Procurar textos
 
 

 

 

 







CHICO BUARQUE DO BRASIL

ENTREVISTA COM RINALDO DE FERNANDES
concedida com exclusividade ao jornalista Linaldo Guedes

 
.

Linaldo Guedes - Depois do belíssimo "O Clarim e a Oração", o que fez você sair do mundo de Euclides da Cunha e penetrar com afinco na arte de Chico Buarque?

Rinaldo de Fernandes - Na verdade, os dois projetos correspondem a momentos diferentes de minha produção acadêmica. Organizei "O Clarim e a Oração" a partir da minha pesquisa de doutorado na UNICAMP, que tratou do romance de Mario Vargas Llosa "A guerra do fim do mundo", baseado em "Os Sertões". Já o "Chico Buarque do Brasil" só foi possível devido ao meu trabalho de mestrado, que concluí em 1995. Acho que eu não estaria habilitado para organizar um livro como "Chico Buarque do Brasil" se não tivesse me debruçado por três anos sobre a produção do compositor/escritor.

Linaldo - Ao contrário de Euclides, Chico Buarque, graças a Deus, continua vivo e entre nós. Isso facilitou ou dificultou o trabalho de pesquisa e de coleta de informações?

Rinaldo - Não facilitou muito, não. Euclides da Cunha (com Machado de Assis) é provavelmente o escritor brasileiro mais estudado. Portanto, para um pesquisador, de certa forma, isso facilita as coisas. Um autor contemporâneo ainda está se afirmando, os estudos ainda estão surgindo, uns mais consistentes, outros menos - e isso pode dificultar um pouco. Mas Chico Buarque, de qualquer modo, já tem uma boa fortuna crítica. É hoje um autor bem estudado. E acho que o livro que organizei vai aumentar o interesse pela obra dele, podendo gerar outros tantos trabalhos.

Linaldo - Como foi o trabalho de organização e coleta dos depoimentos?

Rinaldo - Primeiro, tive interesse em chamar as pessoas que já tinham trabalhos publicados sobre Chico. Na lista entraram Affonso Romano de Sant'Anna, Anazildo Vasconcelos da Silva, Adélia Bezerra de Meneses, Tárik de Souza, Charles Perrone, Regina Zappa, entre alguns outros. Depois tive interesse em chamar escritores e/ou intelectuais ilustres, gente de peso em nossa cultura - caso de Antonio Candido, Leonardo Boff, Augusto Boal, Frei Betto, etc. No que se refere aos ensaístas, tirando um ou dois casos, todos são doutores ligados a universidades brasileiras e, mesmo, estrangeiras. Portanto, você tem no livro o mais importante crítico literário brasileiro (Antonio Candido), um Prêmio Nobel de literatura (José Saramago), dois membros da ABL (Moacyr Scliar e agora Antonio Carlos Secchin), um compositor e um músico de grande valor (Chico César e Aquiles, do MPB-4), o editor de um dos principais suplementos literários do país (Rogério Pereira, do "Rascunho"), além de uma série de professores/doutores, alguns deles (cinco, se não me engano) titulares. Gente muito importante tratando de um dos maiores artistas brasileiros de todos os tempos...

Linaldo - O livro traz poemas, análises e depoimentos sobre Chico Buarque. Não faltou uma fala do próprio homenageado?

Rinaldo - No projeto inicial, incluí uma entrevista com Chico. Mas ele achou melhor não dar essa entrevista para um livro que estava, justamente, o homenageando. É um traço dele - Chico não gosta de homenagens, é mesmo tímido para isso. Eu já sabia disso e respeitei. Eu já tinha o entrevistado em 1995 e percebi que de fato ele fica encabulado nesses momentos...

Linaldo - E as maiores dificuldades em relação à feitura do livro?

