Este pequeno ensaio sobre o Instituto Histórico da Ilha Terceira, a sua história, a sua actividade e os seus projectos futuros, surge para corresponder à proposta ou desafio do Prof. Doutor Luís Arruda aos presidentes actuais das instituições culturais açorianas e destina-se a ser publicado no Boletim do Núcleo Cultural da Horta, que ele tão criteriosamente dirige, conjuntamente com outros sobre a mesma temática e que tratam dos congéneres, o Instituto Açoriano de Cultura, o Instituto Cultural de Ponta Delgada, o Núcleo Cultural da Horta, e a Universidade dos Açores, esta última numa reflexão do seu antigo reitor, Prof. Doutor António Machado Pires.
No meu entender, o aparecimento de pelo menos o Instituto Histórico da Ilha Terceira (o primeiro cronologicamente falando) e do Instituto Cultural de Ponta Delgada é indissociável do movimento de regeneração (para usar uma linguagem marcadamente oitocentista) do regionalismo açoriano depois da aventura cosmopolita, mas fracassada, da 1. a República.
A República fora incapaz de dar resposta aos anteriores regionalistas e traduzira-se numa resistência tenaz às idiossincrasias insulares, mesmo tendo mantido no campo administrativo a velha reforma autonomista de 1895.
O 28 de Maio de 1926, ao liquidar a República democrática, congraçou à sua volta, ou melhor dito, à volta dos seus ideários, a intelectualidade insular de matiz conservador, saudosista e construtora de uma consciência de açorianidade isolacionista. As tentativas frustradas de melhorar o sistema político administrativo herdado de 1895, com reformas em 1928, não foram capazes de matar por completo, mais que não fosse pela desconfiança, a crença nos alicerces ideológicos da ditadura. O choque provocado pela comummente chamada «Revolução de 31» e as suas consequências sociais e políticas fortaleceram o então nascente Estado Novo e conquistaram-lhe adeptos ou pelo menos colaboracionistas que anteriormente seriam suspeitos.
Feito o balanço do ajuste de contas revolucionário e contra revolucionário, o levantamento de 1931, em S. Miguel e na Terceira, acaba num divórcio feito de desconfianças entre «insulares» e «continentais», arcando estes últimos com as responsabilidades exclusivas do desassossego que haviam provocado nas pacatas sociedades urbanas insulares que até se reclamavam de os terem recebido de braços abertos nas horas negras do exílio e agora se lamentavam pela paga que haviam recebido. Tirando os casos exemplares de punição para constar de que lado estava a força, mesmo que não estivesse a razão, o fim da pequena guerra civil da Primavera de 31 era, para os açorianos, relativamente pacífico e sobretudo criava o clima necessário para uma mentalidade de promiscuidade ideológica cimentada em valores de açorianismo ou talvez ainda só de regionalismo mesmo mitigado.
Em 1938, com o Congresso Açoriano, em Lisboa, a acalmia estava restabelecida, a unidade açoriana em redor dos sagrados interesses insulares e do patriotismo local à mistura com um certo orgulho de se pertencer à Pátria Açoriana, título do livro de Gervásio Lima, complementar de Pátria Lusa, estava estabilizada na retórica oficiosa e as vozes discordantes, se as havia, não tinham espaço nem público.
Paralelamente, os homens do Estado Novo, os regionalistas náufragos em destroços dos velhos partidos democráticos e os ideólogos locais conservadores preparavam a plataforma de entendimento possível ao redor de um compromisso para a boa administração pública. Marcelo Caetano assumia a responsabilidade, investido na autoridade do seu prestígio, de ser o catalisador de todos eles e com eles dar o suporte teórico e legal que o regime estava disposto a negociar com as elites locais. Parece-me ser este o sentido da catequese de Marcelo Caetano na sua viagem aos Açores, em 1938, e da sua habilidade palaciana em encontros com os intelectuais de cada uma das cidades capitais de distrito. É evidente que o dinamismo das propostas e das negociações esbatia-se e arrefecia no velho caminhar do oriente para o ocidente e não tinha a mesma consistência em Ponta Delgada, em Angra do Heroísmo ou na Horta, mas isso era marca açoriana por excelência e vinha, pelo menos, desde o liberalismo cartista dos anos trinta do século XIX.
Assim, o Estatuto dos Distritos Autónomos das Ilhas Adjacentes, de 1940, era o resultado possível dessa laboriosa e complexa plataforma de frágeis equilíbrios políticos, ideológicos e sociais, mas era aceite pelas elites locais como um triunfo do regionalismo açorianista desejável.
