ROTAS DO PALUDISMO Centro Interdisciplinar de Ciência, Tecnologia e Sociedade da Universidade de Lisboa INTRODUÇÃO Viajar na Rota do paludismo obriga a que se enverede pelas diferentes rotas do problema. A primeira é a da doença, das suas causas e condições de desenvolvimento e também a da sua história. A própria doença tem uma Rota, pois embora actualmente esteja associada aos países tropicais, ela já existiu na Europa. Há ainda a Rota dos médicos, a das suas missões em terras distantes, destinadas ao estudo da evolução do paludismo, da sua cura e profilaxia. Há a Rota da erradicação da doença que implica, para além de conhecimentos clínicos, também muitos outros, como os de epidemiologia e os de entomologia. Neste texto tentaremos cruzar todas essas Rotas, embora por vezes de forma breve. Procuraremos referir os aspectos essenciais de cada um dos problemas em causa, assim como a contribuição dos cientistas portugueses para a sua resolução. Finalmente, tentaremos enquadrar o seu trabalho na ciência portuguesa do século XX. PALUDISMO UMA HISTÓRIA QUE DURA HÁ MILHARES DE ANOS O ano de 1630, com a descoberta por Francisco Lopez, das virtudes curativas da casca da quina pode ser considerado como início da terapêutica da doença. Dois séculos mais tarde Pelletier e Caventou isolam o quinino e durante o século XX são sintetizadas vários medicamentos que o substituem. O paludismo ou malária é uma infecção causada por um protozoário, o plasmodium, ou hematozoário de Laveran, que é transmitido ao homem pela picada do mosquito do género anopheles. Existem quatro espécies de plasmodium, sendo o mais frequente o plasmodium vivax e o mais perigoso o plasmodium falciparum. O plasmodium malariae e o plasmodium ovale são mais raros. As diferentes espécies correspondem às febres terçã e quartã, assim chamadas porque as crises se manifestam com intervalos de três ou quatro dias, respectivamente. Cada ano mais de cem milhões de pessoas são infectadas e morrem vários milhões das consequências da malária. Em Portugal, embora a doença esteja completamente erradicada desde 1967, chegou a ter uma forte incidência, nas zonas fluviais. Por volta de 1938 eram diagnosticados cerca de 100000 casos por ano. (Cambournac, 1972). Deve-se a Laveran (1845-1922), um médico militar francês, a descoberta, em 1880, do agente causador da doença. Os trabalhos de Ross (1857-1932) e Grassi (1854-1925), entre outros, permitem concluir, em 1898, que o plasmodium é transmitido pelo mosquito anopheles. Depois disso, muitos outros cientistas trabalharam para esclarecer o mecanismo da infecção e para encontrar formas de a combater. O plasmodium tem um ciclo de vida complexo que se desenrola em parte no mosquito, em parte no homem. Ao picar, o mosquito pode infectar o homem ou ser infectado pelos parasitas presentes no sangue do homem doente. O combate à doença faz-se, não só pelo tratamento das pessoas infectadas, mas também pela eliminação dos mosquitos. A utilização do DDT, ou doutros insecticidas de acção prolongada, permitiu obter resultados espectaculares em várias zonas da América e da Europa. No entanto, nos anos cinquenta, constatou-se que certas espécies de anopheles se tinham tornado resistentes aos insecticidas. Essa é uma das razões, mas não a única, do falhanço de algumas campanhas antimaláricas. Outra será a falta de conhecimentos de ordem epidemiológica (Cambournac, 1969). A MEDICINA TROPICAL PORTUGUESA E A MALÁRIA Garcia da Horta (1490-1570) foi o primeiro Europeu a deixar trabalhos escritos sobre Medicina Tropical. Durante a sua estadia na Índia (1534-1570) ele elaborou uma notável descrição de algumas das doenças incidentes no Extremo Oriente. Depois dele outros portugueses descreveram várias doenças tropicais. Entre eles citamos Ferreira da Rosa que tratou com minúcia da febre amarela, a propósito da epidemia do Brasil entre 1684 e 1691. Um outro português, Gabriel Soares de Sousa, lavrador com grande espírito de observação, escreveu, em 1587, uma Descrição Geográfica da América Portuguesa, trabalho que contém a descrição de várias doenças (Azevedo, 1951). Também os ingleses, tais como Lind (1707-1783) e Jackson (1750-1827) deixaram descrições perfeitas das doenças tropicais e dos métodos para nos protegermos delas. O contacto com os trópicos levou, naturalmente, os