Carlos Araujo – A arte e a sacralidade na arte

JACOB KLINTOWITZ


O deserto estava nele e ele estava no deserto.

Houve um momento em que o jovem pintor Carlos Araujo se deparou com o deserto, com a ausência de todas as referências e signos interiores. E este seu deserto era despido de significação e todas as coisas, inclusive a sua movimentação pessoal no circuito artístico, pareciam tolas e vaidosas. Ao contrário do deserto dos santos e iluminados, um deserto sem distrações e pleno do sentimento do divino, o seu estava ocupado por imagens banais, ruídos inarticulados, falas desconexas, brilhos fugazes e luzes artificiais, saturado de articulações do efêmero que o jovem, mesmo sem clareza, mas obscuramente à procura do infinito, considerou fútil e superficial. O deserto estava nele e ele estava no deserto.

É neste momento em que no vazio em que habitava ele encontrou a imagem de alguma coisa que lhe pareceu perene.

O que era este conteúdo que poderia lhe preencher, esta substância capaz de transformar e organizar o que lhe dava a desesperada sensação de vazio e banalidade?

A obra fala pelo artista. E nos diz o que ele é, e diz, também, ao próprio artista, na maioria das vezes, qual é a sua verdadeira identidade. É possível que o impulso de criar, de estabelecer uma linha explicita de percepção e entendimento do real, de subverter ou acrescentar à linguagem, tenha como principal estímulo o subterrâneo impulso de descobrir a sua verdadeira identidade. Aquela que não depende de convenções, da educação, de características de segmentos sociais, mas que pode emergir do próprio fazer. A harmonia e o mundo de conexões que a pintura de Carlos Araújo nos mostra é, em minha opinião, o dado mais notável de sua saga. Num tempo social e histórico de expressões fragmentárias e fragmentadas, o seu trabalho se destaca imediatamente por oferecer a visão de um universo integrado.

Certamente uma das características mais imperativas e tediosas da nossa época é uma espécie de onipresente fala ininterrupta. Existe um crescimento exponencial de veículos disponíveis que devem ser ocupados por conteúdos. É um estímulo ao efêmero. Eventos e explicações dos eventos. E eu não estou me referindo apenas aos astros populares de comunicação em massa para quem a própria atividade sexual é uma espécie de evento público. Não basta ao escritor escrever o seu romance ou ao pintor mostrar a sua pintura, eles devem explicar e tornar os seus símbolos em signos de fácil entendimento, cotejar o que fizeram com as questões do mundo mais divulgadas e, principalmente, afirmar que a sua obra é de uma originalidade jamais pressentida. Como dizem “Isto nunca foi feito”! Os artistas se tornaram arautos da novidade. Auto-gestores de sua própria imagem pública construída com material informativo perecível.

O que é este universo harmônico e de conexões, opção de Carlos Araujo?

É o mundo de significações permanentes, aquele que nos afirma que nada é desligado do todo e que cada coisa, cada ser, faz parte de uma articulação abrangente e absoluta. E que a parte contém em si mesmo elementos da estrutura global. Um universo fractal. O conceito de que o todo contém todas as partes e que tudo está organizado num sistema universal confere significação essencial a tudo o que existe. Esta conexão não permite exceções, só pode ser absoluta, nada pode ser marginal a ela. E a harmonia na arte, mesmo quando tem aparência inesperada, chocante ou inusitada, é a aplicação das leis que regem essa articulação universal. A harmonia, neste caso, também deve ser a expressão das leis ocultas que regem este universo integrado. Não se conhece nenhuma civilização que não tenha tidos regras e fórmulas ideais para a construção harmoniosa da arte.

O poeta espanhol Rafael Alberti, (1902-1999) – foi pintor na juventude – descreveu admiravelmente esta realidade no seu poema “A la divina proporción”, no livro “A la pintura” (Alianza Editorial):

A ti, maravillosa disciplina,

media, extrema razón de la hermosura,

que claramente acata la clausura,

Viva en la malla de tu ley divina.

 

A ti, cárcel feliz de la retina,

áurea seccion, celeste cuadratura,

misteriosa fontana de mesura

que el Universo armónico origina.

Símbolos e ideias de universo integrado, conectado e de imagens permanentes, arquetípicas.