As aventuras autonomistas pareciam dominadas e nascia, com o estatuto, na esperança na boa administração afastada do ardor da política partidária que havia sido a desgraça da República democrática e que convidava todos à participação, desde que se comprometessem com os princípios básicos plasmados no documento.
Em 1942, a estrutura de base do novo edifício político e administrativo dos distritos das ilhas adjacentes estava lançada e as novas Juntas Gerais pretendiam consolidar os vários sectores que a lei lhes atribuiu e entre eles os previstos no artigo 24. o da secção II, ou seja, as atribuições e competências dos novos órgãos no âmbito da educação e cultura.
Foi aqui que nasceram os institutos, como criaturas executivas da política cultural das Juntas Gerais. Basta ler o formulário do referido artigo 24. o para se compreender o paralelismo entre a lei e o programa cultural do regionalismo etnográfico que o açorianismo intelectual defendia e que os seus teóricos, principalmente em Ponta Delgada e em Angra do Heroísmo, haviam devotadamente transmitido a Marcelo Caetano que os aceitou e fixou na lei.
O que se pretendia implantar não era uma cultura açoriana dinâmica e moderna, mas antes preservar uma imagem romântica das ilhas e do seu povo, através da recolha, conservação e divulgação dos costumes, dos trajes, do folclore, das formas dialectais, enfim, de tudo o que contribuísse para perpetuar essa imagem dos Açores e do açoriano idealizado. Mas, é de realçar que tudo isso, talvez com gáudio dos ideólogos do regime, era de facto aquilo que os intelectuais, em cada distrito, defendiam e haviam proposto como programa. Pelo menos nisso completavam-se e entendiam-se.
No início de Dezembro de 1942 eram aprovados, por alvará do Governo do Distrito Autónomo de Angra do Heroísmo, os Estatutos do Instituto Histórico da Ilha Terceira que criavam a nova instituição e vinham assinados por 20 sócios efectivos, fundadores. Essa lista é só por si esclarecedora de quem era essa elite intelectual do distrito – um grupo heterogéneo que abrangia, pelo menos, duas gerações com percursos políticos, sociais e culturais diversos mas que se uniam e assumiam responsabilidades pessoais no campo da cultura. Em termos geracionais, Gervásio Lima (1876-1945), o mais velho, nascido na década de setenta, era um caso isolado. Dos treze nascidos, como ele, no século XIX, eram da década de oitenta Francisco Lourenço Valadão (1889-1969), Henrique Brás (1884-1947), João Carlos da Costa Moniz (1882-1955), Joaquim Corte Real e Amaral (1889-1987), José Agostinho (1888-1978), José Augusto Pereira (1885-1969), Luís da Silva Ribeiro (1882-1959) e da década seguinte, Francisco Garcia da Rosa (1893-1958), Frederico Lopes da Silva (1896-1979), Manuel Cardoso do Couto (1893-1953), Manuel de Sousa Meneses (1892-1958), Miguel Cristóvão de Araújo (1895-1972), Ramiro Machado (1897-1945) e Raimundo Belo (1897-1958). Os outros eram gente mais nova e todos nascidos nos alvores do século XX: Cândido Pamplona Forjaz (1901-1987), Elmiro Borges da Costa Mendes (1904-1954), Francisco Coelho Maduro Dias (1904-1986), Joaquim Esteves Lourenço (1908-1993), o mais novo do grupo, e Teotónio Machado Pires (1902-1987).
Em termos de formação académica, eram praticamente todos licenciados ou nas Universidades portuguesas ou, no caso dos sacerdotes, nas Pontifícias de Roma. Os militares eram também considerados de formação superior. Só Maduro Dias, Gervásio Lima, João Carlos Moniz, José Augusto Pereira e Raimundo Belo não possuíam formação universitária sendo, muitos deles, autodidactas, mas nomes bem firmados nas actividades literárias e jornalísticas.