povos europeus à observação e estudo da flora local e das suas propriedades terapêuticas. Entre estes estudos de farmacologia notemos, em particular, o trabalho de Bernardino António Gomes (1768-1823) que, em 1812 isolou a Chinchona da quinquina do Rio de Janeiro. Mas, apesar das inúmeras descrições de doenças tropicais, os europeus pouco sabiam sobre as suas condições de disseminação e a sua cura. Em Portugal o estudo sistemático e institucionalizado das doenças dos trópicos começa só no século XIX. Em 1844 é fundada a Escola Médica de Goa e em 1887 inicia-se, na Escola Naval, o ensino da Medicina Tropical. Em 1901 é também organizada uma missão a Angola, para o estudo da doença do sono. Os impulsos que foi recebendo, durante o século XIX, a Medicina Tropical levaram à criação de várias escolas onde se estudou e ensinou esta nova ciência. De facto, nos finais desse século duas importantes descobertas foram determinantes para o desenvolvimento do estudo das doenças tropicais - a de Patrick Manson (1844-1922), em 1877 esclarecendo o papel dos mosquitos na transmissão de uma filária patogénica para o homem e a de Laveran, em 1880, descobrindo o hematozoário do sezonismo. A suspeita de que os mosquitos seriam também os responsáveis da propagação de outra terrível doença a febre amarela conduziu ao esclarecer do seu mecanismo de transmissão, em 1900. O entusiasmo criado por esta sucessão de descobertas encontrou eco nos países interessados no estudo das doenças parasitárias. Surgem então aí instituições de ensino e também algumas publicações (ver outras). Em 1899 são criadas as Escolas de Liverpool e de Londres, em 1900 a de Hamburgo e em 1902 a de Lisboa. Em 1912 inicia-se a publicação de Tropical Diseases Bulletin, em Inglaterra e em 1943 os Anais do Instituto de Medicina Tropical, em Portugal, revista que permanece até 1984. Para além de ensino e investigação realizada na Escola, os médicos e técnicos portugueses efectuam uma série de missões para o estudo, combate e profilaxia das principais doenças que afectam as populações das colónias portuguesas em África e na Ásia. Em 1901 foi organizada uma missão a Angola para o estudo da doença do sono e, depois dessa data, inúmeras missões tiveram lugar. Os resultados das missões de combate à malária foram, em grande parte, publicados nos Anais do Instituto de Medicina Tropical. A participação dos médicos portugueses na luta contra a malária não se limitou, contudo, ao trabalho nas referidas missões de combate. A essa acção no terreno correspondeu uma reflexão, além-fronteiras, sobre o problema da erradicação da malária. São sinais disso algumas das comunicações de Francisco Cambournac em Colóquios internacionais, publicadas nos Anais (Cambournac, 1966 e Camborrnac, 1969), e que serão analisadas mais adiante. Uma dessas comunicações, Le developpement de l’éradication du paludisme, foi mesmo seleccionada para ser apresentada em sessão plenária Intercongressional no 8º Congresso de Medicina Tropical e Paludismo que teve lugar em Teerão, em 1968. Nos Anais existem ainda outros artigos originadas pelo estudo e investigação sobre a malária. Álvaro Botelho (Botelho, 1971) em Quimioterapia da Malária faz uma história das drogas anti-maláricas citando e classificando os sucessivas produtos obtidos por síntese a partir da II Guerra a pamaquina, a santoquina, a cloroquina, a pentaquina e ainda outros. O autor trata também o problema da resistência dos plasmódios aos antipalúdicos. Silva Pereira (Pereira, 1961) em Paludismo como causa da aborto - Tratamento deste acidente, cita alguns dados relativos as consequências da malária e descreve os efeitos da doença sobre a gravidez. Termina o artigo indicando as várias terapêuticas a seguir e citando os métodos de tratamento hormonal utilizados por alguns médicos estrangeiros no tratamento do aborto expontâneo. Conclui que esses tratamentos não devem ser usados no aborto por paludismo. Bernardette Brito (Brito, 1974) realiza um trabalho destinado a esclarecer alguns aspectos da relação hospedeiro-parasita. Este estudo enquadra-se nas investigações acerca da imunidade adquirida, fenómeno já comprovado anteriormente. A autora propõe-se fazer um estudo dos efeitos da cortisona, usando murganhos como hospedeiros. AS MISSÕES ANTI-MALÁRICAS NAS EX-COLÓNIAS PORTUGUESAS