Rinaldo - Tenho tido a sorte de, enquanto escritor e pesquisador, ter meus projetos prontamente aceitos por editoras de grande porte, além de ter um respeito da comunidade intelectual e da imprensa brasileira. Isso decorre do esforço que tenho empreendido de realizar trabalhos sérios, bem pesquisados, e que tragam contribuição à cultura brasileira. Estou muito interessado em fazer intervenções nessa cultura, em dar minha contribuição com projetos que, além de mim, enriqueçam as pessoas. Diria, portanto, que, pelo respeito que adquiri no universo intelectual brasileiro, pelo fato de meu nome já ter uma circulação nacional, e até mesmo internacional, as dificuldades desta vez foram menores. Em princípio, três editoras se interessaram pelo projeto - mas tive que escolher uma. Além disso, 99 % das pessoas que convidei para participar do livro aceitaram o meu convite. A dificuldade maior mesmo foi em sentar e ter a disciplina indispensável (e prazerosa) que todo escritor/pesquisador precisa ter para a concretização de um trabalho. Tenho uma enorme paixão pelo trabalho com a escrita - e isso facilitou as coisas.

Linaldo - Você tem uma pesquisa de mestrado sobre Chico Buarque. De que trata essa pesquisa e de que forma ela serviu como parâmetro para a idéia do livro "Chico Buarque do Brasil"?

Rinaldo - Meu mestrado foi muito importante. Sem ele, repito, eu não estaria habilitado para organizar o livro. Na época, li a obra e muita coisa sobre Chico. A pesquisa intitulou-se "A mulher nas canções de Chico Buarque". Dela extraí o ensaio "Conformadas e recolhidas: análise de Mulheres de Atenas ", que consta do livro. Bom, Chico desde cedo foi identificado como o cantor da mulher. As canções de Chico que tematizam a mulher, segundo analisei em meu trabalho, podem ser divididas em 3 vertentes temáticas: 1) as conformadas ("Cotidiano" e "Mulheres de Atenas"; 2) as prostitutas ("Mambordel", "Las muchachas de Copacabana", em que é enfatizado o aluguel do corpo por questões de sobrevivência; "A mulher de cada porto" e "Tango de Nancy", em que são tratados os desencontros amorosos, decorrentes, em grande medida, da própria condição e/ou do próprio ofício de prostituta); e 3) as desejosas ("Ela e sua janela", "Bárbara", "O que será - Abertura", "Mar e lua" e "O meu amor" - canções que dão voz ao desejo sexual feminino, mas é um desejo interditado, que não se realiza com o seu objeto, refletindo uma questão cultural, já que a sociedade tende a identificar a agência sexual ao homem; caso único em Chico em que o desejo feminino se realiza plenamente é o de "O meu amor"). Há ainda uma outra vertente que identifiquei e que chamei de "A saída por cima", na qual, no desencontro amoroso com o homem, a mulher sai sempre "por cima" (exemplo é "A Rita").

Linaldo - Sem querer lhe colocar em maus lençóis, existe um depoimento ou análise no livro que você considera mais importante ou, pelo menos, mais original? Qual?

Rinaldo - Eu adoro organizar livros. É um trabalho muito gratificante. Eu vibro com cada texto que recebo. Eu sou um admirador do texto bem escrito. Qualquer pessoa que tem um texto bem escrito já ganha, de antemão, a minha admiração. Às vezes, até por não conhecer a pessoa, é uma admiração secreta - mas não deixa de ser admiração. Eu mando bons fluidos para quem escreve bem, tenho certeza disso. Nos livros que tenho organizado isso acontece sempre - as pessoas me enviam textos bons, de qualidade. Eu vou vibrando com cada um deles. Gosto, portanto, do conjunto de textos do livro. Mas, repetindo o que já disse na entrevista que dei ao jornal O Globo , achei bem interessantes os trabalhos de Leonardo Boff sobre "Gente humilde" e "Deus lhe pague", de José Castello sobre "Benjamim", de Sônia Ramalho sobre "Budapeste"... Há o texto do Charles Perrone, feito em parceria com M. Elizabeth Ginway e Ataíde Tartari, que traz uma visão panorâmica da produção de Chico e que ficou bem informativo, instigante. O ensaio de Mario Chamie sobre "Construção" discute bem o viés vanguardista de Chico. Os poemas baseados em "A banda" estão excelentes. Os poetas Sérgio de Castro Pinto, José Nêumanne Pinto, Ricardo Soares e Thereza Christina Motta estão, portanto, de parabéns. Tem muita coisa boa no livro - as crônicas saborosas de Maria Alzira Brum Lemos e Regina Zappa; os ensaios dos paraibanos João Batista de Brito, Luiz Antonio Mousinho, Diógenes Maciel, Luciana Eleonora e Arturo Gouveia são de alto nível. O texto do professor Amador Ribeiro Neto sobre o CD "As Cidades" é ótimo. Acho incrível como aqui na Paraíba nós temos bons ensaístas. É uma coisa admirável...