Quanto ao seu passado político, e isso também não era de desprezar numa época de forte influência ideológica, os da geração dos finais do século XIX, mais directa ou menos directamente, haviam colaborado e assumido responsabilidades na República democrática, como Luís Ribeiro, que chefiara, no distrito, o Partido Democrático e presidira, por eleição, à Junta Geral, em 1914, e Henrique Brás, entusiasta da propaganda republicana no tempo da monarquia, primeiro governador civil do novo regime, deputado e senador do Congresso da República, para só invocar os casos mais proeminentes. Contudo, tanto Gervásio Lima como Luís Ribeiro haviam-se visto, com ou sem justiça, chamuscados pelo rescaldo da revolta de 1931. Da geração nascida no início do século XX estavam os homens fortes do Estado Novo que começavam agora precisamente a assumir maiores responsabilidades directas na formação da elite administrativa e política do distrito; com destaque para Cândido Pamplona Forjaz, ideólogo, chefe político e futuro governador civil. Também, três dos nascidos no final do século XIX eram suportes decisivos da ideologia do Estado Novo e na ditadura militar tinham assumido já responsabilidades políticas e administrativas; Joaquim Corte Real e Amaral, governador civil, reitor do liceu e polémico presidente da Câmara Municipal de Angra do Heroísmo, Manuel de Sousa Meneses, presidente da Junta Geral e futuro governador civil e Ramiro Machado, presidente da Câmara Municipal da Praia da Vitória.
Alguns dos outros seriam indiferentes, politicamente falando. Contudo, havia ainda influentes políticos na sombra, com destaque para os sacerdotes, simpatizantes do novo regime.
Esta plêiade havia sido recrutada, é óbvio, pelos seus já comprovados méritos culturais exercidos nos jornais da cidade, nas conferências e nos saraus literários, então muito em voga, e até em publicações de livros e de pequenas brochuras, uma vez que não havia em Angra do Heroísmo, no século XX, qualquer publicação periódica tipo revista ou boletim. Os jornais é que mantinham uma tradição de imprensa literária e cultural e eram usados como veículos de circulação de ideias e programas e neles se havia desenvolvido um regionalismo cívico e cultural que cimentara todos os que então fundavam a nova instituição.
O grupo, por outro lado, havia sido escolhido entre o corpo docente do Liceu (Cândido Forjaz, Elmiro Mendes, Corte Real e Amaral), os professores do Seminário (Garcia da Rosa, Manuel Cardoso do Couto e José Augusto Pereira), o alto funcionalismo (Francisco Lourenço Valadão, secretário do governo civil, Luís da Silva Ribeiro, secretário da Câmara Municipal, Teotónio Machado Pires, secretário da Junta Geral, todos licenciados em direito), as profissões liberais mais prestigiadas (Manuel de Sousa Meneses, médico, Henrique Brás, advogado, Ramiro Machado, médico) e entre os militares com pendor intelectual (Frederico Lopes, José Agostinho, Miguel Cristóvão de Araújo).
O que esta gente se propunha ao juntar-se, ultrapassando divergências, visões desencontradas do progresso e até interesses, era unir-se à volta de um projecto comum de intervenção cívica, de educação pública e de participação cultural e, assim, promover o estudo da história e das tradições das ilhas do distrito, garantir a protecção e a conservação do património artístico e dos documentos e arquivos históricos e contribuir para manter intacta a memória dos factos históricos e das tradições insulares, como escreveram no novel Estatuto da sua instituição. Não deixavam, porém, de sublinhar que fariam o possível por manter na sua pureza tudo o que conviesse preservar.
Comparando este programa cultural com o que Marcelo Caetano incluíra no capítulo referente à educação e cultura no Estatuto dos Distritos Autónomos, para ser da responsabilidade das Juntas Gerais, não é difícil realçar o decalque.
Para atingirem os fins que se propunham, os fundadores organizaram-se numa academia com 20 cadeiras fixas, ocupadas por sócios efectivos e vitalícios, que entre si decidiam, em assembleia plenária, não só a vida administrativa da colectividade mas acima de tudo avalizava pela discussão e decisão interna a execução dos fins culturais a que se propunha, organizando um boletim que seria o porta-voz do Instituto, nele divulgando, devidamente autorizados pelo plenário académico, os estudos e as reflexões dos sócios.
Nesta organização, que se mantém, distinguiam-se das outras instituições açorianas paralelas e, mesmo admitindo sócios correspondentes e honorários, deixavam muito vincada a matriz de academia de pares.
Foi eleito como presidente, logo na primeira sessão, o Dr. Luís da Silva Ribeiro e isto sem surpresa porque ele tinha-se já vindo a afirmar como o mais destacado interventor cultural do distrito e tinha já um nome firmado no regionalismo açoriano pelos seus escritos de etnografia, história e política administrativa, sendo considerado uma autoridade ouvida e acatada pelos poderes públicos e académicos, até nacionais. Nemésio chamava-o, com propriedade, «alma e consciência da nossa ilha e dos Açores».
