Cinco de Outubro

JOSÉ PASCOAL


DESMENTIDO

 

Quero ter os pés no chão,

A cabeça no lugar,

O calor da tua mão,

Uma vista para o mar,

Sem qualquer ilusão.


IDA E VOLTA

 

Desces as escadas usadas

Pelos bombeiros em caso

De acidente, má doença,

Fogo, fuga de felino,

E voltarás a subir

Ao sol posto no telhado

Com cinco chagas no rosto.


PEREGRINO CEGO

 

Um homem segue o seu caminho

Sem entender o que se passa

Nos campos grandes,

Nas boas vistas,

Onde a memória decresce

No senso inverso dos cartazes

E das roseiras desnudadas.


SABER PERDER

 

Perdi peso,

Perdi altura,

Perdi as chaves do reino,

Perdi o cheiro dos jardins,

Perdi o sabor das cerejas,

Perdi amigos de longa data,

Perdi amigos de Peniche,

Perdi o terceiro botão do casaco preto,

Perdi a vontade que nunca tive,

Perdi o sono numa oficina de reparações,

Perdi o espectáculo das marés vivas,

Perdi o meu isqueiro de bolso,

Perdi o meu pai à beira do Tejo,

Perdi o meu exemplar do Amor de Perdição. 


FIGURAS FEMININAS

 

Elas dançam como se andassem

Sobre as águas

E enxugam os meus olhos

Com o fio de cabelo

Que lhes estreita a cintura

E demoram-se no meu sexo

Como num sonho

Descontínuo

E despedem-se

Como se se despissem

No quarto interior

Da criança que já fui

E que fica num quarto

Andar como se dançasse.

 

José Pascoal


José Pascoal (Portugal, Torres Vedras, 1953). Poeta, publicou:  Sob Este Título, Editorial Minerva, Março de 2017. Antídotos, Editorial Minerva, Março de 2018. Excertos Incertos, Editorial Minerva, Maio de 2018, Ponto Infinito, Editorial Minerva, Setembro de 2018. Dirige o blog Gazeta de Poesia Inédita, em: https://gazetadepoesiainedita.blogs.sapo.pt/