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JOSÉ MARTINS GARCIA
Urbano Bettencourt
Bettencourt, U. (2004), José Martins Garcia. Boletim do Núcleo Cultural da Horta, 13: 59-64.
 

Sobre José Martins Garcia escreveu David Mourão-Ferreira: o seu nome “deveria ser hoje saudado como o do escritor mais completo e mais complexo que no último decénio entre nós se revelou; (...) com igual mestria tanto abrange os registos da mistificação narrativa como os da exegese crítica, tanto os da desmistificação satírica como os da transfiguração telúrica, e que sem dúvida não encontra paralelo, pela convergência e concentração de todos estes vectores, na produção de qualquer outro seu coetâneo” (Jornal Signo, 1987/9/30). As afirmações de Mourão-Ferreira reenviam às diferentes facetas de um escritor plural, suficientemente inquieto e versátil para circular entre modos e géneros discursivos e diversificar-se ainda no interior de cada um deles: romancista, contista e poeta, ensaísta e crítico, dramaturgo, mas também o cronista que uma parte do seu último livro (quase) teóricos e malditos (1999) põe em evidência, exactamente naqueles textos iniciais que assinalam uma reflexão, um comentário digressivo a partir de uma circunstância do quotidiano, filtrada e escalpelizada à luz da formação literária e linguística do autor referência esta que nos reenvia ao seu percurso profissional e académico.

José Martins Garcia nasceu na Criação Velha, Ilha do Pico, a 17 de Fevereiro de 1941, tendo feito uma parte dos seus estudos liceais na cidade da Horta. Em Lisboa, licenciou-se em Filologia Românica pela Faculdade de Letras, onde viria a leccionar entre 1971 e 1977. Chamado a cumprir serviço militar em 1965, foi mobilizado para a Guiné-Bissau, aí permanecendo de 1966 a 1968, experiência que se projecta literariamente em Lugar de Massacre (1975), um dos primeiros romances portugueses a abordar a guerra colonial, numa perspectiva paranóica e demencial; essa experiência acabaria por pontuar, sob variadas formas e em diferentes circunstâncias, a sua obra literária.

Entre 1969 e 1971 foi leitor de Português na Universidade Católica de Paris, e em 1979 rumaria aos Estados Unidos como professor convidado da Brown University (Providence), aí permanecendo até 1984; o rasto desse tempo americano é detectável em Imitação da Morte (1982) e no belíssimo e devastador livro de poemas Temporal (1986).

De seguida, ingressou na Universidade dos Açores, em cujos planos de estudo das licenciaturas introduziu a cadeira de Literatura e Cultura Açorianas e onde se doutorou com uma tese sobre Fernando Pessoa; nesta Universidade terminou a sua carreira académica como Professor Catedrático, tendo ainda ocupado o cargo de Vice-Reitor e dirigido a revista Arquipélago, do Departamento de Línguas e Literaturas Modernas. Faleceu em Ponta Delgada a 4 de Novembro de 2002.

Pela sua quantidade, mas principalmente pela sua variedade e complexidade, só muito dificilmente a obra de José Martins Garcia se deixará apreender nas malhas de uma visão unificadora, embora possamos detectar no interior da lírica e da narrativa, a confluência de determinados motivos e temas recorrentes; mas até mesmo no campo do ensaísmo a diversidade poderá ser tida como um dos traços relevantes.

É certo e reconhecido que a etiqueta nemesiana se terá colado demasiado à pele do seu labor científico, tendendo-se por vezes, e de forma abusiva, a atribuir-lhe um lugar de quase absoluta exclusividade no âmbito do seu ensaísmo. Para lá do relevo de que, obviamente, os estudos sobre Nemésio desfrutam em José Martins Garcia, isso será talvez o preço a pagar pelo seu pioneirismo, mas também pela “ousadia” do desalinhamento teórico que significava entrar nos domínios da biografia e articular a obra e o homem , num tempo ainda marcado pela enchente estruturalista; em qualquer caso, a componente biográfica é apenas uma parte, e muito reduzida, dos conteúdos de Vitorino Nemésio, a obra e o homem (de 1978 e reeditado com modificações em 1988; Vitorino Nemésio – à luz do Verbo , que recebeu o Prémio Eça de Queirós, da Câmara Municipal de Lisboa). Além disso, quem se der ao trabalho de consultar a obra ensaística de José Martins Garcia há-de encontrar aí textos sobre autores tão diversos como Jorge de Sena, Sophia de Mello Breyner, Ana Haterly, José Rodrigues Miguéis, Aquilino Ribeiro ou José Luandino Vieira, por exemplo; e não poderá deixar de considerar os longos e sistematizadores estudos dedicados à narrativa de David Mourão-Ferreira e à poesia de Fernando Pessoa, neste último caso um trabalho redigido nos Estados Unidos, posteriormente apresentado como dissertação de doutoramento, e que viria a destacar-se pelos seus aspectos inovadores na abordagem retórica dos heterónimos (Fernando Pessoa: “coração despedaçado” , 1985).