Em 1952, ao fazer o primeiro balanço do decénio da vida da instituição, podia mostrar-se satisfeito com a obra realizada. Por um lado, directa ou indirectamente, o Instituto havia fundado o Museu de Angra (1948) e o Arquivo Distrital (1949) a que se veio juntar, em 1954, uma biblioteca que integrou a «Municipal», de que fora bibliotecário Gervásio Lima. No primeiro caso, distinguira-se Frederico Lopes pelo entusiasmo na recolha de materiais etnográficos que o Instituto entregou à nova instituição museológica e, no segundo, Manuel Coelho Baptista de Lima (1920-1996) que regressara à sua terra já com vasta experiência de bibliotecário e arquivista adquirida em Évora e na Assembleia Nacional e que o Instituto Histórico fizera seu sócio-honorário, em 1948. Estas duas novas instituições eram o corolário de um programa cultural das Juntas Gerais inspirado e dinamizado pelo Instituto e pelos seus sócios. Por outro lado, Luís Ribeiro soube imprimir, como ninguém, pela sua forte personalidade, uma orientação muito vincada de açorianismo ao Boletim do Instituto Histórico durante uma longa direcção que durou até à sua morte, em 1955. O boletim havia-se transformado numa respeitada revista científica permutado com prestigiadas instituições nacionais e estrangeiras e, principalmente pela mão do presidente da agremiação, era um porta-voz do açorianismo regionalista que estivera na base do programa cultural do início da academia. O açorianismo realçava-se pelos estudos etnográficos (a que hoje, pela sua variedade e interdisciplinaridade, chamaríamos de antropologia cultural) de Luís Ribeiro e de seu discípulo Frederico Lopes e pelos estudos históricos em que se distinguiram Henrique Brás, Manuel Meneses, Francisco Lourenço Valadão e José Agostinho.
Pela via da etnografia formava-se a tese de que os açorianos mergulhavam as suas raízes no Povo Português, sem interferências espúrias, e pela insularidade tinham criado a identidade própria de uma espécie de «Portugal requintado», sendo o exemplo acabado da vitalidade portuguesa. Pela história criava-se uma escola historiográfica, regionalista, exaltadora dos heróis e dos factos açorianos na grande gesta portuguesa dos descobrimentos, onde se realçava o pioneirismo da descoberta do noroeste americano como a saga dos Corte Reais e seus precursores. José Agostinho e Henrique Brás, a que mais tarde se juntou Baptista de Lima, terçaram mesmo armas críticas e polémicas em defesa da tese açoriana com nomes grandes da historiografia da expansão europeia, como Duarte Leite e Samuel Morrison.
Abriu o Instituto uma outra porta que havia, no futuro, de dar bons frutos ao estabelecer relações culturais e científicas com a comunidade intelectual dos estados de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul, fazendo de alguns nomes, como Osvaldo Cabral e Valter Piaza, de Santa Catarina, e Walter Slading e Borges Fortes, do Rio Grande do Sul, seus sócios correspondentes e honorários. Por esta via estudava-se, através da colonização do sul do Brasil e paralelamente com o estudo da emigração para os Estados Unidos, a força e a resistência da açorianidade fora das ilhas e esta como contributo decisivo para a formação de novas identidades regionais de profundas raízes culturais açorianas.
Estava em marcha o conceito de «Povo Açoriano», que, aliás, o grupo do Instituto Histórico nunca usou e até recusou pela boca de José Agostinho, certamente pelas confusões políticas que isso podia trazer. É que este grupo de intelectuais, muito afirmativos em termos culturais do regionalismo e mesmo do açorianismo, recusavam qualquer envolvimento político das suas ideias e desconfiavam da capacidade dos açorianos para o autogoverno. Aceitavam uma autonomia administrativa, mas afastavam a componente política.
Luís Ribeiro, com demasiado auto rigor, lamentava a pouca influência directa no meio terceirense porque o Instituto, no seu entender «com os olhos postos no exterior esquecera-se de nós próprios». Não era bem assim, mas é compreensível a preocupação de quem se havia proposto ser fermento cultural numa sociedade pouco dada a intelectualismos e com um baixo nível de exigência educativa.
Em dez anos a renovação dos sócios efectivos foi praticamente nula, apesar de três deles terem morrido (Gervásio Lima, Ramiro Machado e Henrique Brás) e um se ter ausentado (Joaquim Esteves Lourenço). Entrara só Inocêncio Romeiro Enes (1892-1982) que veio reforçar a equipa de etnógrafos e se transformaria numa notável figura do clero diocesano, futuro monsenhor e cónego da Sé, mas que nem pela idade nem pelas convicções alterava a unidade do grupo.