Linaldo - Além de organizador, você comparece no livro com ensaio sobre "Mulheres de Atenas", em que aborda a condição da mulher e/ou da esposa na Grécia antiga. A bela canção de Chico, em parceria com Boal, representa realmente uma metáfora da submissão feminina?

Rinaldo - Certamente. Afirmo em meu ensaio que "Mulheres de Atenas" se inscreve entre as principais produções da MPB que tratam, por um lado (e sobretudo), da condição feminina e, por outro, da condição masculina na família patriarcal. A canção aborda particularmente o conformismo da mulher num tipo de relação conjugal em que prevalece a vontade (ou o comando exclusivo) do homem. É uma letra muito forte, riquíssima...

Linaldo - Falar nisso, Chico Buarque é especialista em deixar vazar seu eu-lírico feminino em suas canções, fato raro em nossa MPB. Como você avalia essa característica tão presente nas composições do autor de "Bárbara"?

Rinaldo - Isso, em poesia, não é novidade. Já é uma tradição que vem pelo menos da Idade Média. Mas o curioso é que Chico nunca teve receio de compor mas de cantar no feminino. Ele aprendeu a cantar no feminino com o Ari Barroso. Chico disse isso numa entrevista que me concedeu em 1995. À época, ele afirmou: " Um homem podia compor uma canção no feminino, mas parecia estranho que ele a cantasse. Engraçado isso. Foi depois que eu ouvi o disco do Ari Barroso, com aquela voz rascante, cantando 'Camisa amarela' no feminino... Soava muito estranho naquele tempo. Para mim, soava estranho. E não se ouvia muito um homem cantar no feminino".

Linaldo - Na virada do século XX para o XXI a IstoÉ elegeu Chico Buarque o músico brasileiro do século. Você concorda com essa avaliação? Por quê?

Rinaldo - Não sei como a revista fez a pesquisa para chegar a tal conclusão. Mas acho que o Chico, se não é o melhor, certamente está entre os melhores...

Linaldo - Chico Buarque é um caso raro em nossa Música Popular Brasileira. Autor de grande sucesso popular nas décadas de 60/70, costuma fugir um pouco da mídia, evitando a superexposição. Isso tem contribuído para criar um mito em torno do artista?

Rinaldo - Não. Acho que Chico é tímido mesmo. Eu notei isso quando o entrevistei. Há artistas que não gostam de se expor - é um traço da personalidade deles. E há outros que são exatamente o contrário - adoram estar na mídia. Mas cada um é cada um. Por outro lado, não vejo o fato de um artista aparecer sempre na mídia como sendo algo necessariamente ruim. Caetano Veloso costuma estar na mídia - mas é um artista extraordinário... Os artistas que costumam nos cansar na mídia são aqueles sem muito valor, de pouca qualidade, e que infelizmente são a maioria. Estes, sim, cansam...

Linaldo - E o Chico romancista? Quando lançou "Estorvo", muitos o criticaram e acharam que aquilo era apenas diletantismo do compositor popular. Hoje você diria que a carreira literária dele já está consolidada?