Os portugueses iniciam a terapia da malária em terras de além-mar com os descobrimentos. De facto, um estudo feito sobre a Botica de bordo de Fernão de Magalhães (Lima, 1942) dá conta da existência de um medicamento de combate às febres quartãs, o Diaçimino, composto por ervas e especiarias. No século XIX, Bernardino Gomes descobre a chinchonina, cujas propriedades descreve em Ensaio sobre a chinchonina e a sua influência nas virtudes da quina, obra inserta na História e Memórias da Academia, (tomo III) e traduzida em inglês. Mas, tal como para outros países, as campanhas anti-maláricas nas regiões ultramarinas iniciam-se apenas no século XX. Os Anais do Instituto de Medicina Tropical publicam os resultados dos estudos sobre as endemias maláricas em todos os territórios ultramarinos, assim como os resultados das campanhas de combate e profilaxia da doença. Esses artigos serão aqui mencionados em anexo, separadamente das outras referências citadas no texto. A caracterização clínico-epidemiológica da endemia ocupa uma grande parte dos relatórios. Em todos eles são apresentados quadros do principal índice malárico de parte das populações: o grau de esplenomegália (hipertrofia do baço), uma das consequências da doença. A partir dos anos sessenta os relatórios incluem também o resultado da pesquisa de plasmódios. Esta análise servia não só para dar conta da intensidade da infecção mas também para detectar quais as espécies de plasmodium que a causavam. Os relatórios sobre a endemia malárica nas colónias portuguesas, apesar de possuírem as características comuns acabadas de referir, são muito diferentes entre si. É possível ver que as missões que lhes deram origem foram também diferentes, umas muito mais completas que outras. Alguns dos relatórios são bastante longos, como é o caso do relativo aos estudos em Timor efectuado pela Missão Permanente de Estudo e Combate das Endemias de Timor durante os anos 59-62, que compreende cento e quarenta páginas (Ferreira e Breda, 1961 e Ferreira e Breda, 1963). Nele são descritas as condições climáticas, geomorfológicas e antropológicas nos territórios em causa. Durante a missão foram feitas prospecções entomológicas destinadas a detectar quais as espécies de anopheles existentes e qual a sua repartição pelas diversas zonas da província e pelos locais habitados. Esse estudo entomológicos incluíu também análises dos próprios mosquitos, em particular a análise do conteúdo gástrico dos anopheles capturados. O relatório sobre a Malária em Angola (Ribeiro e Carvalho, 1964), é fruto do trabalho realizado por médicos residentes no território. Embora muito mais curto do que o relativo a Timor, ele contém também elementos de geografia física e humana e de entomologia. O inquérito clínico-epidemiológico foi realizado apenas em Luanda e permitiu concluir que na cidade o paludismo podia ser classificado como esporádico. Os casos de infecção detectados foram todos originados pelo plasmodium falciparum. No caso de Cabo Verde existem, nos Anais do Instituto de Medicina Tropical, dois estudos sobre a malária separados de cerca de trinta anos - um nos anos cinquenta, outro nos anos oitenta, quando o país era já independente. O primeiro desses estudos (Meira, 1953) foi motivado por um surto malárico ocorrido na ilha de S. Vicente no seguimento das chuvas torrenciais de Novembro de 1952, um dos anos mais pluviosos do século XX. Disso resultou a criação de grande quantidade de anopheles gambiae e, como consequência, um sexto da população da ilha foi infectada. O inquérito epidemiológico apresenta dados sobre a distribuição dos infectados por idades e por zonas. O tratamento com anti-palúdicos revelou-se eficaz e, entre os doentes tratados pela missão, registou-se apenas um caso mortal. O segundo artigo dos Anais (Cambournac et al., 1984) sobre o combate ao paludismo nas Ilhas de Cabo Verde é de 1984. O artigo traça a história dos surtos epidémicos e das campanhas de erradicação, ao longo do século XX, e contém também elementos sobre os vectores da malária nas Ilhas. Os numerosos quadros do relatório apresentam dados sobre os índices esplénicos e parasitários e também as sobre as aplicações de DDT efectuadas. Esses números permitem aos autores concluir que não é difícil de conseguir a erradicação do paludismo das Ilhas, dadas