Talvez a Grande Mãe, a presença da criação suprema da geratriz da vida, da Mãe da Terra, da Mãe dos Homens. E o Filho desta Mãe generosa, desta geradora da vida, da substância inicial, da origem, da existência. E o Pai, origem de todas as coisas. E este Filho, produto da união entre a terra, a mãe terrena, com o espírito fecundador  universal, o Pai,  este Filho milagroso, capaz de  ser o infinito, o maravilhoso, e a terra, a miséria diária,  o universo feito de carne e sangue que, finalmente, encontra a sua forma definitiva na transmutação, na transformação do sangue e da carne em pão e vinho, e deste pão e vinho em carne e sangue, mas o sangue do universo, o sangue eterno das criaturas de Deus, mas, também, as criaturas por serem de Deus são, igualmente Deuses. O Filho do homem. O filho de Deus.

É este universo que subitamente povoa a alma do jovem artista. Não mais o deserto. Ou, sobretudo, a alma povoada pelo deserto, mas já agora este nada que é o deserto impregnado de sacralidade, o universo consagrado no deserto e neste mundo divinizado o artista encontra as imagens eternas das figuras da Mãe Suprema e do Filho Supremo, a Sagrada Família, a história dos anunciadores dos novos tempos. O registro dos mensageiros, dos profetas, a narração mítica da saga humana. O artista encontra uma particular história do Cosmos e do nascimento da vida. A Mãe Suprema e o seu fruto, o Filho maravilhoso que une o Céu e a Terra, o Divino e o Prosaico.

“Fiquei dois anos de cama, deprimido. Finalmente entrei no mundo das causas e sai do mundo das consequências.”.

Araujo, depoimento ao autor em 2017.

 

No histórico encontro de Woodstock, com o seu acentuado sentido místico e de rejeição dos rumos de uma civilização na ocasião entendida como de consumo, de violência e de destruição da natureza, – ou seja, superficial, bélica e predatória – um de seus principais atores, Hendrix, faz uma declaração semelhante, pede uma pausa para se conectar com o divino.

“Me dê licença, enquanto eu beijo o céu.”

“Excuse me while I Kiss the sky.”

Canção “Purple haze all around”, de 1967, de Jim Hendrix, cantada pelo próprio em Woodstock, em 1969, e registrada no documentário de 1970 “Jim Hendrix live at Woodstock”.

O mundo das coisas como são, como aparentam ser. E além disto?

É ponto pacifico que o mundo não é como o vemos, já que este nosso ver está vinculado ao sistema perceptivo do primata que somos, por nossos condicionamentos sociais, por nossa formação específica. É possível que não exista a forma definitiva do universo, tal como aponta a diversidade dos relatos em tantas civilizações, mas o universo segundo o ponto de observação A ciência dos séculos vinte e vinte um é a afirmação dos segredos ocultos da existência. A ciência têm nos revelado a existência do invisível. E, tudo leva a crer, este processo de revelação está no início de sua jornada.

Ver, no caso do artista Carlos Araujo, é um processo complexo. É um duplo jogo da alma. Não ver o aparente para ver pela primeira vez. É o movimento inicial. Não ver, para ver finalmente o que existe não por sua existência apenas, mas por sua existência e pela causa inicial. Ver o que existe, mas ver o que fez existir. Enfim, para Carlos Araujo, ver é ver o efeito e conceber a causa inicial. Observar nos efeitos o mundo das causas. E isto de maneira objetiva, por menos que pareça, pois não se trata de adivinhar o motivo das coisas terem sido feitas, mas ter consciência de que elas foram feitas. Não saber as intenções do Criador, para utilizar a nomenclatura das Escrituras, mas saber que existe uma causa e ela pode ser chamada, à falta de outra coisa, de Criador e que Ele fez surgir, ou Dele surgiu, um mundo de encadeamentos de causas e efeitos e neste mundo o homem é efeito, mas efeito capaz de observar o mundo dos efeitos, ou o mundo das aparências, ou Maya, o mundo da ilusão, e saber que o mundo verdadeiro é feito de causas e que nós só podemos contemplar as causas e os efeitos de maneira parcial, porque o nosso posto de observação é orgânico, e a visão verdadeira que só pode ser espiritual, não orgânico, não perecível.  E a visão espiritual é ainda incompleta e em crescimento.