Rinaldo - Sim. Sobre o romancista, acho que o professor Antonio Candido disse quase tudo no texto que me enviou para o "Chico Buarque do Brasil". Diz o professor: " Os romances [de Chico] são densos, sem concessões, muito inventivos, com um toque pouco freqüente de originalidade. No entanto, comunicam-se bem e fizeram dele uma revelação que não foi apenas fogacho, pois a sua carreira nesse campo prossegue em vôo alto". Concordo plenamente com essas palavras de Antonio Candido. Chico é hoje um dos principais romancistas da língua portuguesa.

Linaldo - Do ponto de vista literário, entre "Estorvo", "Benjamim" e "Budapeste", qual obra você considera mais bem trabalhada pelo escritor Chico Buarque de Hollanda? O Chico ficcionista é a mesma coisa do Chico cancionista?

Rinaldo - Eu afirmei recentemente sobre a relação entre o cancionista e o ficcionista Chico, em entrevista que dei à uma repórter da revista Época : "Talvez você encontre uma certa diferença entre o cancionista ou mesmo o dramaturgo dos anos 70 em relação ao romancista mais recente. Nos anos 70, Chico fazia uma arte de resistência, uma arte mais explicitamente engajada. O recado era, em certos casos, mais direto - daí a perseguição da Censura. O romancista de hoje continua intervindo, mas fazendo uma crítica mais implícita. Preocupa-se com o indivíduo isolado, interagindo com a metrópole, no contexto de uma sociedade globalizada. Há, porém, um aspecto que é comum a todos os momentos da produção do autor de 'Apesar de você' - tanto nas canções como nos romances Chico demonstra uma grande habilidade com a palavra. Em tudo o que produz, Chico é um artesão da palavra. Além disso, os romances dele, do ponto de vista formal, estrutural, dialogam com o que há de mais significativo na ficção moderna". Quanto à primeira pergunta: gosto dos três romances de Chico, mas tenho uma certa preferência pelo "Benjamim". Acho o protagonista, Benjamim Zambraia, muito bem elaborado. A questão do tempo narrativo é extraordinária nesse texto. O romance é um longo flashback da vida de um ex-modelo fotográfico, que se encontra às portas da morte, diante de um pelotão de fuzilamento. O personagem volta ao seu passado, mobiliza a memória em busca de sua verdadeira imagem, de uma identidade difusa. É preciso ter muita habilidade, um grande domínio da técnica literária para se escrever uma narrativa como essa. Sou também ficcionista e sei que isso é difícil...

Linaldo - Não fosse compositor, haveria menos preconceito em relação à obra literária de Chico Buarque?

Rinaldo - Bom, não vejo preconceito contra o escritor Chico Buarque. Se há, o preconceituoso ou não leu os romances de Chico ou está no mínimo desinformado quanto à boa literatura. Chico é um excelente escritor. E o fato de Chico já ser conhecido como compositor certamente facilitou a vida do ficcionista. Gerou mais curiosidade, facilitou a recepção dos romances. Não vejo nenhum problema nisso...

Linaldo - Uma última pergunta: a gente já pode esperar um outro trabalho do pesquisador Rinaldo de Fernandes em torno de um grande nome da cultura brasileira?

Rinaldo - Parece que as pessoas estão gostando mesmo dos livros que organizo. Tanto que há pessoas que participaram dos dois trabalhos ("O Clarim e a Oração" e "Chico Buarque do Brasil") que chegam a afirmar: "Rinaldo, conte comigo sempre...". Ou seja, gostariam de integrar um trabalho futuro. E falo de gente já conhecida, com vários livros na praça. Meus projetos, além disso, têm dado bons resultados em termos de vendas. A antologia que preparei em 2001 junto com o José Nêumanne Pinto ("Os cem melhores poetas brasileiros do século") há muito que se esgotou. De "O Clarim e a Oração", de 2002, restam os exemplares que estão nas livrarias, não há mais na editora. "Chico Buarque do Brasil", lançado há três semanas, está saindo muito bem - e já entrou em lista dos mais vendidos... Isso, sem dúvida, é um grande incentivo para a minha carreira de escritor, que acredito que esteja decolando agora. Portanto, pretendo, sim, produzir outros livros. Já estou preparando um outro neste momento. Mas por enquanto prefiro ficar em silêncio...