as condições favoráveis de clima muito seco. O relatório da campanha anti-malárica em São Tomé e Príncipe entre 1953 e 1955 foi objecto de duas comunicações apresentadas ao Congresso da Associação Portuguesa para o Progresso das Ciências, que teve lugar em Coimbra (Mourão, 1956). Segundo consta das referidas comunicações, a malária existia nas Ilhas no estado endémico. Nos finais de 1953 foram feitas observações da população escolar da Ilha de S. Tomé com a finalidade de determinar a intensidade da endemia palustre. Iniciou-se então uma campanha profilática sistemática e controlada com os medicamentos paludrina e daraprin, tendo sido feito uma nova prospecção em Abril-Maio de 1954. Os resultados apresentados permitem pôr em evidência os efeitos positivos da profilaxia. A paludrina e o daraprim revelaram-se eficazes, tendo provocado uma redução muito sensivel dos índices paludométricos, mesmo em períodos relativamente curtos. A diminuição dos índices maláricos entre 53 e 55 è atribuída, pelo autor das comunicações, à pulverização com insecticidas e ao emprego de larvicidas. Em 1980, vinte e quatro anos depois da acção profiláctica atrás referida, Veigas de Ceita publica nos Anais um trabalho sobre o paludismo em São Tomé e Príncipe. São aí tratados diversos aspectos: as várias espécies de plasmodium encontrados nos doentes,os índices paludométricos em diferentes grupos etários, os resultados da profilaxia química. O autor constata a grande eficácia da cloroquina, mesmo em doses relativamente baixas. O estudo sobre a endemia malárica em Macau foi realizado em 1956 (Ferreira e Gândara, 1961). O inquérito clínico-epidemiológico efectuado mostrou que os índices esplénicos eram baixos, o que esteve de acordo com os dados dos Serviços de Saúde locais. De facto, durante o ano de 1955 foram registados apenas 67 casos de paludismo. Os autores atribuem esse estado de coisas à criação da brigada anti-malárica, em 1947. Os nomes dos cientistas e técnicos portugueses que participaram nas missões de estudo sobre a malária são os seguintes: A. Antunes Breda, A. Brito Soares, Francisco Cambournac, A. de Carvalho, M.Coutinho, Cruz Ferreira, João Fraga de Azevedo, A.Franco Gândara, G. Janz, Manuel Meira, Manuel Mourão, A.Pedroso Ferreira, , H. Ribeiro, H. Santa Rita Vieira, F. Soares e João Viegas de Ceita. A ERRADICAÇÃO DA MALÁRIA Ao falar em sessão plenária no 8º Congresso de Medicina Tropical, realizado em Teerão, em 1968, (Cambournac, 1969), Cambournac traça uma breve história das primeiras lutas em grande escala contra o paludismo. Refere as erradicações de algumas espécies de anopheles no Brasil, no Egipto e em Cabo Verde, conseguidas nos anos 40 do século XX. Cita a importância da descoberta, em 1939, das propriedades insecticidas de acção prolongada do DDT (produto sintetizado por Zeidler em 1874), que fez nascer a esperança de eliminar todos os agentes da malária da face da terra. Depois, considera as dificuldades que surgiram com a eliminação de algumas espécies de mosquitos anopheles, nomeadamente na Sardenha e na ilha Maurícia. Mostra que, a partir de 1950, os resultados observados em Itália e na Grécia fizeram pensar que, sem os eliminar completamente é possível reduzir a população de mosquitos de forma a que não haja paludismo. Refere que a luta contra os anopheles através do tratamento das paredes das habitações passou a ser encarada como o meio mais simples e eficaz de combate à doença e cita os resultados espectaculares obtidos na Europa e nas Américas. Cambournac aborda então a questão da resistência aos insecticidas de várias espécies de anopheles, fenómeno que começou a ser claro a partir de 1954. Esse facto levou a Organização Mundial de Saúde (OMS) a encarar o problema da erradicação de uma nova forma e a desenvolver todos os esforços para acabar com a malária em todo o planeta. O autor põe em evidência o surgir de um novo conceito de erradicação e tece considerações sobre as suas dificuldades. Para Cambournac essas dificuldades resultam essencialmente da falta de conhecimentos de epidemiologia, embora considere que a má organização dos serviços e a falta de colaboração das populações também contribuem para o falhanço dos programas de erradicação. Cita os relatórios da OMS dos anos 56 e 57 que fundamentam a sua tese e especifica as