No artista este não ver o aparente é o início, é comum que ele comece a sua história pessoal não por aprender, mas por desaprender. Ele deve despir o que existe das roupagens que as convenções lhe deram. Numa sociedade que antropomorfiza o entorno, o homem despir o mundo destas vestes fantasiosas é libertar-se para poder ver o que existe. É afastar-se da zona de conforto. Ver o convencional não é ver, é simplesmente constatar o que já está disposto para a nossa constatação, é confirmar que não vemos senão a ideologia coletiva que determina certa roupagem linguística. Ver o convencional é uma ação redundante. Desta maneira, em busca de uma visão original do mundo, ou, ao menos, e na verdade, em busca não da originalidade linguistica, mas da própria identidade, é preciso despir as coisas de seus envoltórios linguísticos, despir as coisas da banalidade das coisas. Mas como chegar ao marco zero do olhar?

Isto é difícil, mas é essencial. Entretanto, este essencial é o primeiro passo. Ver as coisas sem o conceito atribuído às coisas. E, depois deste desligamento inicial, deste abandonar a capa da ilusão coletiva, ver pela primeira vez de uma maneira própria, com os próprios olhos. Penso que é ver, para o adulto, pela primeira vez. Que deslumbramento, de repente vemos o mundo e o seu encanto, se é que ver o mundo é encantador. Ver o mundo com os olhos de Adão.

Alberto Caeiro, heterônimo do poeta Fernando Pessoa (1888-1935), o pensador objetivo, o que despreza a subjetividade como construção social, o que deseja ver as coisas como as coisas são, sem misticismo, sem subjetividade. É direto e quase rude. Não reforça a fantasia de uma poética caseira. Na verdade, Fernando Pessoa era místico e criou Alberto Caeiro, um personagem que, às vezes, é um poeta extremado, intelectual de ponta, e almeja ser um homem sem dúvidas e metafísicas, um homem simples e direto e objetivo, daqueles que sabem o que são as coisas: elas são aquilo que são e que atendem pelo nome que tem… As flores só são flores… E as estrelas, só estrelas… Ambiguidade, pois rejeita o olhar travestido de romantismo social, como hoje alguns de nós abominamos a linguagem adocicada dos textos de autoajuda. O poema número XXIV de Alberto Caeiro é o exemplo mais notável que conheço sobre a descrição do ver despido de convenções sociais.

O que nós vemos das cousas são as cousas.

Por que veríamos nós uma cousa se houvesse outra?

Por que é que ver e ouvir seria iludirmo-nos

Se ver e ouvir são ver e ouvir?

O essencial é saber ver,

Saber ver quando se vê,

E nem pensar quando se vê

Nem ver quando se pensa.

Mas isso (tristes de nós que trazemos a alma vestida!),

Isso exige um estudo profundo,

Uma aprendizagem de desaprender

E uma sequestração na liberdade daquele convento

De que os poetas dizem que as estrelas são as freiras eternas

E as flores as penitentes convictas de um só dia,

Mas onde afinal as estrela não são senão estrelas

Nem as flores senão flores

Sendo por isso que lhes chamamos estrelas e flores.

A magia surge da bruma. Carlos Araujo leva um tempo ilimitado no preparo do suporte, camadas e camadas de pigmentos que se acumulam, são lixados, deixados em observação. É desta mancha indefinida que surgem as sugestões de imagens. Esta bruma construída, névoa a impedir imagens mecânicas, é a correspondência externa da intuição e do sonho do artista. A matéria nasce do informe.

O espírito e a espiritualidade nascem da bruma, da mancha, da névoa interna e externa, do caso sem acaso.

O micro tem a estrutura essencial do macro.

O imaginário na pintura de Carlos Araujo não está sob controle, mas o artista está sob controle de sua intuição.

Há em Carlos Araujo uma rara capacidade de definir o seu tema de maneira certeira e cuja aparência final, quando a obra esta terminada, dá a sensação de que foi feita em um só momento. Ou, até mais preciso e fundamental, a sensação de que não poderia ser diferente, que nenhuma outra solução seria possível.

Algumas obras e alguns artistas dão esta sensação. Não são muitos. Mas alguém teria o desejo de melhorar, completar, algumas das principais obras de Vincent van Gogh, Johannes Veermer, Henri Matisse, Claude Monet, Constantin Brancusi, Paul Klee, Katsushika Hokusai, Hiroshige, Leonardo da Vinci?