No universo ensaístico de José Martins Garcia, vamos ainda encontrar algumas das mais lúcidas e penetrantes abordagens da açorianidade literária; nos textos sobre Nemésio, naturalmente, mas ainda em estudos sobre o simbolista Roberto de Mesquita ou em ensaios de conjunto sobre a literatura açoriana, a perspicácia e a sensibilidade crítica de José Martins Garcia deixaram-nos um imprescindível contributo para a compreensão daquilo que constitui a mundividência do homem açoriano tal como ela se exprime no conjunto de obras que constituem a literatura açoriana. A chave para a leitura de uma boa parte da ficção narrativa de José Martins Garcia pode encontrar-se no seu livro Invocação a um Poeta e outros poemas (1984) e num título como “Signo Atlântico”, em que a viagem e a partida surgem sob um desígnio de fatalidade e de destino inevitável e constituem o traço indelével da condição insular, e da sua expressão lite­rária. Particularmente em romances como A Fome (1978), Imitação da Morte ou Contrabando Original (1987) encontramos personagens cuja radicação insular as atira para um percurso de dispersão, de errância e, no limite, de perdição; fugindo ao universo concentracionário da ilha, elas farão a experiência da desterritorialízação, do exílio absoluto e, olhando para si próprias, descobrirão os infernos íntimos que as atormentam e projectarão essa mesma imagem sobre o mundo envolvente. Narrativas de partida essas três, elas têm o seu contraponto em Memória da Terra (1990), uma narrativa de sentido inverso, cujo narrador vem à ilha na tentativa de reconstituir a imagem e o percurso do irmão desaparecido e, num registo entre o policial difuso e o diário, deixa o retrato de um tempo cinzento, os anos cinquenta, e de uma comunidade fechada “na clausura do cabo do mundo”.

A Fome, considerado um dos (poucos) grandes romances açorianos posteriores a Mau Tempo no Canal , de Vitorino Nemésio, poderá entender-se essencialmente como um romance de personagem, se atendermos a que aí se textualiza o percurso do jovem estudante António Cordeiro, narrador da sua própria experiência, uma experiência de iniciação na vida e nos seus mistérios, seja ela a do “mundo abreviado” da ilha (Pico, Faial), seja a do grande mundo, de que Lisboa é apenas a parte do todo (França, Estados Unidos em narrativas posteriores). Daí, em primeiro lugar, a forte dramatização da condição insular, manifesta na tensão entre a permanência petrificante, o sentir-se preso à ilha, às suas fomes materiais, e o chamamento, o apelo do desconhecido, as fomes de distância, que diferentes sinais exacerbam.

Todavia, e a um outro nível, o percurso individual é indissociável de um percurso histórico e colectivo, é a concretização individual de um destino que se projecta sobre a personagem como manifestação de uma fatalidade histórica colectiva. O início da narração convoca explicitamente uma fonte documental (o texto do cronista Frei Diogo das Chagas sobre o povoamento do Pico por Fernando Álvares Evangelho) e a que se seguirão outras de diferentes autores, entre eles Gaspar Frutuoso e, particularmente significativo, o seiscentista António Cordeiro, autor da História Insulana das Ilhas a Portugal Sujeitas; mas a citação é aqui uma apropriação do texto alheio, uma incorporação no próprio discurso, abolindo o tempo real e transformando o narrador numa personagem transtemporal, em perfeita consonância com a auto-designada “estética da transmigração” que lhe permite chamar-se sucessivamente António Cordeiro (nome também de navio e do narrador-protagonista de Imitação da Morte ), Fernando Álvares Evangelho e Constantino, caçador de baleias no século XIX. Este processo de condensação temporal proporciona, por um lado, a “memória antiga” que o narrador em si congrega, uma memória de raivas, espezinhamentos, abandono, fomes, solidão e desespero, mas assinala, por outro, a consciência da memória em que assenta a literatura.

Numa outra perspectiva, convém ainda chamar atenção para uma das mais imediatas vertentes da obra de José Martins Garcia, a sua dimensão satírica – projecção de uma determinada visão do mundo e de um relacionamento distanciado e crítico em relação a ele e às suas normas e condutas, e que, em termos literários, se organiza com base em procedimentos linguísticos e retóricos diversificados. A sátira escolhe os seus alvos, as suas vítimas, e joga-se toda na inventiva e nos mecanismos da linguagem que, da ampliação à atenuação, proporcionam o espelho deformante (côncavo ou convexo) em que o mundo poderá olhar-se na sua imagem ora ridícula, ora burlesca, (e eventualmente corrigir-se). Processos como a citação, a paródia, a alusão, a antífrase, o sarcasmo com o seu o pendor hiperbolizante sucedem-se em José Martins Garcia, construindo uma linguagem que alterna a violência com a expressão subtil, desconstruindo sentidos fossilizados e questionando o poder da própria linguagem ou a linguagem enquanto poder e a fragilidade da sua própria convencional idade. Esses procedimentos servem o propósito satírico e nas suas diferentes modulações instauram o relativismo, a começar pelo da linguagem, anulam as verdades absolutas e, para lá do maniqueísmo do lamento trágico ou da exaltação épica, abrem espaço para uma coisa outra, o riso e o seu forte poder desestabilizador e libertador também: “satirizar a loucura que se pretende lúcida, rir do poder e das suas vaidades... Eu creio que esta última atitude é que representa a verdadeira solidariedade para com todos os que sofreram os pontapés dos tirantes, dos ditadores. Não é cantarolando amor que, efectivamente, se ama. Ama-se melhor quando se resiste e muito melhor quando se resiste desmistificando o opressor” –confessou o autor em entrevista dada por ocasião da saída de Memória da Terra (veja-se Estante – jornal de informação editorial , n.° l, Vega, 1991).