recomendações daquela organização no que diz respeito às condições de preparação e de prosseguimento das campanhas anti-maláricas. Para terminar, Cambournac apresenta vários quadros de valores que permitem avaliar o estado das campanhas nessa época, descreve o modo como foram efectuadas e, finalmente, refere o papel dos serviços de saúde e da infra-estrutura sanitária dos países onde se pretende erradicar a malária. O trabalho de reflexão e de tentativa de estabelecer normas e directivas para os programas de erradicação da malária, realizado por Francisco Cambournac, começou mesmo antes de ele ter sido convidado para falar numa sessão plenária internacional. Já em 1966 o autor tinha apresentado, num colóquio nacional, uma tese sobre o tema da erradicação (Cambournac, 1966). Aí, ele discute o significado do conceito de erradicação, afirmando que uma experiência bem sucedida, de luta contra a malária, não é equivalente a erradicação. Depois, baseando-se nas recomendações da OMS, estabelece, com rigor e pormenor, as condições de organização e desenvolvimento dos programas de luta anti-malárica. Seguidamente, o autor aborda o problema das colónias portuguesas e da organização dos serviços de saúde e sanitários que considera indispensáveis à obtenção do fim em vista. Ao tratar essa questão afirma que esses serviços devem estar aptos a realizar, inclusivamente, trabalho de investigação no campo da epidemiologia e da entomologia. Cambournac, no artigo citado, descreve detalhadamente o “plano de operações” a que deve obedecer um programa de erradicação e também os seus custos. Em anexo, apresenta dados acerca do pessoal e equipamento necessários para fazer face a uma campanha numa região com cerca de um milhão de habitantes. O autor que acabou de ser extensamente citado é, de entre todos os autores portugueses consultados, o único que trata exaustivamente a questão da erradicação do paludismo. No entanto, também noutros autores é possível encontrar referências ao problema. Dada a sua grande incidência e o facto de ser considerada, na época (e ainda hoje) um grave problema de saúde pública, é natural que seja uma preocupação para qualquer investigador. A este propósito, Álvaro Botelho afirma, “apesar de intensa investigação, o mecanismo de resistência dos parasitas da malária às drogas não está perfeitamente estabelecido”. No entanto, “A resistência dos parasitas da malária às drogas não tem sido até à data um obstáculo importante na efectivação dos programas de erradicação” (Botelho, 1971, p.102) MALÁRIA, HISTÓRIA E DIVULGAÇÃO DA CIÊNCIA. A História da Medicina é talvez, entre todas as Histórias, aquela em que é mais frágil a barreira entre História, Divulgação da Ciência e Ciência e Sociedade. Uma grande descoberta em Medicina tem, a curto prazo, efeitos sociais retumbantes. Quem faça a história dessas descobertas falará necessariamente das suas consequências sobre a cura de doenças e ninguém questionará essa opção. Tudo se torna mais complicado quando se trata de historiar a acção médica quotidiana, mesmo aquela que diz respeito à aplicação das grandes descobertas. É o que acontece com o paludismo e as suas campanhas de erradicação. Embora apoiadas em descobertas recentes e importantes poderá dizer-se que as missões de combate à malária nas colónias são actos científicos? A análise dessas missões pode considerar-se incluída na História das Ciências? A resposta a estas questões não é fácil mas deve, antes de tudo, basear-se na análise dos documentos utilizados. Embora esses documentos tenham sido resumidos ao longo deste trabalho, a avaliação rigorosa das suas características obriga a uma leitura detalhada. O mesmo deve acontecer com inúmeras publicações que envolvem actos médicos. Quando é que, em medicina, uma publicação traduz mais do que o simples acto rotineiro de tratar uma doença com um medicamento conhecido e testado? Muitas das publicações médicas envolvem unicamente actos rotineiros. No entanto, a preocupação de um médico em registar esses resultados, sistematizá-los e escrever sobre eles, dá-lhes outro significado. Pode dizer-se que transforma assim um acto rotineiro num acto científico. Um químico ou um físico que com as suas medidas ou os seus cálculos elabora um artigo, não faz nada de muito diferente do que um médico ao publicar os