Também as aguadas de artistas japoneses dos séculos XVI e XVII, do período Edo, como Hanabusa Itchô, Hatta Koshú, Kanó Naonobu, transmitem a sensação de que são definitivas. Parecem tão distantes e, no entanto, estes vários séculos e civilizações díspares se encontram nesta sensação perceptiva de que certas obras de arte tem a mesma realidade sutil, a de que são o resultado de um momento em que o artista estava envolto numa convicção além da certeza. O artista trabalhou no momento exato em que estava ausente de todas as dúvidas e imerso numa convicção além do seu saber, além do que conhecia.

Um universo que se importa.

Há um poema famoso de Carl Sandburg (1878-1967) que trata magistralmente deste tema, da indiferença do Universo às coisas humanas. Ele diz que a grama tudo cobre e que, ao final, resta somente a grama. Este “tudo” são os exércitos, os reinados, as batalhas, as obras dos homens. Sandburg é um importante poeta americano, mas de reputação esmaecida pela grandeza do poeta Walt Whitman (1819-1892) de quem Sandburg é claramente seguidor.

Talvez este notável poema seja filho espiritual do Eclesiastes bíblico, que também acentua a indiferença do universo aos feitos e fatos humanos. O sol se levanta todos os dias… A grama cresce todos os dias…

O universo indiferente.

O universo como sistema vivo, Pois filho, criatura, produto, do Criador. O universo faz parte do ser humano, também ele uma criatura do Criador, e como todas as coisas existentes eles tem ligações claras e ocultas e juntos compõe um sistema. Para Carlos Araújo o Universo é vivo e faz parte do homem e o homem faz parte do universo e um importa ao outro. É o que se deduz de sua obra, onde todas as coisas estão integradas e são faces múltiplas do mesmo corpo, o mundo de Deus.

O Livro do Eclesiastes ou o Pregador é um clássico da literatura ocidental, mesmo tendo sido escrito no Oriente Médio, pois pertence à Bíblia, ao Antigo Testamento. A autoria é atribuída ao Rei Salomão e tem acentuado cunho filosófico e existencial. E possui o conceito de um tempo circular e de uma existência da humanidade com ciclos históricos ou civilizações históricas, ciclos temporais ou civilizações extintas e novas civilizações. O que é já foi e o que foi voltará a ser. E seja o que for que o homem faça isto será vaidade e canseira e, seja o que for, alegria ou desalento, o sol se levantará novamente e a Terra para sempre será. As gerações passam, ou seja, morrem, e a Terra permanece e o sol e o vento todos os dias fazem o seu ciclo.

“Tudo é vaidade.

Palavra do Pregador, filho de Davi, rei de Jerusalém:

Vaidade de vaidades! Diz o pregador\; vaidade de vaidades! Tudo é vaidade.

Que proveito tem o homem de todo o seu trabalho, com que se afadiga debaixo do sol?

A eterna mesmice.

Geração vai, e geração vem; mas a Terra permanece para sempre.

Levanta-se o sol, e põe-se o sol, e volta ao seu lugar onde nasce de novo.

O vento vai para o sul, e faz o seu giro para o norte; volve-se e revolve-se, na sua carreira e retorna aos seus circuitos.

Todos os rios correm para o mar; e o mar não se enche; ao lugar para onde correm os rios, para lá tornam eles a correr.

Todas as cousas são canseiras, tais que ninguém as pode exprimir; os olhos não se fartam de ver, nem se enchem os ouvidos de ouvir.

O que foi, é o que há de ser; e o que se fez, isso se tornará a fazer; nada há, pois, novo debaixo do sol.

Há alguma cousa de que se possa dizer: Vê, isto é novo? Já foi nos séculos que foram antes de nós.

Já não há lembrança das cousas que precederam; e das cousas posteriores também não haverá memória entres os que hão de vir depois delas.”

Nenhuma destas questões, podemos perceber, nasceu no dia de hoje, mas são permanentes não só da nossa civilização, mas da história humana. Nós e o universo. Nós somos importantes para o universo? Ou seja, nós temos significado? Ou simplesmente nós somos fruto do acaso, da combinação de substâncias orgânicas, filhos da circunstância, de condições propícias ao surgimento da vida, como nos diz constantemente os cientistas da astrofísica,  relatando um de seus objetivos, em suas pesquisas com potentes telescópios: descobrir condições químicas para o surgimento da vida em outros corpos celestes.

