Babel, bênção ou maldição?

FREI BENTO DOMINGUES

1

Para os meios de comunicação, a moda mais recente é a preocupação com as divisões na Igreja católica que me parecem coisa de pouca monta. Vencer a separação entre as igrejas do oriente e do ocidente e entre católicos e protestantes tem sido a beleza do horizonte do movimento ecuménico, nas suas diversas expressões. Quem conhecer o movimento cristão sabe que, desde o começo, esteve sempre exposto a divisões. Os apelos a que todos sejam um, significam a dificuldade em conseguir uma unidade plural. O cristianismo continua a ser uma Sinfonia Adiada[i].

O que custa não é a comunhão, não é a diversidade, nem  a liberdade. O que custa é manter estas três atitudes em simultâneo. Quem insiste apenas na comunhão, tem problemas com a diversidade e com a liberdade. Quem, pelo contrário, exalta a diversidade e a liberdade é porque, em nome da comunhão, sente a ameaça da unicidade.

O mito da Torre de Babel[ii] não é de fácil interpretação. Supõe-se que Deus se sentiu ameaçado por uma Torre que chegava aos céus, obra da unicidade linguística: “ em toda a Terra, havia somente uma língua e empregavam-se as mesmas palavras (…) Vamos, pois descer e confundir de tal modo a linguagem deles que não consigam compreender-se uns aos outros. E o Senhor dispersou-os dali por toda a Terra”.

É bom ler o texto na íntegra. Vem a seguir à lista dos povos, as famílias de Noé, segundo as suas genealogias e as respectivas nações. Delas, segundo o mito, descendem os povos que se espalharam, após o dilúvio sobre a Terra.

Uma só língua ajudava muito. É preciso uma maldade muito grande para destruir algo que facilitaria tanto a vida a todos. É com esta astúcia que está construído o texto. Ainda hoje, existe essa nostalgia, assustadora. A linguagem é a marca primordial do ser humano. A unicidade linguística só seria possível por clonagem.

Quem imagina os seres humanos e os povos cópias uns dos outros, isto é, quem conhece um, viu-os a todos, tem de sentir a humanidade como um campo de concentração do qual não pode sair. É o mesmo do mesmo, sempre o mesmo, o sufoco universal. A originalidade irrepetível de cada um, seria substituída pela infinita repetição.

2

Costuma-se contrapor a referida confusão das línguas de Babel com a narrativa do Pentecostes, um dom linguístico muito especial. Os Actos dos Apóstolos[iii] contam tudo: de repente, ressoou, vindo do céu, um som comparável ao de uma forte rajada de vento, que encheu toda a casa onde os discípulos se encontravam. Viram aparecer umas línguas, à maneira de fogo, que se iam dividindo e pousou uma sobre cada um deles. Todos ficaram cheios do Espírito Santo e começaram a falar outras línguas, conforme o Espírito lhes inspirava que se exprimissem. Residiam em Jerusalém judeus piedosos vindos de todas as nações que há debaixo do céu. Ao ouvir aquele ruído, a multidão reuniu-se e ficou estupefacta, pois cada um os ouvia falar na sua própria língua. Atónitos e maravilhados diziam: mas esses que estão a falar não são todos galileus? Que se passa, para que cada um de nós os oiça falar na nossa língua materna? Partos, medos, elamitas, habitantes da Mesopotâmia, da Judeia e da Capadócia, do Ponto e da Ásia, da Frígia e da Panfília, do Egipto e das regiões da Líbia cirenaica, colonos de Roma, judeus e prosélitos, cretenses e árabes ouvimo-los anunciar nas nossas línguas as maravilhas de Deus! (…)

Estavam todos assombrados e, sem saber o que pensar, diziam uns aos outros: que significa isto? Outros, por sua vez, diziam, troçando: estão cheios de vinho doce.

Esta passagem dos Actos não desmerece, em colorido, da narrativa da Torre de Babel. Aqui há uma convocatória para a dispersão. Uma convocatória de todos os povos e línguas, a máxima diversidade na máxima unidade. O Espírito de Cristo é para todos, respeitando e promovendo a originalidade de cada um.

Era precisa a solenidade insólita desta narrativa para significar que o movimento cristão era um começo completamente novo. Não é o sufoco do mesmo, a repetição da repetição. É o apelo do próprio Deus para a criatividade. A Igreja, fora da criatividade, morre. Os Actos dos Apóstolos ficavam bem como uma banda desenhada das aventuras do Espírito Santo. As circunstâncias mais imprevistas não eram um empecilho, mas uma provocação!

3

No âmbito dos carismas, S. Paulo viu-se muito atrapalhado com os que falavam muito para não dizerem nada. Tinham o carisma de falarem línguas que ninguém percebia[iv]. Quis resolver a questão de uma penada no célebre cântico do amor: ainda que eu fale todas as línguas dos homens e dos anjos, se não tiver amor, sou como um bronze que soa ou um címbalo que retine.

Nas normas para o uso dos carismas, aconselha a procurar o amor e a aspirar aos dons do Espírito, mas sobretudo ao da profecia. Pois, aquele que fala em línguas, não fala aos homens, mas a Deus: ninguém, de facto, o entende, pois o Espírito diz coisas misteriosas (…) Quem profetisa está acima daquele que fala em línguas, a não ser que também as interprete, para que a assembleia possa tirar proveito. Imaginai, agora, irmãos, que eu ia ter convosco e vos falava em línguas: de que utilidade vos seria, se nada vos comunicasse nem por revelação, nem por ciência, nem por profecia, nem por ensinamento? (…) Se a vossa língua não proferir um discurso inteligível, como se há-de saber o que dizeis? Sereis como quem fala ao vento. Há no mundo não sei quantas espécies de línguas e todas têm o seu significado. Ora, se eu não conheço o significado de uma língua, serei como um bárbaro para aquele que fala e, aquele que fala, também o será para mim.

Paulo, mesmo na oração, não suporta não entender. Se tu elevas um cântico de louvor só com o espírito, como pode o que participa como simples ouvinte responder Amén à tua acção de graças, visto que não sabe o que dizes? A tua acção de graças poderá ser, certamente, muito bela, mas o outro não tira nenhum proveito.

O obscurantismo não era o carisma de S. Paulo.

As missas em latim, e de costas para o povo, que os ignorantes publicitam, se não tiverem quem as interprete, não servem para nada. De costas para o povo não há interpretação que as salve.

in Público 04.02.2018 


[i] Christian Duquoc, Paulinas, S. Paulo, 2008; L. Michael White, De Jesús al cristianismo, Verbo Divino, Estela, 2007

[ii] Gn 11, 1-9

[iii] Act 2, 1-13

[iv] 1Co 12-14; importa ler estes dois capítulos na íntegra