Uma leitura atenta às suas relações transtextuais não deixará de verificar o diálogo que a escrita de José Martins Garcia estabelece com a tradição literária açoriana, que ele tão bem conhecia e da qual expressamente se reclamava herdeiro e participante, em entrevista dada em 1986. Mas em termos gerais o que esta escrita opera é uma reversão ou mudança de registo que, sendo também de perspectiva, institui um outro ângulo de visão na configuração literária do universo insular: em vez daquilo a que Umberto Eco chamaria uma “estética da consolação”, que concilia os contrários e os conflitos, dilui a memória das feridas e das dores, envolvendo tudo num apaziguador tecido de melancolia e nostalgia, a escrita de José Martins Garcia exacerba essa memória, revolve-a no seu desespero e na sua angústia, nas suas misérias também, num registo múltiplo que passa pela ironia, pelo burlesco e mesmo pelo grotesco, para dizer que, ao contrário do que afirma uma personagem em Gente Feliz com Lágrimas , de João de Melo, nenhuma distância ou afastamento, nenhum sofrimento chegará para “absolver as paisagens malditas”.

Desde há alguns anos, a obra de José Martins Garcia tem vindo a ser objecto de estudo sistemático e aprofundado por parte de Luiz Antonio de Assis Brasil, romancista e Professor Titular na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Brasil, onde, aliás, tem orientado dissertações de mestrado e doutoramento sobre a Literatura Açoriana e, em particular, sobre José Martins Garcia. Um desses trabalhos, já publicado em Portugal, é da autoria de Lúcia Helena Marques Ribeiro e intitula-se José Martins Garcia – A Questão da Identidade da Terra e a Ideia de Perma nência em «Contrabando Original» [1998, Lisboa, Salamandra]. No seguimento da teorização de Assis Brasil, a autora explora as potencialidades de uma leitura focalizada na permanência (e no seu carácter petrificante) enquanto princípio organizador (ou desorganizador?) do mundo naquele romance – princípio que pode igualmente detectar-se no resto da sua obra, até na lírica, pense-se, por exemplo, no seu último livro de poemas, No Crescer dos Dias (1996), e na incidência dos mecanismos retóricos, de combinatória e repetição, que servem a expressão de uma mesmidade sufocante. Ainda aqui, esta permanência poderá constituir a (re)versão paródica do motivo do «tempo suspenso», que atravessa al­guma literatura açoriana e muito do olhar exterior sobre os Açores numa perspectiva a-histórica e bucólica, incapaz de levar em linha de conta mesmo aquele pouco de suor que Nemésio achava necessário para temperar o mundo adâmico insular.

Ponta Delgada, Outubro de 2003

 

Obras referidas no texto:

(1975), Lugar de Massacre . Lisboa, Afrodite. (1978), Vitorino Nemésio , a obra e o homem . Lisboa, Arcádia. (1978), A Fome. Lisboa, Afrodite. (1982), Imitação da Morte. Lisboa, Moraes. (1984), Invocação a um Poeta e outros poemas . Angra do Heroísmo, Secretaria Regional da Educação e Cultura. (1985), Fernando Pessoa: “coração despedaçado” . Ponta Delgada, Universidade dos Açores. (1986), Temporal. Providence, Gávea Brown. (1987), Contrabando Original. Lisboa, Vega. (1988), Vitorino Nemésio – à luz do Verbo. Lisboa, Vega. (1990), Memória da Terra . Lisboa, Vega. (1996), No Crescer dos Dias. Lisboa, Salamandra. (1999), (quase) teóricos e malditos. Lisboa, Salamandra.

Outras obras de referência do autor:

Ensaio: (1987), Para uma Literatura Açoriana . Ponta Delgada, Universidade dos Açores. (1987), David Mourão-Ferreira/ /Narrador . Lisboa, Vega. (1995), Exercício da Crítica. Lisboa, Salamandra. Conto: (1978), Receitas para Fritar a Humanidade . Lisboa, Edições Montanha. (1979), Morrer Devagar. Lisboa, Arcádia. (1987), Contos Infernais . Ponta Delgada, Brumarte. (1992), Katafàraum Ressurrecto. S.I., M. Garcia. Teatro: (1987), Domiciano, Angra do Heroísmo, Direcção Regional de Assuntos Culturais (Prémio Armando Côrtes-Rodrigues, da SREC).

Urbano Bettencourt - Departamento de Línguas e Literaturas Modernas, Universidade dos Açores. Rua da Mãe de Deus. Apartado 1422. 9501-801 Ponta Delgada Codex.