Hermann Hesse, uma das presenças literárias mais fortes do século vinte, autor de “O Lobo da estepe” e “Demian”, escreveu o ensaio “Sobre Borboletas”, de 1935, publicado no livro “Pequenas Alegrias” (edit. Record). Tradução de Lya Luft.

“A capacidade de entender a linguagem da natureza, de alegrar-se com as múltiplas manifestações da vida criadora, e a necessidade de dar algum significado a essa linguagem múltipla, o desejo de obter respostas, é tão velho quanto a humanidade. A intuição de que há uma oculta e sagrada unidade por trás dessa grande variedade, uma mãe-primitiva por trás de todos os nascimentos, um criador por trás de todas as criaturas, esse maravilhoso impulso ancestral do homem para a origem do mundo e para o segredo dos indícios, é a raiz de toda a arte, hoje como sempre. Estamos hoje infinitamente distante de uma veneração da natureza no sentido devoto de procurar uma Unidade na variedade. Não gostamos de reconhecer em nós um impulso primitivo e ingênuo, e fazemos piadas a respeito. Mas provavelmente é um engano julgarmos que nós, e toda a humanidade atual, somos irreverentes e incapazes de uma experiência devota da natureza. Apenas, de momento, nos é difícil ou impossível poetizarmos essa natureza inocentemente com mitos, personificar seu criador adorando-o como pai, coisa que se fazia em outros tempos. Talvez estejamos certos se eventualmente pensamos serem um pouco fúteis e lúdicas demais as antigas formas de devoção, e se julgamos adivinhar que a poderosa e fatal inclinação da moderna física para a filosofia é no fundo um fenômeno religioso.”

Ao contrário do que se afirma tanto através da mídia e instituições de ensino, a dessacralização da arte, acho que a arte passa por um acelerado processo de ressacralização. A chamada dessacralização da arte é uma espécie de artigo de fé que é sustentado por um sistema de crenças cujo alvo inicial era a louvação do Iluminismo e das formas industriais de produção, e cujo anátema era a Igreja Católica. Este artigo de fé é mantido por instituições que se pretendem inteiramente cientificas, como as universidades, e não admitem outras hipóteses, especialmente no terreno da arte, de difícil controle…

A arte totêmica, fruto das sociedades míticas e ritualísticas, está presente no todo ou em parte em obras contemporâneas e, inclusive, na atitude de inúmeros artistas contemporâneos. Os artistas do absoluto, do fantástico, da arte como manifestação sagrada. A sacralidade como postura existencial, independente se o artista é marxista, panteísta, espiritualista, religioso, surrealista…

Afastada a ideia da sacralização da arte e da ação do artista como um oficiante desta ação de interpretar o mundo como um ser único e de perpetuar imagens simbólicas desta realidade sutil, seria incompleto a análise da obra e da postura de artistas como Frans Kracjberg, Israel Pedrosa, Iberê Camargo, Amílcar de Castro, Bené Fonteles, Ismael Nery, Candido Portinari, Yukio Suzuki, Megumi Yuasa, Manabu Mabe, Vicente do Rego Monteiro, Alfredo Volpi, Marcello Grassmann, Oswaldo Goeldi, Lívio Abramo, Mario Cravo Jr., Tunga, Arthur Luiz Piza, Antonio Bandeira, Roberto Magalhães, Maria Bonomi, Siron Franco, Antonio Hélio Cabral, Henrique Léo Fuhro, Pablo Picasso, Constantin Brancusi, Francis Bacon, Jackson Pollock, Joaquin Torres-Garcia, Armando Reveron, Alejandro Otero, Jesus Rafael Soto, José Gurvich, Alexander Calder, Paul Klee, René Magritte, Marc Chagall.

E não existe tema ou assunto proibido na arte. Todo dogmatismo neste sentido é ação retrograda e totalitária. O que nos diz se um assunto ou tema é suficientemente bom ou “artístico” é a qualidade do artista. Otto Maria Carpeaux, autor da monumental “História da Literatura Ocidental”, cujo capítulo sobre Dante, foi utilizado como prefácio da importante tradução da Divina Comédia por Italo Eugenio Mauro, afirma que a Comédia, uma obra mística e religiosa, é o ponto culminante da nossa literatura: “A Divina Comédia é um edifício colossal, cuja unidade está garantida justamente pelas convicções religiosas, filosóficas e políticas do poeta”.

“… não é abstrato um mundo em que as metáforas e comparações de realismo intenso nos apresentam paisagens imaginárias e no entanto inesquecíveis…”.

