele descesse o Espírito Crístico (o Cristo, o Ungido) acompanhado pela Sophia («Sabedoria»), dando origem a Jesus-Cristo que a partir desse momento passou a fazer milagres, a curar, etc. (Adversus Haereses, I, 30, 12-13).

No Novo Testamento, essa «Sabedoria de Deus» (Theoû Sophia) é-nos apresentada por Paulo do seguinte modo: «Sabedoria [gr. Sophia], com efeito, falamos entre os iniciados [gr. teleiois]; não a sabedoria deste ciclo [gr. aiôn] nem dos príncipes deste ciclo condenados a perecer. Mas falamos antes da Sabedoria de Deus em mistério [gr. Theoû Sophia en mystêriô], a oculta, que Deus predestinou antes dos ciclos para glória nossa» (1 Coríntios 2, 6-7). A associação do princípio feminino — Sophia — ao Mistério da Iniciação é aqui acentuado por Paulo: quando ele usa o termo «mistério» não o faz no sentido eclesiástico e distanciador que a Igreja cunhou mais tarde, como por exemplo o «mistério» da Transubstanciação, mas no sentido de «mistérios iniciáticos» como era corrente no tempo de Paulo.

Por fim, a própria Igreja de Roma acabou por identificar a Virgem Maria, «Mãe de Deus», com a figura da Divina Sabedoria (Sophia), e, tal como na Cristologia mainstream se descreve Jesus como uma «hipóstase» do Pai (um ente da mesma substância), também na Teologia mariológica acabou por prevalecer o conceito de que Maria tem a Sophia como sua «hipóstase».

X — O pólo feminino da nova religiosidade


A partir do momento em que Cristo nos ensinou que o Eu-Superior o eterno Espírito de todo o ser humano — é uno com o Pai, ou seja, idêntico à essência divina («Eu e o Pai somos um» — João 10, 30) abriu várias portas das quais destaco duas, para finalizar:

a) É possível a comunicação directa — ou melhor, comunhão — do Espírito de cada homem e de cada mulher com o Grande Espírito de Deus, de cuja Luz somos centelhas, e, por conseguinte, com O QUAL somos UM, tornando-se pois desnecessários quaisquer agentes intermédios (sacerdotes, liturgias fechadas) que concorram para promover essa comunhão;

b) A bipolaridade masculino/feminino é um fenómeno terrenal e transitório porque EM CRISTO todos somo UM com o Pai, ou Grande Espírito Universal, e portanto a Grande Deusa Virgem-Mãe está também em nós, naturalmente, além do Pai — seja ela designada por Ísis, Deméter, Shekhinah ou Sophia… O que nos é confirmado pelo Iniciado Paulo: «Porque todos sois filhos de Deus, em Cristo Jesus, por meio da fé. Pois quantos fostes baptizados em [nome de] Cristo, de Cristo fostes revestidos. Já não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há macho nem fêmea: pois todos vós sois UM em Cristo Jesus» (Gálatas 3, 26-28).

Vemos assim como diversas correntes — sírio-babilónica, egípcia, judaica, helénica, cristã… —, prolongando-se pelos esoterismos medievais, renascentistas e contemporâneos, confluem para desaguar na neo-religiosidade actual, cujo realce do Eterno Feminino não é uma novidade nem um arranque dos «movimentos de libertação» da mulher dos séculos XIX e XX, mas um ponto de chegada e uma súmula do que os nossos ancestrais já sabiam, e que o racionalismo patriarcante dos séculos intermédios obnubilou temporariamente.

A Nova Espiritualidade que emergiu mais visivelmente a partir sobretudo do Romantismo — talvez como insurreição-resposta ao racionalismo Iluminista dos séculos XVII e XVIII — diversificou-se por vários tipos de movimentos, nos quais é possível detectar alguns elementos comuns, apesar da sua diversificação: druidismos recuperados a partir do século XVIII, ocultismos dos séculos XIX e XX, paganismos odínicos, seitas pentecostais, religiosidade da «New Age», neopaganismo…. Alguns desses pontos comuns são, por exemplo, a indiferença perante as religiões institucionalizadas e os seus «funcionários», as liturgias abertas (praticadas em locais que vão desde garagens a bosques), o experimentalismo místico directo, além de um duplo sentido holístico (Cosmos/Ser Humano, mulher/homem) que recorre com frequência à expressão hermética «matrimónio alquímico», ou «bodas químicas», seja entre as polaridades masculina e feminina, seja entre o Espírito e a Alma, seja entre a Cosmogénese e a Antropogénese.

Mais modernamente assiste-se a uma transição entre as ideias um tanto vagas da «New Age» para as práticas e os rituais concretos do neopaganismo, como por exemplo na Wicca [do gaélico Wicca Craeft = Witchcraft = Feitiçaria], que podemos rotular como um paganismo mais «vanguardista» e de bases mais latas, cujas preocupações ecológicas (já presentes na «New Age») se traduzem numa «batalha pela Terra» em que os valores femininos se corporizam na figura duma Grande Deusa e na Santidade da Terra, devidamente acompanhadas por um Deus-Natureza de masculinidade imaculada.

Portanto, levando à conclusão lógica a simbiose perfeita que nos é revelada pela frase «Eu e o Pai somos um», as nossas mais sagradas invocações, mediadas por nosso Cristo Interno, deverão naturalmente abranger, em paralelo, não só o Pai do Céu, mas igualmente, como nos ensinam os rituais de um recente Manual de Magia, a Grande Mãe, Senhora da Arte, e a Grande Mãe, Senhora da Luz!

CHORUS MYSTICUS:

Tudo o que morre e passa
É símbolo somente;
O que se não atinge,
Aqui temos presente;
O mesmo indescritível
Se realiza aqui;
O feminino eterno
Atrai-nos para si.

(Goethe, Fausto)

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