Pela via de sócios honorários é que se estabelecera contacto com nomes sonantes da intelectualidade insular não residentes na Terceira, como Vitorino Nemésio, logo em 1944, e dos micaelenses José Bruno Carreiro, Luís Bernardo de Ataíde e Rodrigo Rodrigues, em 1945, que conjuntamente com os brasileiros já evocados davam uma noção de unidade entre açorianos pelos laços da cultura. Curiosamente, não aparece nesse primeiro grupo ninguém do distrito da Horta que permanecia isolado e afastado dos movimentos dinâmicos da açorianidade. Só mais tarde, no final da década de 50, despertaria.
Com a morte de Luís Ribeiro, em 1955, foi eleito presidente José Agostinho, nome não menos prestigiado no panorama cultural açoriano e mesmo nacional e internacional, sócio dedicado e colaborador assíduo do boletim e, principalmente, um destacado cultor das ciências da natureza, faceta que não cabia no Instituto Histórico e que, por isso, desenvolveu noutras agremiações, nomeadamente na Sociedade Afonso Chaves. Mas os tempos haviam mudado, os entusiasmos e as fidelidades à política do Estado Novo arrefeciam pela parte da intelectualidade, os sócios fundadores iam, invariavelmente, envelhecendo e morrendo, a sua colaboração diminuía, a renovação dos sócios era lenta e por esta via perdia-se, inevitavelmente, a adesão a um programa cultural que havia sido a glória da instituição. O boletim não deixa, evidentemente, durante a presidência de José Agostinho, que durou até 1975, de conter importantes trabalhos de história e de etnografia, mas perdeu a unidade e a capacidade de liderança cultural que demonstrara anteriormente e não foi pioneiro na renovação, nem mesmo da historiografia açoriana, que se fez lentamente e nas universidades continentais através de jovens licenciados, de que se destacam o malogrado Julião Azevedo (1920-1953), Hélder Lima (1930-2000) e Olímpia Gil (1940-1992). Estes últimos só tardiamente foram chamados ao Instituto.
Em 1976, assumiu a presidência do Instituto Histórico, Manuel Baptista de Lima que, já anteriormente, como secretário e por doença de José Agostinho, vinha a ter papel preponderante na liderança. Durante a sua presidência deu-se um momento de renovação do Instituto que se traduziu na admissão de novos sócios e no retomar do interesse pela preservação e valorização do património construído dos Açores, área a que Baptista de Lima ao longo da sua vida profissional, principalmente como director do Museu, se tinha devotado. Por outro lado, a criação dos órgãos de governo próprios da Região e, nomeadamente a Secretaria Regional da Educação e Cultura, que lançou uma política de apoio e colaboração com as instituições culturais privadas, e ainda a criação do Instituto Universitário dos Açores (Universidade dos Açores a partir de 1980), em que o Departamento de História foi dos primeiros a desenvolver-se, permitiram um clima de colaboração e de entreajuda que muito beneficiaram o Instituto Histórico. São de realçar duas linhas de programação que deram frutos bem palpáveis. A primeira, a preparação teórica e científica da candidatura da cidade de Angra do Heroísmo a património cultural que foi elaborada pelo Instituto e, por delegação do Governo Regional (de cuja Direcção Regional dos Assuntos Culturais era responsável o sócio Jorge Forjaz), apresentada e defendida pelo sócio Álvaro Monjardino e de onde resultou a almejada classificação, em 1983. Este evento fica a assinalar a mais exemplar e frutífera das colaborações entre uma associação cívica e democrática de cidadãos e o Governo. A segunda, traduziu-se na preparação de uma reunião científica, em colaboração precisamente com a Universidade, em 1983, chamada Colóquio Internacional «Os Açores e o Atlântico», que reuniu, em Angra do Heroísmo, um destacado grupo de investigadores nacionais e estrangeiros que debateram questões de história atlântica. Este evento deveu-se, essencialmente, ao então jovem Professor universitário e sócio do Instituto, Teodoro de Matos, que iniciara um movimento de renovação da historiografia insular, precisamente através do seu magistério no departamento universitário de História e do qual muito beneficiou o Instituto.