E o poeta argentino Jorge Luis Borges, renovador da literatura mundial na segunda metade do século vinte, dedica um livro à Divina Comédia, “Nove ensaios dantescos”. E é neste livro que ele escreve um dos mais belos ensaios das últimas décadas, “O último sorriso de Beatriz”. Neste ensaio Borges eleva a condição de Beatriz ao mais alto patamar. É um tratado sobre a alma feminina. Eleva?  Revela, na verdade. Borges parte do canto XXXI do Paraíso. Italo Calvino, um dos mais sólidos intelectuais europeus do século vinte, em ensaio sobre Borges (uma homenagem), destaca estes textos sobre a cultura italiana.

Eu sei que a curiosidade agora exige que eu mostre o último sorriso de Beatriz. A voz que narra é a de Dante.

“Assim orei, e ela, tão distante,

quão parecia, sorriu e olhou para mim,

e à Eterna Fonte volveu seu semblante.”

 

“Cosi orai; e quella, si lontana

Como parea, sorrisse e riguardommi;

Poi si tornò all’etterna fontana”

A obra de Carlos Araujo é inteiramente visual, ainda que exista uma narrativa histórica de seus assuntos, pois eles têm origem em grande parte no estudo do Velho e do Novo Testamento. É possível, portanto, a emoção do encontro com esta obra antes do entendimento completo da sua pintura. A emoção poética é anterior ao entendimento

O poeta, ensaísta e editor T.S. Elliot, personagem central na cultura do século vinte, num longo ensaio, “Dante”, justamente sobre este tema, defende a ideia primordial da existência de uma emoção poética avassaladora e da emoção poética como precedente ao próprio entendimento. E neste ensaio ele descreve o entendimento como o conhecimento da vida do poeta, das circunstâncias históricas em que a sua obra foi criada, as relações com outras produções poéticas do mesmo período. E, até mesmo, prescinde do saber minucioso do idioma em que foi escrito o poema. E esta ousadia de Elliot é impressionante, pois num homem de tanta presença intelectual na vida cultural, esta precedência da emoção em relação à inteligência, é surpreendente. Existem muitas maneiras de entender uma obra de arte. E muitas maneiras de nos colocarmos de maneira “inocente” diante dela. Para Elliot, a emoção poética e o primeiro impacto são suficientes.

Podemos estudar a vida do autor, a sua história, a sua formação, a natureza de sua época, os fatos psicossociais, percurso da obra e do artista, saber de onde vieram, como vieram e o que deseja. Neste caso, nos aproximamos da obra já com informação precisa de muitos fatos e elementos, muitos dos quais nada têm a ver com a obra. Estaremos preparados, motivados, capazes de encaixar a obra em seu contexto. Elliot acredita que este excesso de informação é prejudicial ao encontro entre o público e a obra.

Podemos fazer exatamente o contrário. Olhar, observar a obra e na medida em que ela nos interessa, no instante em que nos comove ou excita procurar saber mais. Neste caso, é a obra que nos incita a defendê-la. Somos conduzidos por ela.

Existirá uma “emoção poética” tão poderosa, como defende T.S. Elliot? (“Ensaios”, edição de Ivan Junqueira, trad. deste ensaio por Jorge Wanderley, Art Editora). Para Elliot esta emoção poética preside o encontro com a poesia e prescinde, ao menos no seu caso, de informações prévias sobre o poeta e a poesia. Elliot aceita uma admiração que surge no contato com a poesia. Ela fala mais do que as informações.

Pensei em reportar esta opinião do crítico e poeta, porque a obra de Carlos Araujo nos oferece a mesma questão. A visualidade desta obra é impactante e possibilita uma imediata acolhida. E também ela, de maneira acentuada, prescinde de informações prévias. Ela convida a ceder ao impacto, viver a emoção poética do encontro, a não perder o sentimento inicial.

O primeiro impacto não é de espanto diante da grandeza deste trabalho, mas de surpresa. É inegável que estamos diante de uma obra assertiva, vigorosa, que se coloca diante do nosso psiquismo como uma opção estética, ética e mística.