resultados da sua prática quotidiana. A maior parte dos artigos publicados em revistas de física ou de química, mesmo de prestígio, pouco efeito têm sobre a evolução da ciência mas, apesar disso, constituem resultados científicos. Pode dizer-se o mesmo dos artigos citados neste texto. Alguns são mais completos e elaborados do que outros mas em todos eles existe a preocupação de sistematizar resultados e de chegar a conclusões, como acontece nos artigos de outras áreas científicas. A malária é uma doença complexa, com leis de disseminação mal conhecidas e em que os resultados das campanhas de erradicação diferem de zona para zona. Um relatório que descreva um programa de combate à malária e dê conta dos seus efeitos, do seu sucesso ou insucesso, é sempre um resultado novo. Pode ser considerado como um resultado científico, apesar de não estar apoiado pelo mesmo tipo de investigação científica que existe noutras áreas de conhecimento. O mesmo se passa com outros actos médicos em que o trabalho científico se confunde com a prática clínica. A actividade dos médicos implicados nas campanhas de erradicação tem, sem dúvida, características de trabalho de investigação científica. Embora, quando da realização dessas campanhas, a natureza e o mecanismo da infecção estivessem já esclarecidos, os estudos efectuados permitiram tirar conclusões de natureza epidemiológica e entomológica. O trabalho realizado junto das populações afectadas pela malária, nos períodos que antecederam e que duraram os programas de erradicação, traduziu-se não só em actos médicos mas também em divulgação e educação médico-sanitária. Isso é bem patente nas “considerações” de Francisco Cambournac acerca da erradicação da malária (Cambournac, 1966). Assim sendo, a História dessas acções faz parte, sem dúvida, da História da Divulgação da Ciência e das Relações Ciência-Sociedade. CONCLUSÃO: A INVESTIGAÇÃO SOBRE O PALUDISMO NO CONTEXTO DA CIÊNCIA PORTUGUESA O problema do paludismo interfere com questões pertinentes na ciência portuguesa do século XX que importa referir, para quem se coloca numa perspectiva de análise da nossa produção científica, no seu conjunto. Uma dessas questões foi já aqui abordada, quando se discutiu se determinados actos médicos seriam ou não actos científicos. A problemática é bastante complexa, dada a dupla vertente conhecimento médico - exercício da medicina. Celestino da Costa, atento ao problema certamente melhor que ninguém, pronunciou-se várias vezes sobre a necessidade do “espírito científico” num médico (Costa, 1932 e Costa, 1942). No entanto, a análise dos documentos consultados no presente trabalho, parece indicar que muita da actividade dos médicos portugueses relativa às doenças tropicais foi caracterizada precisamente pelo presença de espírito científico. Com certeza que esse facto não é alheio à existência de um Instituto de Medicina Tropical que, pondo ao serviço dos médicos determinados meios materiais, lhes permitia prolongar a dimensão da sua actividade clínica, de forma a dar-lhe um cunho científico. O apoio institucional à actividade científica é, aliás, um problema não só na medicina, mas em toda e qualquer área de conhecimento. Um grande número de professores e investigadores portugueses do século XX aponta como principal causa do “atraso científico português” precisamente a quase inexistência de estruturas institucionais que enquadrem o trabalho individual. A ciência portuguesa, no dizer dessas personalidades, caracteriza-se pela ausência de centros de investigação, de laboratórios e de escolas científicas (Serra, 2003). Sousa da Câmara, investigador e director da Estação Agronómica Nacional, criada em 1936, pergunta, em comunicação à Academia das Ciências (Câmara, 1950), “Enquanto se passa isto por todo o mundo, enquanto sobre ele parece correr uma brisa benéfica de absoluta confiança na ciência, que se vê em Portugal?” e responde logo a seguir “A nossa triste situação é bem conhecida! Inútil será descrevê-la! O que temos é tão pouco que nem vale a pena insistir. (...) Praticamente estamos desprovidos de qualquer sistema de organização científica”. Nesse panorama, caracterizado pela ausência de organização científica, a Medicina Tropical parece, contudo, constituir uma excepção. Fraga de Azevedo, um investigador do Instituto e autor