Tanto um como o outro destes eventos foram frutuosos e tiveram continuidade académica. O Instituto não mais deixou de se preocupar e activamente contribuir para a preservação do património construído e móvel. Foi da sua iniciativa e colaboração com as estruturas oficiais que nasceram as leis regionais para a reconstrução da cidade de Angra do Heroísmo, que havia sido muito destruída pelo sismo de 1980, a estruturação do Gabinete de Apoio e Acompanhamento da Zona Classificada, em diálogo com a UNESCO e mesmo a criação do Centro de Conservação de Obras de Arte, esse também apoiado pela Gulbenkian.
As reuniões científicas, sob forma de colóquios e seminários, tiveram continuidade, quer aquelas organizadas pela agremiação nos Açores, quer aquelas outras apoiadas e da responsabilidade conjunta com outras instituições, mas todas elas marcadas pelo espírito de uma investigação renovada e de uma historiografia comparativa das várias sociedades insulares atlânticas, o que está na base do novo interesse por estas áreas de estudo.
Em 1984, assumia a presidência do Instituto Histórico o sócio Álvaro Monjardino que a ocupou até 1999. A sua presidência foi um período áureo de renovação e de desenvolvimento da actividade, aliás em íntima colaboração e diálogo com o Governo Regional, cuja política cultural foi sempre de apoio às instituições cívicas.
Os boletins desta época reflectem precisamente tais acontecimentos e muitos deles são actas de reuniões internacionais com a colaboração não só dos sócios, mas também de Professores da Universidade açoriana cuja criação e desenvolvimento só pode ser vista como um dos mais aliciantes contributos para o crescimento do Instituto, e ainda de muitos dos consagrados historiadores nacionais e estrangeiros (americanos, brasileiros e europeus) que se interessam pela história do Atlântico.
O Instituto deve orgulhar-se do seu imprescindível papel quer no despertar da consciência da necessidade de preservar, valorizar e pôr ao serviço da sociedade um património que é elemento fundamental da identidade açoriana, quer também do seu contributo para com outras instituições no desenvolver e modernizar os estudos históricos sobre o passado insular, trazendo mais compreensão às questões do nosso tempo e ao entendimento dos Açores como peça central da história atlântica, o que dá suporte teórico à açorianidade.
É ainda de realçar dos programas do Instituto a publicação de textos essenciais da historiografia clássica açoriana, nomeadamente Fénix Angrense, do padre Manuel Luís Maldonado, do século XVII, edição preparada pelo sócio Hélder Lima, projecto que vinha dos anos cinquenta e nunca conseguido realizar, e Apontamentos Topográficos, de Ferreira Drumond, do século XIX, em edição preparada por mim próprio.
Assumi as responsabilidades da presidência do Instituto Histórico em 2002 e, na minha opinião, ele está no bom caminho, não sendo necessário alterar o essencial da programação. Em 1985, foram reformulados os Estatutos e o regulamento interno de maneira a adaptá-los à nova realidade autonómica, mas preservou-se o essencial da associação e o seu carácter a um tempo privado e supletivo da acção cultural, baseado na realidade local e regional e em trabalho voluntário dos seus membros, o que tem dado bons resultados ao longo dos 60 anos de existência.
Contudo, o Instituto enfrenta novos desafios com as cada vez maiores exigências na captação de verbas, até comunitárias, para poder continuar o seu contributo para o desenvolvimento e afirmação da cultura açoriana e com uma manifesta alteração da política cultural do governo que deixou de procurar o apoio e a participação dos institutos para o desenvolvimento dos seus programas.
Funciona desde 1991, no seio do Instituto, o Centro UNESCO dos Açores que é em si só uma mais valia e permite maior abertura ao público, pois pode contar com a colaboração independentemente da categoria estatutariamente limitada de sócios efectivos, e mantém ainda o Instituto uma página na Internet (www.ihit.pt) que o liga ao mundo e torna disponíveis os trabalhos dos seus associados.
As perspectivas para o futuro são, assim, animadoras, desde que se mantenha o empenho e a efectiva participação dos sócios e se continue a desenvolver os fins que o Estatuto estabelece. Esta, como qualquer outra associação, só sobrevive com dignidade desde que os seus associados primeiro, e depois, o público em geral interiorizem que a participação cívica, voluntária e gratuita dos cidadãos é o melhor caminho para manter viva uma cultura e uma sociedade consciente e democrática. A qualidade de vida, que é um dos mais ambicionados propósitos das sociedades desenvolvidas e modernas, está também, senão principalmente, nos aspectos cívicos e culturais e sem consciência disso mesmo as sociedades correm o risco de definharem e de abandonarem a exigência para consigo próprias, sinal inequívoco de perigo da liberdade e da dignidade individual e colectiva.
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