É possível dizer que a arte da nossa época, em parte, tem acento no épico e no caráter descritivo. É uma arte em que o artista seguidamente mantém distanciamento do tema, como se apresentasse o tema ao público. Da mesma maneira que o teatro, no século vinte, pretendeu apresentar e descrever o tema ao público. Certo didatismo prosélito, já se vê. O teatro, neste caso, abandonou o acordo tácito pela suspensão da incredulidade. O público sempre soube que não estava diante do reino da Dinamarca. Mas aceitava que a ficção desenvolvida tinha o seu próprio vetor de realidade. Ela, a ficção, era em si mesmo a realidade. Ele sabia que ali não estava o príncipe Hamlet , mas aceitava que a história desenrolada fosse uma espécie de realidade, um ser de realidade, um ente de vida própria. O que ocasionava a adesão à história. E a emoção que ela causava. A troca da incredulidade pelo prazer da história.

A obra de Carlos Araujo nos fala e suscita duas ou três perguntas fundamentais. O assunto, afinal de contas, é importante na arte? E o tema prescinde do assunto? Vejam as dezenas de tendências englobadas numa única e “fictícia” arte contemporânea na qual o assunto chega a ser material, com o próprio objeto  (objeto industrial, lixo, corpo, partes recortadas, seres da natureza, etc.) sendo apresentados (tubarão, Mickey Mouse, cadeiras, plantas, sucata, árvores, sementes, etc.). Será uma nova versão do naturalismo?

Existem assuntos proibidos? É possível colocar representações de santos, profetas, deuses? Ou a própria simbologia, Virgem Maria, Jesus, Sagrada Família? Ou estes assuntos estão proibidos? É licito e contemporâneo representar piscinas, corpos de sunga na praia, latas de sopa; mas Jesus ou Deus fazem parte de um index de assuntos e temas proibidos? Colocar a foto do Papa coberta de excrementos de pássaros numa gaiola é justo, mas não a imagem da Virgem Maria? O que significa este enfrentamento não só estético, mas também, e fortemente, social, com o repúdio aos assuntos e temas que não tenham origem ou parentesco com o Iluminismo senão uma imposição hegemônica?

Não só o tempo é relativo, como, em nós, ele ganha uma dimensão particular e, seguidamente, uma dimensão apequenada. Certamente na nossa vida, a história da nossa vida, mesmo entre os longevos, é muito curta. O que serão 70 anos, 100 anos ou 120 anos? E para os atentos à história particular, a história familiar, quem terá conhecido alguém que fala em gerações e se refira a um antepassado mais antigo que o seu bisavô? E, no entanto, todas as escrituras sagradas nos ensinam que somos parte de uma interminável cadeia sucessória.

E a nossa própria ciência do século dezenove e vinte ao recuperar para nós a história da linguagem e das civilizações nos apresenta um encadeamento do qual somos não o último fruto, mas um simples fruto, uma semente intermediária, um voo do que será a humanidade que, por sua vez, será um fruto intermediário do que virá. Na arte a cadeia sucessiva de artistas e produções é interminável e permanente. Ela existe e o seu tempo é particular porque, de maneira invisível, mas palpável, os artistas podem ser agrupados não por gerações, mas por afinidades sensíveis.

Carlos Araujo é o maior autor de obras sacras do Brasil. Ele fez mais obras sacras, místicas, de assunto religioso, do que Candido Portinari. Faltou a ele um lugar convencional para reunir parte desta produção.  Candido Portinari, sem esta intenção explícita, movido apenas pelo amor filial, fez a “Capela da Nonna”, em Brodowski, para que a sua avó, já idosa, pudesse rezar todas as manhãs sem a necessidade de se deslocar até a igreja.

Carlos Araújo fez do livro e da informática de comunicação a sua Capela da Nonna. A sua “Capela…” está na nuvem, é transportável, viajante, cada um a pode ter. É um código.

Este artista rompe o pacto de silêncio sobre o místico e tem a ousadia de discursar sobre o incógnito. Ousadia em refazer o mito religioso do mundo. Identificar, interpretar, representar o sagrado. Dar voz e cara ao inconsútil, ao oculto. Carlos Araujo se propõe a narrar o início do mundo. A criação da Luz. A Árvore da Sabedoria. A Árvore da vida. O Mistério da Criação. A origem da existência, a criatura e o Criador. O Eterno e o Efêmero. O seu desafio como artista é imenso: representar o irrepresentável, a totalidade, o abstrato, pois é tudo “imensidão infinita”.

A luz penetra nas trevas; a síntese da sua proposta. Ou o vislumbre da face de Deus.