de diversos trabalhos sobre o paludismo, já aqui citados, escreveu também sobre a História da Medicina. Através desses textos é possível ver que a Medicina Tropical teve um desenvolvimento razoável no nosso país. O volume de publicações é também importante, se o compararmos com o de outras áreas em igual período. Evidentemente, é difícil avaliar quantos dos trabalhos publicados contêm uma importante componente de investigação. Mas Fraga de Azevedo considera que o desenvolvimento científico “concedido ao Ultramar Português” (...)”se afasta dos métodos de vida corrente do país”. O autor faz esta afirmação durante a sua primeira comunicação à Academia das Ciências (Azevedo, 1958), depois de ter feito uma acérrima crítica à falta de apoio institucional aos valores científicos do país. É então uma área privilegiada, a da Medicina Tropical? Existe, pelo menos uma outra apreciação que aponta nesse sentido. Gonçalo Santa Rita, ao fazer a análise do trabalho científico relativo às colónias (Santa Rita, 1940), é bastante crítico acerca da qualidade desse trabalho, afirmando que apresenta “graves deficiências no que respeita à orientação, direcção e continuidade” (p. 26). No entanto, diz mais adiante que “É nas ciências agronómicas e medicinais, que se conta maior número de trabalhos, o que se explica porque aí o campo de acção profissional toca de perto no campo de investigação e em muitos casos se confunde com ele.” Santa Rita faz também, no mesmo texto, uma referência bastante positiva à qualidade do trabalho de investigação desenvolvido no Instituto de Medicina Tropical. O enquadramento institucional da actividade científica é determinante no desenvolvimento de qualquer ramo do saber. No caso da Medicina Tropical, e em particular do Paludismo, parece ter contribuído significativamente para que os profissionais de saúde ultrapassassem os simples actos quotidianos de profilaxia e de cura e dessem à sua acção um carácter científico. REFERÊNCIAS 1. Azevedo, J. Fraga de, Gândara, A. Franco e Ferreira, A. Pedroso, Contribuição para o estudo sobre a endemia malárica na província de Timor, Anais Inst. Med. Trop., Vol. 15, pp.35-52 (1958). 2. Ceita, J.G. Viegas de, Alguns aspectos da epidemia e profilaxia do paludismo em São Tomé e Príncipe, Anais do Instituto de Higiene e Med. trop., Vol 6, pp.3-15 (1979/80) 3. Ferreira, A. Pedroso e Gândara, A. Franco, Contribuição para o estudo sobre a endemia malárica na província de Macau, Anais Inst. Med. Trop., Vol. 18, pp.93-108 (1961). 4. Ferreira, A. Pedroso, Estudos sobre a endemia malárica em Timor, com vista a estabalecer-se um plano de luta contra a mesma (1), Anais Inst. Med. Trop., Vol. 18, pp.109-162 (1961). 5. Ferreira, A. 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Trop., Vol. 23, pp. 33-51 (1966) 21. Cambournac, F.J.C., Le développement de l’éradication du paludisme, Anais da Esc. Nac. Saúde públ. e Med. trop., Vol. 3, pp.33-46 (1969) (Comunicação apresentada ao 8º Congresso de Medicina Tropical e Paludismo, Teerão, 1968) 22. Cambournac, F.J.C., Diptères vecteurs de maladies parasitaires de l’homme au Portugal, Anais da Esc. Nac. Saúde públ. e Med. trop., Vol. 6, pp. (1972) 23. Costa, Celestino da, A educação do médico, Discurso Inagural da 7ª secção do VI Congresso Luso Espanhol para o Progresso das Ciências, Tomo I, pp. 123-132, Lisboa, 1932 24. Costa, Celestino da A O espírito científico da medicina, X Congresso Luso Espanhol para o Progresso das Ciências, Tomo I, pp. 166-180, Porto, 1942 25. Med. Trop., Vol. 8, pp.689-721 (1951) 26. Lima, A. Pires de, A Botica de Bordo de Fernão de Magalhães, Actas do X Congresso Luso-Espanhol para o Progresso das Ciências, tomo IX, pp.380-393, Porto, 1942. 27. Pereira, J. Silva, Paludismo como causa de aborto Tratamento deste acidente Anais Inst. 28. Rita, J. G. Santa, A Investigação Científica Portuguesa nos últimos 100 anos, Congresso do Mundo Português, XIV Volume, Tomo I, 1ª Secção pp. 13-29 (1942) 29. Serra, I. O discurso sobre as ciências no século XX, em Portugal, (a publicar) 30. Soeiro, A.A. Navarro, Relatório da Conferência de Malária de Lourenço Marques, organizada sob os auspícios de Organização Mundial de Saúde, 25-27 de Agosto de 1958, Anais Inst. Med. Trop., Vol. 16, pp.695-700 (1959)
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