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MEMÓRIAS DO LAGARTO CABOVERDIANO
Maria Estela Guedes
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Repercussões internacionais
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Nem se sabe ao certo se sou ou não uma espécie extinta. Com o fito de me conhecerem, no entanto, me seguiram e perseguiram, como se eu fora o Messias. Eis o que continuo a mostrar-vos.

Em 1876, Francisco Martínez y Saez, do museu de Madrid, escrevia a BB: Yo no ocultaré à U. que deseo mucho que en nuestras colleciones tengamos el Macroscincus coctei. Ou BB não lho enviou ou eles o extraviaram, porque, ainda há pouco, a minha biógrafa coscuvilhou de ponta a outra as colecções herpetológicas do museu madrileno, sem vislumbrar por ali rasto da minha passagem. Uma ficha em branco, com o meu nome em cabeçalho, assinala o lugar de uma campa sem morto. Valha-me ao menos isso, conhecem-me de ouvir dizer e ainda esperam pelo meu segundo advento.

Já em 1893, o museu de Berlim teve melhor sorte, há registo de que Bocage ofereceu a Müller um espécime. Aliás, Müller já me conhecia em 1887, visto que figuro no seu catálogo do museu de Basel, com o nome com que anteriormente me haviam classificado entre parêntesis, diga-se sem parêntesis que um nome incrível: «Charactodon C. Troschel». No museu de Berlim, em 1856, antes portanto das descobertas de BB, também eu já era conhecido, de nome e não pessoalmente, pois reza o catálogo que há quatro exemplares de Euprepes cocteani D. B, do Egipto e da Núbia. Eu sou exclusivo de apenas dois calhaus à face da Terra, os ilhéus Branco e Raso (1). Deram o meu nome a outro lagarto qualquer, benza-os Deus! (2).

E numa carta quase ilegível, para BB, igualmente de Berlim, 1875, Peters escrevia:

J'ai vu I'année dernière des Macroscincus Cocteani vivants au jardin (des Plantes?) et au mois de Septembre je voyais (vos?) intéressants Reptiles des Isles du Cap Vert à Gênes. II parait que I'Afrique soit inépuisable.

Se bem' entendi, Peters viu-me a saracotear algum rabo novo em folha, logo no ano da publicação de um dos artigos de BB, no Journal de Zoologie, o que só quer dizer que a Europa se apressou a mandar recado para me caçarem no ilhéu Branco. Decerto Paul Gervais, o conservador do Museu de Paris. Numa carta de Milne-Edwards para Bocage, a que foi recortado autógrafo e data (deve ser de 1883, data das campanhas do Talisman, quando o zoólogo me procurou no ilhéu Branco), abrindo assim buraco irreparável na outra face da missiva, lê-se, deduzindo eu o que enfio em parêntesis:

(Nous avons au Jardin des Plantes des Macroscincus) coctei de I'ilot Branco, tous bien vivants. Cette espèce est curieuse et il est étonnant de ne pas Ia trouver en Afrique. D'ou vient-elle? II est un representant de Ia faune de I' Atlantide?

Milne-Edwards interroga-se. A sua pergunta, de tão bela, franqueia os umbrais da ciência para entrar nos paços da poesia (3). E o que eu lamento não é a falta de resposta, sim que BB não a tenha feito igualmente. Nenhuma outra criatura por ele estudada lhe granjeou tanta notoriedade no estrangeiro como eu. Orlandi, por exemplo, até o considera autor da minha espécie, esquecido da prioridade devida a Duméril e Bibron (4). Depois dos dois primeiros artigos, BB nunca mais me ligou pevide. Só umas referências breves, avaras, tinha de ser. Não podia evitar citar-me para o Raso, outro autor qualquer ainda se lhe adiantava, era chato. Grande figura, a ornitologia e herpetologia angolanas devem-lhe muito, para não falar de invertebrados como a Hyalonema lusitanica, uma esponja, que génios do tempo tiveram a lata de considerar artificial, para risota epistolográfica sua e de Günther (5). Faço das tripas coração prestando-lhe justiça, porque comigo portou-se mal. É que nem um elogio, uma amabilidade, um galanteio, nicles! Só me mexia com luvas e pinças, nunca me fez uma festa, ligava muito mais importância ao terrário ao lado do meu, onde rabiava a sua Chioglossa lusitanica, essa charmosa salamandra que, como eu em Cabo Verde, tem na Península Ibérica uma área de distribuição limitadíssima. BB nunca se dignou ir ao biotério com uma folha de alface para mim. Quando ia, ficava ali tempos escoados, a olhar e a congeminar, a cofiar as barbas, mas mexer, é o mexes! Perguntar, é o perguntas! Conversar comigo, é o conversas! Não tenho motivos para me sentir indignado? Sabia muito mais do que disse, não o escreveu porque, enfim, achou mais assisado calar a boca. Aliás, a minha reclamação atinge todos os que me procuraram, acharam e calaram, e foram bastantes, caso de Peters, que, infelizmente, erra ao supor a Africa inesgotável, ele, que por lá andou como Serpa Pinto, Stanley, tantos outros, e viu o que jamais vos será dado ver a vós. Muito se esgotou já, em especial este vosso obsequioso e atento criado. Pelo menos, consta.

Angel, na comunicação apresentada ao XII Congresso Internacional de Zoologia, em 1935, acerca da fauna herpetológica actual de Cabo Verde, ainda me mantém no inventário, como se não duvidasse da minha existência. Comentando os trabalhos de BB, diz que não tinham sido completados até à data. É o que estou farto de reclamar: para tanta paixão por mim, pouca literatura se publicou. Textos expressamente dedicados à minha lagartidade limitam-se a seis, algumas trinta páginas, se tanto: o de Duméril e Bibron, dois de BB, um de Orlandi e dois de Peracca. E todos dizem pouco mais ou menos as mesmas inevitabilidades morfoanatómicas, nenhum avança nada de jeito sobre a minha história. Convenhamos em que o facto é ainda mais misterioso do que eu.

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NOTAS

(1) Os autores vão alargando o habitat até cobrirem o planeta: Bocage dá mostras de só conhecer a espécie do ilhéu Branco, depois há um grande sobressalto com o aparecimento dos animais no Raso. Chevalier indica a ilha de Santa Luzia como pátria, e outros saltam para fora de Cabo Verde, negando assim o endemismo. O mesmo aliás acontece com a Chioglossa lusitanica, cuja área de distribuição alargou para Espanha, deixando vazio de sentido o adjectivo "lusitânica".

(2) Não, não deram. Troschel classificou os animais como Charactodon coctei a partir de exemplares recebidos do ilhéu Raso, na mesma altura em que Hopffer os enviava para o Museu de Lisboa do ilhéu Branco, e o seu texto está todo gralhado. Veja a bibliografia na história de Francisco Newton, em http://triplov.com/newton/, pois estas informações são posteriores à publicação do artigo em 1990.
(3) Note-se que quem se está a espalhar é o lagarto, eu assino o texto, mas não tenho responsabilidades de narrador... Sirva a história de exemplo para se tomar muito cuidado com as paródias dos naturalistas.
(4) Estes factos não são passíveis de esquecimento, Bocage foi enganado pelos franceses e agora está a ser vexado por todos. Mas estará ele inocente? Receio que não. Repare-se na bibliografia: a notícia sobre o habitat e os caracteres da "espécie" foram publicados em 3 países: Portugal, França e Inglaterra. Isto não é zoologia, é política colonial africana.
(5) Esta é outra grande história, mas tem por palco Setúbal e não as ilhas de Cabo Verde.